04 Março 2020
"Melhor que escolher um dos polos – escolher o suposto mal menor – é dobrar a aposta na potência da sociedade brasileira. O medo de ‘outro 2013’, o medo da multidão, comum ao bolsonarismo e ao lulismo, é a prova dos nove dessa potência", escreve Altamir Tojal, jornalista, em artigo publicado por Uninomade, 02-03-2020.
Vale perguntar também se é mesmo uma boa ideia colocar o projeto de construção dessa união adiante de uma prática de oposição propositiva e transformadora.
Alguma potência a sociedade brasileira está demonstrando ao conseguir evitar o descarrilhamento da democracia até este momento.
O que une os dois polos da política brasileira – o bolsonarismo e o lulismo – além do desprezo à democracia, é o medo de 2013, o medo da multidão. Nem um polo nem outro é resposta ao enigma da busca de transformações que correspondam às mudanças sociais e econômicas em escala global e que abram espaço para combater a precariedade, a covardia e a injustiça que afetam toda a sociedade e massacram os pobres.
Ao contrário do que se pode supor, a fraqueza dos líderes e partidos, que se observa hoje no Brasil, talvez seja uma boa oportunidade política se levar a sociedade a compreender que não pode nem deve contar com salvadores da pátria nem com ideologias supostamente redentoras e verdadeiramente escravizadoras. Essa fraqueza dos líderes pode ser a senha para a sociedade agir. Parar de procurar agulha num palheiro. E partir para a ação na diversidade em vez de lamentar a falta de unidade.
Na ocasião do aniversário de 40 anos do PT, o professor Cristovam Buarque, que foi reitor, governador, ministro e senador, observou que alguns analistas, inclusive militantes, disseram que o partido está obsoleto. Ele, porém, foi além: é toda a esquerda tradicional que ficou obsoleta e as razões são mais profundas que as admitidas por esses analistas. A esquerda ficou obsoleta porque abandonou “a lógica com a qual deveria observar a realidade do mundo em transformação”, conjecturou.
Cristovam, que esteve no PT por 15 anos, também escreveu: “A perda da vergonha levou à desmoralização, mas o obsoletismo veio da perda de vigor transformador e de bandeiras para o futuro. Os partidos ficaram prisioneiros do imediatismo eleitoreiro de seus políticos e sem contar com pensamento modernizador em relação ao mundo, aos riscos de sua marcha e aos sonhos do que será possível construir. Ficaram com políticos ruins e sem bons filósofos. Porque cooptaram e silenciaram nossos intelectuais, prisioneiros das siglas e dos líderes que reverenciam. Como nas religiões, passaram a acreditar nas suas narrativas e em seus santos. Pior do que não ver a banda passar foi fechar as janelas que dão para a rua e transformar os salões de debate em templos reverenciando crenças do passado.” Vale ler inteiro o artigo “A esquerda ficou para trás”.
Mas a direita também ficou para trás. Saiu do armário, mas não desgruda de seus zumbis e assombrações, como escancarou o discurso nazista de Roberto Alvim, com requintes de visagismo e cenografia. E como escancara a cada dia o presidente Bolsonaro na apologia à violência, na truculência verbal e gestual e na nostalgia explícita da censura, tortura e assassinatos do regime de 1964. E ainda como escancara o liberalismo predador que faz que não vê o ovo da serpente e se locupleta da truculência do governo atual como se locupletou da corrupção no reinado petista.
Apesar disso, porém, parece difícil que a escalada de estupidez metódica de Bolsonaro, o projeto fascista e os desastres programados do seu governo sejam bastante para propiciar a união contra ele.
Na verdade, cabe refletir e discutir se é boa a ideia de colocar um projeto de união adiante de uma prática de oposição verdadeiramente propositiva e transformadora.
A proposta de uma frente antifascista não podia ser levada a sério enquanto vinha do PT e de suas linhas auxiliares, que não disfarçam o ressentimento contra a sociedade que os rejeitou e o desejo de vingança contra as instituições (imprensa, polícia, ministério público e justiça) que os desmascararam e começaram a puni-los. E enquanto a máquina petista insistir na autoindulgência pelos erros, crimes e ações antidemocráticas que empreendeu, e exigir como tributo político a indulgência alheia.
É exatamente a proposta de “união” sob hegemonia petista que enfraquece a vontade de oposição a um governo ameaçador, facilitando a blitzkrieg de Bolsonaro e da extrema direita, apesar do grande e provavelmente crescente universo de insatisfeitos, críticos e adversários do presidente. O projeto de uma frente de oposição não vai rolar enquanto pressupor o comando do PT e seus nostálgicos e adictos, que seguem dominando a esquerda brasileira e não dão sinais de renunciar ao hegemonismo, ao cínico supremacismo moral e à vocação autoritária.
Porém, quando um amigo da democracia como o jornalista Fernando Gabeira escreve que “só uma ampla frente social pode responder a este momento”, certamente expressando o pensamento e o sentimento de outros tantos democratas, a coisa muda de figura. Também vale ler o artigo “Yes, nós temos bananas” de Gabeira no qual ele comenta o isolamento voluntário de Bolsonaro, lembra que “historicamente, governos isolados abrem caminho para grandes frentes de oposição, com um acordo básico em torno da democracia” e acrescenta que o discurso nazista de Roberto Alvim foi um momento especial em que essa possibilidade se mostrou.
Do discurso de Alvim para cá, Bolsonaro deu banana para a imprensa, fez piada sexual sobre uma repórter e tenta dar um cavalo-de-pau na investigação da morte de um chefe miliciano que ele tem como herói e que foi condecorado por proposta de um de seus filhos. E quem mais se lembra do discurso nazista? Quem mais topa se mobilizar contra o nazismo no governo?
São recorrentes nas casas, nas ruas, por todo canto e nas redes sociais questionamentos e apelos como este pego no Facebook: “Gente, ninguém vai parar este ‘animal’, não? Cadê as entidades de classe como OAB e ABI, cadê os poderes legislativo e judiciário deste País? Cadê os médicos, psiquiatras, psicanalistas, psicólogos ou quem quer que seja habilitado ou capaz de declarar que esta figura precisa ser interditada por não ser mentalmente capaz de presidir um país? Cadê os políticos de oposição? Cadê o Tortura nunca mais? Tem sido ou não uma tortura diária ter esta ‘coisa’ presidindo o Brasil? Que vergonha, gente, que vergonha tenho de ter um presidente assim… Cadê os estudantes, os ‘caras-pintadas’ que um dia surgiram como esperança de um futuro melhor para todos nós?”
Por que não rola a mobilização? Por que não rola a ideia de “união” contra um governo que até já passou da fase de ovo da serpente? Como tantas outras, a resposta está soprando no vento. Muitos querem democracia, muitos querem justiça social, muitos querem liberdade, muitos querem um governo competente e honesto, muitos querem desenvolvimento sustentável, mas não gostam de ser chamados de fascista porque não se ajoelham para o deus Lula. Muitos não querem indulgência para a ditadura de 64 mas também não querem indulgência para o PT, muitos abominam o fascismo e a extrema direita mas também abominam as ditaduras populistas e comunistas.
Muitos não querem ter de escolher o mal menor porque é a escolha entre o mal e o mal.
Na prática, até agora, o que se viu e o que se percebe é que essa gente não quer botar azeitona na empada do lulismo e isso leva a outra questão: é ou não possível fazer oposição a Bolsonaro sem ter de se juntar e se subordinar ao PT?
O petismo tem um projeto destruidor da democracia como o bolsonarismo. O voto interessa até chegar ao governo. “Vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar a eleição”, disse José Dirceu na campanha de 2018. Lulismo e bolsonarismo têm o mesmo desprezo pela liberdade de imprensa e opinião, pelo parlamento, pela justiça. O aparelhamento petista é copiado pelo governo miliciano e militarista de Bolsonaro. Os seguidores de Lula operam um arsenal de fake news, de ódio e de destruição de reputações como os fanáticos por Bolsonaro. Os ataques a Cristovam Buarque, um dos grandes líderes petistas no passado, não são diferentes das campanhas bolsonaristas contra ex-aliados.
O petismo é o bolsonarismo pintado de vermelho. A propósito, a ilustração deste texto é o quadro “Em frente ao caixão do chefe”, de Isaak Brodsky. Além de Stalin somente dois dos bolcheviques retratados na cena salvaram-se dos fuzilamentos promovidos pelos expurgos políticos.
Tudo mudou e segue mudando e estamos aqui tendo de enfrentar a falsa dialética entre petismo e bolsonarismo. No seu artigo, Cristovam Buarque enumera as mudanças na tecnologia, na economia, no mundo do trabalho e seus impactos na sociedade e na política. O professor assinala que a esquerda não enxergou que “a classe trabalhadora está dividida entre categorias com privilégios, sem interesses comuns com as massas excluídas. Que a ‘mais-valia’ foi substituída pela ‘desvalia’ sobre os pobres e uma ‘pactuada-valia’ entre capitalistas e trabalhadores especializados. Por isso, os sindicatos representam trabalhadores do setor moderno, não ao povo”.
Do discurso nazista de Roberto Alvim para cá, o PT e aliados apostaram numa greve de petroleiros, supondo que provocaria o desabastecimento de combustíveis e depois de comida e tudo mais, como a greve dos caminhoneiros. Talvez imaginando que isso derrubaria ou ao menos enfraqueceria Bolsonaro.
E policiais se amotinaram no Ceará, submetendo a população ao terror, chantageando as autoridades e explicitando o pacto de sangue com milicianos e outras organizações criminosas. Mais um episódio do círculo vicioso de motins e anistias a policiais, rebeliões e fugas de presídios e imunidades a criminosos e suas gangs avalizadas por governadores, parlamentares e juízes, incluindo ministros do Supremo Tribunal Federal.
O que aconteceu com Roberto Alvim? Talvez já esteja empregado em outra repartição pública.
De lá para cá, o povo foi brincar o Carnaval. Fez a coisa certa. Agora é fazer figa para se proteger do novo coronavirus. E do desastre político.
A novidade pós-carnaval é a notícia de que o presidente da República compartilhou no zap um vídeo convocando a população para um ato contra o Congresso Nacional e o Supremo.
O que parece notável neste pandemônio é que as instituições estejam funcionando no país. Apesar da gangrena de parte de seus respectivos titulares, o parlamento e o STF ainda conseguem manter certo equilíbrio entre os poderes, a imprensa segue fazendo jornalismo, setores importantes do governo funcionam e as forças armadas não ousaram até agora, como instituição, trair as suas responsabilidades constitucionais.
As redes sociais continuam livres, até onde permitem os algorítmicos dos provedores e as usinas de fake news e de defesa e promoção de interesses.
Isso, porém, não se deve a favores e muito menos a compromissos nem do governo nem da oposição petista. Muito pelo contrário.
Melhor que escolher um dos polos – escolher o suposto mal menor – é dobrar a aposta na potência da sociedade brasileira. O medo de ‘outro 2013’, o medo da multidão, comum ao bolsonarismo e ao lulismo, é a prova dos nove dessa potência.
A paralisia da sociedade contra a onda fascista é resultado do enfrentamento suspeito entre adversários que têm muito em comum.
A união dos democratas, se acontecer, terá de enfrentar os dois polos.
“Tuas ideias não correspondem aos fatos / O tempo não para”, cantava Cazuza. “Eu vejo o futuro repetir o passado / Eu vejo um museu de grandes novidades” / “Mas se você achar / Que eu tô derrotado / Saiba que ainda estão rolando os dados”. Os autores da canção são Cazuza e Arnaldo Brandão.
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Por que é difícil a união da oposição ao governo Bolsonaro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU