21 Abril 2020
São cinco da tarde em Bozeman, pequena cidade de Montana (Estados Unidos), onde os espaços são vastos e o distanciamento social não precisa ser imposto à força, porque faz parte da paisagem desde tempos imemoriais.
David Quammen, de 72 anos, está cultivando seu jardim quando o telefone toca. “Passeamos com o cachorro pelo bairro, cumprimento os vizinhos da outra calçada e há três semanas não chego a menos de seis pés [dois metros] de outra pessoa além da minha esposa”, diz ao El País o veterano repórter e divulgador científico que anos atrás viajou pelos quatro cantos do planeta perseguindo vírus zoonóticos, ou seja, que passam dos animais para os humanos.
O resultado foi Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic (“transbordamento: infecções animais e a próxima pandemia humana” em tradução livre), ou Contagio, na tradução espanhola que a editora Debate publicará quinta-feira em ebook e em 14 de maio em papel na Espanha (o livro ainda não foi traduzido para o português). A obra fascina e assusta. Pelo que mostra: o mundo das infecções de origem animal. E pelo que prevê: uma pandemia humana muito parecida com a do vírus que causa a Covid-19. Hoje, é uma das obras de referência para entender o ente microscópico que paralisou o mundo.
A entrevista é de Marc Bassets, publicada por El País, 17-04-2020.
O que está ocorrendo o surpreende?
De modo nenhum. Tudo − o vírus procedente de um morcego que depois passa para os humanos, a conexão com um mercado na China, o fato de que se trate de um coronavírus − era previsível. É o que os especialistas que entrevistei para meu livro me diziam.
Nada o surpreende?
Sim, a falta de preparação dos Governos e dos sistemas públicos de saúde para enfrentar um vírus como este. Isso me surpreende e me decepciona. A ciência sabia que ia ocorrer. Os Governos sabiam que podia ocorrer, mas não se preocuparam em se preparar.
Por quê?
Os alertas diziam: pode ocorrer no próximo ano, em três anos, ou em oito. Os políticos diziam a si mesmos: não gastarei dinheiro por algo que pode não ocorrer durante meu mandato. É por isso que não se gastou dinheiro em mais leitos hospitalares, em unidades de terapia intensiva, em respiradores, em máscaras, em luvas.
Sem essa falta de preparo, não estaríamos todos confinados?
Exatamente. A ciência e a tecnologia adequadas para enfrentar o vírus existem. Mas não havia vontade política e, portanto, dinheiro, nem coordenação entre Governos locais e nacionais, e entre Governos no mundo. Também não há vontade para combater a mudança climática. A diferença entre isto e a mudança climática é que isto está matando mais rápido.
Por que o morcego está ligado à origem de tantos vírus, do causador da SARS até o ebola, e também do SARS-CoV-2?
Os morcegos parecem super-representados como hospedeiros naturais desses vírus perigosos. Por vários motivos. Primeiro, estão super-representados na diversidade dos mamíferos. Uma de cada quatro espécies de mamíferos é uma espécie de morcego.
Isso significa que há muitos morcegos?
Não se trata simplesmente de que haja muitos quanto ao número, e sim de que existe uma grande diversidade de morcegos. E é possível que cada espécie diferente de morcego tenha suas próprias espécies de vírus. Essa diversidade de espécies oferece uma ampla margem para a diversidade de vírus.
Que outros motivos explicam que os morcegos sejam a origem de tantos vírus?
Os morcegos vivem muito. Um do tamanho de um rato pode viver 18 ou 20 anos. Um rato vive um ou dois anos. Os morcegos aninham juntos em colônias enormes. Vi 60.000 em uma caverna, todos apertados. A longevidade e a massificação são circunstâncias ideais para que os vírus passem sem parar de um indivíduo para outro. E outra coisa: agora há indícios, embora não haja certeza absoluta, de que os morcegos têm sistemas de imunidade que evoluíram para ser mais hospitaleiros para corpos estranhos.
E eles estão cada vez mais perto de áreas urbanas, não é?
Sim. Principalmente os grandes morcegos dos trópicos e subtrópicos. Estamos destruindo seus habitats e eles procuram comida em áreas humanas onde haja hortas e árvores frutíferas nos parques. Tudo isto os aproxima dos humanos, o que, através de suas fezes e sua urina, aumenta as possibilidades de que os vírus se espalhem diretamente ou através dos animais domésticos.
Devemos temer os morcegos?
Não, não. São animais lindos, magníficos, necessários para a integridade dos ecossistemas. A solução não é nos livrarmos dos morcegos, e sim deixá-los em paz.
Como?
Esta pandemia é uma oportunidade para educar, para entender nossa relação com o mundo natural.
Nós, humanos, somos os responsáveis pelo que está ocorrendo?
Sem dúvida. Todos os humanos, todas as nossas decisões: o que comemos, a roupa que vestimos, os produtos eletrônicos que possuímos, os filhos que queremos ter, o quanto viajamos, quanta energia queimamos. Todas essas decisões pressionam o mundo natural. E essas demandas do mundo natural tendem a aproximar de nós os vírus que vivem em animais selvagens.
É a vingança da natureza?
Eu não diria dessa forma, porque sou um materialista darwiniano. Não personalizo a natureza. Não acredito em uma natureza com N maiúsculo capaz de vingança ou de emoções. Os humanos são mais numerosos do que qualquer outro grande animal na história da Terra. E isso representa uma forma de desequilíbrio ecológico que não pode continuar para sempre. Em algum momento haverá uma correção natural. Ocorre com muitas espécies: quando são muito numerosos para os ecossistemas, acontece algo com elas. Ficam sem comida, ou novos predadores evoluem para devorá-las, ou pandemias virais as derrubam. Pandemias virais interrompem, por exemplo, explosões de populações de insetos que parasitam árvores. Aí existe uma analogia com os humanos.
Somos como esses insetos?
Não. Somos muito mais inteligentes do que os insetos da selva. Devemos ser capazes de ver o que está para nos atingir e transformar o choque em um reajustamento de nossa maneira de viver neste planeta.
“Oferecemos mais oportunidades do que nunca para os vírus”, o senhor escreveu.
Porque somos mais e porque estamos mais conectados entre nós. Quando entramos na selva e capturamos um animal selvagem − um roedor, um morcego, um pangolim, um chimpanzé −, e esse animal tem um vírus, e esse vírus salta para nós e descobre que pode se replicar dentro de nós, e que passar de um humano para outro... quando ocorre tudo isso, esse vírus ganhou na loteria. Ele entrou por uma porta que lhe oferece uma enorme oportunidade. Porque somos 7,7 bilhões de hospedeiros em potencial para ele e porque estamos hiperconectados: a peste bubônica matou talvez um terço da população europeia, mas no século XIV não podia passar para a América do Norte nem para a Austrália. O vírus que causa a Covid-19 é um dos mais bem-sucedidos do planeta, juntamente com a cepa pandêmica do HIV. E nós o convidamos a ser tão bem-sucedido.
O que o senhor aprendeu nos últimos três meses sobre os vírus?
Algo que me surpreende é que, até agora, este vírus não está evoluindo muito rápido. Alguns cientistas, como Trevor Bedford em Seattle, coletaram amostras de várias pessoas em diversos momentos e em diferentes partes do mundo e desenharam uma árvore genealógica do vírus. Descobriram que os genomas do vírus não variam muito no espaço e no tempo. O vírus não muda porque não precisa fazer isso. Está sendo tão bem-sucedido − passando de um humano para outro, em todos os países do planeta − que, do ponto de vista da evolução, não está submetido a nenhuma pressão para mudar: já se dá bem sendo como é.
Durante quanto tempo ele pode se dar tão bem?
Até que tenhamos uma vacina. Nesse momento, é possível que tente evoluir. Não é que realmente tente, porque não tem intenção, é apenas um vírus. Mas, por seleção natural, é possível que, acidentalmente, encontre maneiras de driblar a vacina. E então começará a corrida para encontrar vacinas novas e melhores. Mas é o que já fazemos com a gripe: precisamos de uma vacina nova todos os anos, porque muda constantemente.
Enquanto isso, o distanciamento social e o confinamento têm um efeito no vírus?
Sim. Quando nos confinamos, retiramos dele a oportunidade de se espalhar da forma tão ampla e intensa como fez até agora. Uma maneira de pensar sobre pandemias é a seguinte. Em toda população de vítimas potenciais, há pessoas suscetíveis ao vírus. Há pessoas infectadas pelo vírus. Há pessoas mortas. E há pessoas que se recuperaram. E, uma vez recuperadas, é mais difícil que sejam reinfectadas. De modo que se chega a um ponto no qual o número de mortos é alto, o número de recuperados é alto e o número de infectados ainda pode ser alto, mas o número de pessoas suscetíveis pode ser relativamente baixo e estar disperso. Nesse momento, o vírus que está nas pessoas infectadas não tem oportunidades de entrar em contato com as suscetíveis.
E então?
Nesse ponto, a pandemia tende a terminar.
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“Os humanos somos mais numerosos do que qualquer outro grande animal. Em algum momento haverá uma correção”. Entrevista com David Quammen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU