10 Março 2020
"O problema é que em várias províncias eclesiais, entre as quais a Cúria Romana, a missa sem povo não é a 'resposta à quarentena', mas a 'normalidade'. E este é o ponto delicado".
A opinião é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 07-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Algum tempo atrás, foi o Pe. Sequeri quem sinalizou, com agudeza, que nosso tempo eclesial costuma usar o léxico do Vaticano II, mas continua a pensar com o cânone tridentino. Falamos de uma maneira, mas vivemos de outra. De um certo ponto de vista, é inevitável que seja assim. Mas é sempre surpreendente quando essa "tensão" ou "polaridade" repentinamente salta aos olhos de todos. Hoje, com poucas horas de distância, a Sala de Imprensa do Vaticano deu duas notícias em sequência aparentemente pouco relacionadas. De um lado, anunciou que o próximo Sínodo de 2022 terá como tema "Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão". Três horas depois, foi comunicado que, devido às condições de emergência sanitária que também envolvem o Vaticano, "até domingo, 15 de março, será suspensa a participação dos fiéis convidados nas Missas em Santa Marta. O Santo Padre celebrará a Eucaristia privadamente". O que é tão estranho? A linguagem que "comunica" contribui para a construção da realidade. Por isso, é evidente que a primeira comunicação usa o "léxico" do Vaticano II, enquanto a segunda, talvez por distração, recorre à linguagem tridentina clássica. Como se do "celebrar o Papa" se pudesse dar uma compreensão "privada". Vamos tentar entender o que está em jogo.
O primeiro ponto em que quero focar é a interferência que a epidemia causa à nossa linguagem. Apenas a "urgência" nos leva a trazer à tona a profundidade de nossos pensamentos. Como não podemos "pensar demais" e devemos comunicar as coisas rapidamente, facilmente deixamos vazar nossas representações mais secretas. Assim, a partir de uma simples comunicação da Sala de Imprensa, reaparece repentinamente a lógica pré-conciliar: a missa é a missa e diz respeito ao padre. Os outros podem participar ou não. Este é o imaginário que sustentou grande parte da apresentação oficial da Eucaristia até Pio XII. E isso plasticamente colocava, no mesmo missal, "antes" a missa sem povo e "depois" aquela com o povo. A grande novidade que o Concílio Vaticano II determinou e que entrou mais ou menos bem em nosso léxico, mas ainda muito pouco em nosso cânone, é que a missa é acima de tudo com o povo, porque é "do povo com seu Senhor", e somente em segunda instância, e secundariamente, pode ser "sem povo". Mas em um caso, como no outro, nunca é "privada". Pode ser com o povo ou sem o povo, mas nunca privada. O léxico sabe disso. O cânone não o sabe. E esse é o problema.
Mas há um segundo ponto que deve ser considerado. A Sala de Imprensa fica no Vaticano. E o Vaticano não é o lugar ideal para entender o que é a "missa com o povo". Porque, justamente no Vaticano, é muito fácil passar de "encontro oceânico" para a "missa de câmara". E a práxis "conciliar" com a qual o Papa Francisco abre seus dias com uma "missa participada" é normal em uma paróquia ou em diocese, mas não é normal para Roma. Eu também acrescento a minha própria experiência singular. Há muitos anos, um estudante me contou, por experiência direta, que havia colaborado com uma Congregação romana que costuma confiar tarefas a jovens estudantes sacerdotes para realizar práticas importantes. E muitas dezenas de jovens sacerdotes de todo o mundo trabalham na congregação. Pois bem, o estudante me revelou que ele era um dos poucos que pela manhã "se dava ao trabalho" de encontrar uma comunidade com a qual celebrar a Eucaristia. A grande maioria de seus colegas "celebrava privadamente" antes de iniciar o trabalho de cúria. Vamos considerar com benevolência, eu diria existencialmente, como é fácil pensar que o mundo seja feito "à medida de um oficial da cúria". Se Deus quiser, não é assim.
Portanto, não é de surpreender que, sob a pressão dos eventos, a Sala de Imprensa possa ter dado as notícias usando uma linguagem inadequada. Nada tão ruim. Aliás, bom, porque revelou algo importante. O problema é que em várias províncias eclesiais, entre as quais a Cúria Romana, a missa sem povo não é a "resposta à quarentena", mas a "normalidade". E este é o ponto delicado. Se há ambientes para os quais "dizer a missa sozinho" é normal, todo percurso de "caminho sinodal" na Igreja é mero exercício retórico, apêndice eventual, distração para perder tempo, pormenor sociológico, quando não rendição ao maligno. Um erro de impressão (digamos assim) é revelador. Não é por acaso que, exatamente nesse ponto, também existem aqueles que, com uma certa cara dura, tentaram reconstruir toda a "reforma litúrgica" como uma espécie de "jogo de sociedade" que só diria respeito às "missas com o povo", deixando inalterada a "missa usual" - aquela "privada" - cujo regime teria passado inalterado através do Concílio e da Reforma. Até existe quem sussurre que hoje, em uma Congregação, exista um projeto para fazer a "reforma do rito tridentino de 1962" - como se ainda estivéssemos em 1963 e a reforma ainda não tivesse sido feita ... Mas para alguns oficiais da cúria parece fazer sentido também o nonsense. E a condição de "quarentena", para eles, parece estrutural. Eles não precisam de uma epidemia para se separar de qualquer realidade. Humanamente eles podem ser entendidos. Mas nada além disso.
Em suma, não faltam boas razões para suspender as "aglomerações". Nem mesmo faltam boas razões para usar as melhores palavras para descrever com o que devemos defender, sem embaralhar pensamentos e experiências em evidências perigosamente distantes de qualquer "caminho sinodal". Porque não falamos, oficialmente, uma coisa pela manhã e o seu contrário à noite.
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Uma “igreja sinodal” com uma missa “privada”? O léxico que não é cânone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU