04 Março 2020
O título do livro recente do antropólogo Néstor García Canclini é um tanto apocalíptico: Ciudadanos reemplazados por algoritmos (CALAS). Há um certo pessimismo na atualidade, mas também há um olhar amplo, como uma fotografia batida por um drone que contém informações da muito complexa e interessante situação política, social, cultural da América Latina e também de outros territórios familiares de nossa região.
A essa tensão se refere o autor de A globalização imaginada, em conversa telefônica, direto do México. A instituição que publicou o livro se apoia na Universidade de Guadalajara e nas subsedes localizadas na Universidade da Costa Rica, FLACSO Equador e na Universidade Nacional de San Martín. Por sua vez, as instituições latino-americanas estão associadas a quatro universidades alemãs: Bielefeld, Kassel, Hannover e Jena.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 28-02-2020. A tradução é do Cepat.
Como caracteriza a situação do cidadão latino-americano atual, retratada por você, em vários livros, ao longo de sua carreira?
Penso que a discussão sobre os cidadãos se enfraqueceu e, muito mais, foi deslocada para a descrença em relação aos partidos, sindicatos e, em geral, aos sistemas de representação da democracia clássica. A questão fica um pouco presa, muitas vezes, ao fato de ter ocorrido que os partidos deixaram de nos representar ou nos representam por um tempo e depois nos traem, e assim por diante. E me parece que a questão se tornou mais complexa no século XXI.
Por um lado, estão os governantes antissociais, antipopulares - no sentido de que não representam os interesses da maioria - e que, no entanto, são eleitos pelas maiorias. O caso de Bolsonaro é talvez o mais ressonante, mas há muitos. Para mim, isso gera perguntas diferentes sobre o que está falhando. E uma tentativa é repensar as questões da sociologia política a partir da perspectiva dos cidadãos. É o que estão experimentando, sentindo, as maneiras novas de se comunicar, especialmente os jovens.
E do outro lado, a questão dos algoritmos, o que prevaleceu é o poder das GAFA: Google, Apple, Facebook e Amazon. É preocupante a interferência de algumas dessas empresas nas campanhas eleitorais, na orientação dos comportamentos dos cidadãos e dos consumidores, como mentem e fazem passar por boas notícias as falsas.
A mudança é perpétua...
Todos somos conscientes de que o celular substituiu o telefone fixo, o WhatsApp e as redes à conversa, mesmo quando é telefônica. Que nova configuração da vida social está sendo construída? Fala-se de instantaneidade, de obsolescência da informação, de que pouco nos interessa que nos subtraiam a informação, se recebermos benefícios em troca.
O que quer dizer quando argumenta que a globalização está desprestigiada?
Entre o final do século passado e a primeira década do século XXI, nos disseram que a globalização criava livre-comércio com maior interdependência e competição entre economias e sociedades, que havia um fluxo mais ágil de mensagens, é verdade. Mas logo começamos a descobrir que os lucros eram controlados em sua gestão, em sua administração, por essas quatro grandes empresas, as GAFA, e começamos a ver os prejuízos. E os prejuízos de estar excessivamente comunicados e ter muita concorrência internacional mundial.
Então, produz-se o Brexit, processos de autonomia e isolacionismo, como o caso catalão, a decomposição de organizações internacionais como UNASUL, BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que tentaram gerar um mercado internacional alternativo). Houve muitas tentativas de fortalecer e aproveitar essas oportunidades para maior troca e comunicação imediata.
Tudo isso foi se desmoronando e hoje alguns se perguntam se é melhor desenvolver políticas nacionalistas na economia, na cultura. É difícil praticar essas políticas isolacionistas como na Catalunha, porque, por sua vez, tudo já está tão intercomunicado que quando o Brexit for concluído, haverá mais prejuízos do que benefícios em ter deixado a União Europeia.
Vemos que as dificuldades do Mercosul para a gestão surgem por razões políticas, dada a divergência entre os governos da Argentina e do Brasil, mas também porque não existem regras internacionais de concorrência bem acordadas e porque a devastação de políticas antissociais tem sido arrasadora. A seguridade passou a ocupar um lugar central, e isso é uma das explicações para a vitória de Jair Bolsonaro e para o enorme crescimento de Marine Le Pen, na França.
O cidadão evapora, desaparece?
Falo das formas de 'descidadanização': a era digital nos domina com informação que se torna obsoleta, cria movimentos sociais fugazes, de alta intensidade que duram pouco. Então, esta 'descidadanização' - ou participação e organização de cidadãos diante de acontecimentos, mais que em processos - mostra uma nova maneira de organizar a sociedade.
Portanto, essa perda de eficácia das formas tradicionais de fazer política, que não se explica apenas pela corrupção de todos os partidos em muitíssimos países, mas porque existe uma nova organização sociocomunicacional que nos instala em presentes que acontecem vertiginosamente. Daí também surge o fascínio pelos autoritários, as soluções intempestivas e violentas, tipo hackeamentos. É preciso distinguir: há hackeamentos muito eficazes, como demonstraram os movimentos feministas e juvenis ao revelar o que os governos pretendiam esconder.
O hacker é um personagem central desta época: tem um papel político, é um ativista de diferentes causas, também fabrica fake news...
Sim, somos muito fascinados por hackers. Daí o prestígio adquirido por Julian Assange, e Edward Snowden, e movimentos como o Anonymous. Há um valor político nesses hackeamentos, porque desestabilizam poderes que acreditam ser onipotentes. Mas isso tem a ver com a reorganização da comunicação, com a passagem de uma época em que a governabilidade se baseava nas estatísticas.
Um partido, para vencer as eleições, fazia pesquisas para descobrir quais slogans poderiam interpelar os eleitores. E uma empresa fazia isso para colocar no mercado um novo produto. Hoje, vivemos uma governamentalidade algorítmica. A diferença é que os dados estatísticos não são ordenados apenas em função de um projeto, de um pedido, mas de milhares de milhões de dados dispersos, independentemente de suas aplicações e dos organismos coletivos que antes o geravam para o uso com propósitos sociais.
E vemos que quando alguns governos, empresas, pedem informação e a vendem, e que a subtraem de nós, sentimo-nos trabalhando gratuitamente para aqueles que vão nos controlar. Então, estão nos hackeando. Subtraem de nós dados, conhecimentos sobre nós mesmos e o organizam. A pergunta é: o que podemos fazer como cidadãos para combater essa desapropriação que sofremos em tantas frentes?
O que é a economia da isca? Acabamos presos pela vara de pescar do clique?
É uma parte da descrição, é uma boa imagem, mas tem sua contrapartida, porque me impressiona que se falarmos apenas que nos seduzem para roubar informação, estamos atribuindo ou reforçando a ideia de que existe inteligência artificial, que o Google é um tipo de deus onisciente.
Existem alguns pensadores contemporâneos, filósofos importantes, como Markus Gabriel, que questionam essa ideia de inteligência artificial. Ele diz: “Meu iPhone não tem problemas, tem inteligência. Os problemas tenho eu, e sou eu quem pode lhe dizer quais problemas tenho e o Iphone pode me ajudar a resolvê-los”. Desde como ir mais rápido a um destino da cidade, até fazer uma operação financeira. Mas, há sujeitos. Nós, sujeitos, estamos muito condicionados e, ao mesmo tempo, temos a possibilidade de continuar atuando como cidadãos. É uma cidadania muito diferente daquela imaginada na época em que tudo se concentrava no voto, ou nos plebiscitos, que ainda importa, sem dúvida.
Quanto aos jovens, a precariedade da vida profissional os leva a passar por semestres de trabalho em uma área de trabalho ou desempregados. Sofrem instabilidade, não têm continuidade. Os governos precisam fazer planos para ciclos de quatro, seis anos. Mas também me parece que é necessário entender essa precariedade, que hoje atinge quase toda a população. Há uma substituição da ideia de carreira pela ideia de projeto, e às vezes nem mesmo de projeto, acontecimentos em que podemos conseguir um emprego por um tempo. Há uma substituição de instituições por aplicativos de celular.
Também ressalta que os jovens não aderem a partidos políticos, mas a causas. Algo que vimos recentemente no Chile e que se intensificou, nesta semana, em Viña del Mar.
O país que parecia mais estável, mais satisfeito, com o neoliberalismo ortodoxo etc., o país de prova, é o que explode com maior violência. Estou em comunicação com antropólogos, com outros cientistas sociais chilenos que me dizem que um dos problemas é o que fazer com a reutilização da crise. É a expressão que usam depois de meses e meses nas ruas, com o sofrimento dos corpos, como sabemos, e ainda com os meses que faltam para a nova Constituição. Há uma urgência em resolver as necessidades pessoais, familiares, societárias, de trabalho e a discussão magnífica que finalmente ocorre no Chile sobre a Constituição pinochetista.
Hoje, existe uma situação ainda mais efervescente, dinâmica e não resolvida. Não sabemos o que acontecerá no Brasil ou no Chile, onde há protestos em algumas cidades, apesar da enorme repressão. Também vemos que no Chile, Piñera conserva apenas 6% de aprovação. Existem processos políticos, maneiras de agir na política que caducaram e, se não forem renovados, desaparecerão.
Interessa-me ver não apenas a questão política, inclusive militar, que é fundamental, e também a econômica, mas esses processos sociocomunicacionais, que muitos de nós tínhamos estudado na América Latina. Por exemplo, quando surgiu a televisão, até onde os espectadores têm capacidade de interação, voltamos a revisar quando apareceram as redes em meados da última década. Vai mudando aceleradamente.
Parece-me muito interessante o entrelaçamento entre as dinâmicas políticas, sociais e essas contribuições contraditórias dos meios de comunicação, das redes, para empurrar em várias direções ao mesmo tempo. É uma situação extremamente dinâmica, que produz muito sofrimento e, ao mesmo tempo, muita exigência para nós que estamos tentando entender e investigar.
Uma grande parte de sua obra é muito dedicada ao vínculo entre consumidores e cidadãos. Em seu livro, diz que hoje não é fácil sustentar aquela frase que escreveu em 1995, que o consumo serve para pensar. E então, hoje, para que serve o consumo?
Em primeiro lugar, o consumo se desenvolveu, se pensarmos o consumo como o concebemos naquela época, como ir ao açougue, padaria, livraria, cinema, teatro. Hoje, falamos muito sobre acesso, que é uma forma de consumo, mas de cultura a domicílio, ou de cultura à tela, que podemos usar fora de casa. Em muitas telas. Então, o consumo serve para pensar, e o acesso serve para pensar também, mas há algo talvez novo no desenvolvimento das ciências sociais que é a maior importância que os afetos adquiriram.
Percebemos que nesse processo de empoderamentos e desapropriações, os afetos estão ligados a desejos, crenças, crenças em movimentos, partidos e líderes que parecem abrir o caminho para realizações que a sociedade de hoje frustra, como se constroem hoje (confuso) coletivas. Sem dúvida, em parte, são construídas no consumo ou no acesso. E ao mesmo tempo também no encontro com os outros. Esse é o outro aspecto que é o mais importante, não descuidar quando falamos dos anonimatos, as distâncias que as redes produzem, o WhatsApp, em que já não escutamos vozes, mas recebemos mensagens e as respondemos depois, quando queremos.
O livro de Néstor García Canclini pode ser baixado de forma livre e gratuita, aqui.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A globalização está desprestigiada. Entrevista com Néstor García Canclini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU