29 Abril 2020
Indígenas enfrentam a Covid-19, para o qual não têm imunidade alguma, e os garimpeiros ilegais que aproveitam para intensificar sua atividade enquanto as atenções estão voltadas para a pandemia.
A reportagem é de Luna Gámez, publicada por El País e reproduzida por Amazonia.org, 27-04-2020.
Indígena acompanhado de agentes da Funai durante uma operação contra o garimpo ilegal de ouro no território ianomâmi, em Roraima, numa imagem de arquivo.
(Reprodução: Amazônia.org)
A maioria dos casos de Covid-19 identificados até o momento entre os povos indígenas das Américas se encontra na região amazônica, sendo 3 no Peru e 42 no Brasil, onde, além disso, quatro indígenas já morreram, segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). “Exigimos que os Governos de cada um dos nossos países reconheçam de maneira pública sua responsabilidade em relação aos povos e nacionalidades indígenas como populações especialmente vulneráveis à pandemia, e que sejam tomadas todas as medidas necessárias, culturalmente apropriadas e efetivas para proteger nossas comunidades e territórios. Em caso de ação contrária ou omissão, pedimos à comunidade internacional que se mantenha em alerta máximo pelo possível cometimento de um ato genocida”, afirma a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA, na sigla em espanhol) em um comunicado publicado em 31 de março.
Na mensagem, a entidade aponta uma situação de emergência em todos os países abrangidos pela Amazônia: Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Os povos originários destes países enfrentam agora um duplo problema: primeiro, a sua falta de imunidade diante deste novo vírus. O segundo é menos midiático, mas evidente para quem o sofre: a intensificação da atividade ilegal de garimpeiros e madeireiros aproveitando que as atenções estão completamente voltadas pela pandemia.
“É um apelo dos povos indígenas da Amazônia, porque estão nos ignorando”, declara José Gregorio Díaz Mirabal, membro do povo Wakuenai Kurripako, originário da Amazônia venezuelana, e coordenador-geral da COICA. Em toda a região amazônica, incluindo seus diversos países, há um total de 7.780 casos confirmados e 395 mortos, de acordo com o mapa atualizado em 21 de abril pela Rede Eclesiástica Pan-Amazônica (REPAM), que não diferencia entre casos de indígenas e não indígenas em suas cifras.
A etnia sateré-mawé, conhecida como guardiã do fruto do guaraná, é uma das que já foram afetadas pelo coronavírus: com um caso de contágio confirmado, vários suspeitos e a morte de um tuxaua, terminologia sateré para designar os líderes anciões de cada comunidade. “O falecimento deixou a toda a aldeia São Benedito, de 90 pessoas, sob rigorosa quarentena”, conta, com tristeza, Sérgio Batista Garcia Wara, membro dessa etnia que habita a Terra Indígena Andará Marau, que ocupa parte dos Estados do Amazonas e Pará.
“A terra indígena está em isolamento há quase um mês. Faltam elementos básicos de higiene, como sabão, e para se alimentar muita gente está recorrendo à pesca e à caça, embora estes recursos sejam a cada dia mais escassos”, prossegue Batista. Nas profundezas da selva, a via fluvial é a principal opção de transporte, em muitos casos a única, mas as autoridades locais proibiram a navegação para evitar a propagação do vírus. Não obstante, estas restrições também dificultam o abastecimento de alimentos essenciais, entre eles certos medicamentos urgentes.
Batista, que trabalha em Parintins (AM), a cidade mais próxima, como diretor do Consórcio de Produtores Sateré-Mawé, não pôde se deslocar à aldeia indígena e observa a quarentena com seus filhos na cidade, onde já foram confirmados 37 casos positivos de coronavírus e cinco mortos. O Consórcio vende guaraná nativo a redes de comércio justo da França e Itália, dois países duramente atingidos pelos efeitos da covid-19, e é formado por 336 famílias indígenas associadas, que se inquietam pelo futuro de sua única fonte de renda.
Há na América Latina uma centena de povos originários em isolamento voluntário, ou seja, que não têm nenhum contato com outra população exterior, segundo a ONG Survival. “As populações em isolamento voluntário são extremamente suscetíveis a este tipo de doenças virais, porque não têm imunidade nem para esta nem para nenhuma das enfermidades respiratórias que circulam no resto do mundo”, explica o médico Douglas Rodrigues, especializado em saúde indígena. O maior risco do coronavírus em relação a outros vírus que também são desconhecidos para estes povos é o potencial de disseminação que ele apresenta. “No caso do coronavírus, estamos reagindo como indígenas isolados, já que não temos nenhuma memória imunológica na população e por isso se produziu esta pandemia”, ressalta este profissional da saúde que trabalha com comunidades amazônicas e faz pesquisas para a Universidade Federal de São Paulo.
Rodrigues afirma, taxativo, que a única medida para proteger os indígenas em isolamento voluntário é manter-se à distância e permitir que continuem isolados. Porém, e embora esta recomendação pareça evidente, a nomeação do antropólogo e missionário católico Ricardo Lopes Dias para ocupar o cargo de gestor da Coordenação Geral de Povos Indígenas Isolados e Recém Contatados da Fundação Nacional do Índio (Funai) ativou os alarmes de organizações indigenistas como a Survival Internacional. Lopes participou durante 10 anos da entidade católica norte-americana Missão Novas Tribos, atualmente rebatizada como Ethnos360, e atuou no vale do Javari, uma das maiores reserva indígenas do Brasil, onde se encontra a maior concentração de povos originários isolados.
Essa organização, dedicada à evangelização de comunidades indígenas, tem um especial interesse em chegar aos povos isolados. Em 1987, os missionários estabeleceram contato com a etnia isolada dos zo’é; poucos anos depois, um terço da população havia morrido de doenças como gripe ou malária, e em 1991 a Funai determinou a expulsão dos missionários da área indígena. Embora o Ministério Público tenha aberto uma investigação sobre a morte desses indígenas, o processo acabou arquivado sem demonstrar a responsabilidade direta dos missionários.
Uma menina sateré-mawé da aldeia da Vila Nova, na terra indígena Andará Marau, no Amazonas. Este povo indígena é um dos mais vulneráveis ao novo coronavírus.
(Reprodução: Amazônia.org)
Em 3 de março deste ano, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) denunciou o recente aumento na presença de missionários tentando contatar povos isolados, captar indígenas e “abrir as portas da Terra Indígena para ações nefastas de proselitismo religioso”. A ação recebeu na sexta-feira, 17 de abril, uma sentença favorável por parte da Justiça brasileira, que proibiu o contato de missionários com etnias isoladas no Vale do Javari.
A Amazônia como um todo está se tornando um possível foco de contágios. Especificamente o Estado do Amazonas apresenta desde o início da semana uma “curva acelerada” de contágios, conforme confirmou o governador Wilson Lima (PSC), alertando para a falta de infraestrutura sanitária nos hospitais públicos das cidades, que já estão chegando à sua saturação. A situação também é preocupante em outras partes da floresta, como no departamento peruano de Loreto, onde a maior parte da população é constituída por povos originários e os serviços de saúde são escassos.
Embora a Amazônia seja uma região de acessos complicados, também é uma galinha dos ovos de ouro para madeireiros, garimpeiros e outros buscadores de minérios que veem na quarentena um momento ideal para explorar clandestinamente as áreas protegidas. “Nossos xamãs estão trabalhando para nos proteger. Vocês também devem fazer o seu trabalho para evitar que a epidemia entre pelos caminhos abertos pelos não indígenas”, declara o comunicado da Associação Hutukara, da etnia yanomami, que já registrou um caso positivo e um morto na sua comunidade vítima do coronavírus SARS-CoV-2.
Este povo ancestral, com 26.780 indivíduos distribuídos entre o Brasil e a Venezuela, é um dos mais ameaçados do todo o continente americano pela atividade relacionada à mineração ilegal. Estima-se que em suas terras possa haver 20.000 garimpeiros clandestinos, uma cifra que quase iguala o número de indígenas. “Os garimpeiros abriram caminhos pelos rios, por ar e por terra na área yanomami. Isto é uma grande ameaça para a nossa saúde”, alerta a nota desta tribo indígena.
Ao seu lado, na vizinha Guiana Francesa, as populações indígenas Wayana, Teko e Wayãpi também sofrem as ameaças dos garimpeiros ilegais. Por este motivo, as comunidades que vivem junto ao rio Maroni começaram a construir no fim de março uma barreira para impedir a circulação fluvial e, especialmente, para bloquear a passagem dos mineradores.
“Os buscadores de ouro estão se aproveitando do confinamento, sabemos que sua atividade mineradora se intensificou nos últimos dias, porque a água do rio vem muito mais suja”, relata Claudette Labonté, indígena da etnia palikur, coordenadora de assuntos femininos da COICA e presidenta da federação Parikweneh. “O Governo francês afirma estar em guerra contra a covid-19, mas nós, os povos nativos, enfrentamos um duplo combate para continuarmos vivos: o vírus e os invasores”, acrescenta ela, denunciando o abandono total do Governo francês, que nem sequer lhes concede o estatuto de povo ancestral nem os direitos decorrentes disso, como o acesso à terra.
A única medida que o Executivo de Paris estabeleceu foi o confinamento total, o que Labonté qualifica como “cegueira política”, já que não considera as especificidades de suas formas de vida tradicionais. Muitos destes povos indígenas vivem em estruturas comunitárias, com várias famílias em uma mesma oca e a necessidade vital de sair para pescar e assim garantir sua alimentação. Labonté afirma que as áreas indígenas estão sob grande pressão da exploração garimpeira. “Estamos nos preparando para uma possível volta da conquista em nome do ouro.”
Também no Equador os mineradores se aproveitam da atenção dedicada à pandemia e do confinamento decretado em muitas regiões do país para intensificar suas atividades. “A empresa Terraearth S.A continua trabalhando durante o estado de exceção sem ter alvarás, sem licença ambiental e sem respeitar a emergência sanitária e toque de recolher, pondo em risco os habitantes da província de Napo”, denunciou no fim de março, pelo Twitter, a Confederação de Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana (CONIAE).
Díaz, coordenador-geral da COICA e porta-voz dos povos da Amazônia, salienta que neste momento “o ouro vale mais que o petróleo” e alerta que a maioria dos povos indígenas que habitam a selva amazônica estão preocupados com sua sobrevivência. “Tememos que a doença se espalhe e que, junto com a invasão de nossas terras e a pressão da mineração ilegal, ocorra outro extermínio dos povos indígenas.”
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A dupla ameaça para os povos da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU