14 Fevereiro 2020
Parece cada vez mais difícil negar a evidência de que estamos atravessando uma crise climática sem paralelo na história de nossa espécie. Desde os movimentos sociais, passando pelos meios de comunicação e até os órgãos governamentais, todos concordam com a necessidade de atender a uma emergência climática que veio para ficar, a não ser que tomemos medidas contundentes. No entanto, essas declarações de emergência têm ao menos dois pontos fracos.
A reportagem é de Adrián Almazán, publicada por El Diario, 12-02-2020. A tradução é do Cepat.
O primeiro, é não entender com a profundidade necessária que, sim, se trata de uma crise climática, mas é muito mais do que isso. Trata-se de uma crise da civilização: crise energética (combustíveis fósseis entraram em um declínio lento e incontrolável), uma crise de Gaia (a destruição do tecido da vida progride em ritmo excessivo, colocando em risco a estabilidade do ecossistema), uma crise de desigualdade (a diferença entre os mais ricos e os mais pobres não para de crescer), uma crise de imaginação (parece impossível pensar além do dogma e da ladainha do desenvolvimento econômico e da industrialização), uma crise política (nossa instituições tem demostrado seu déficit democrático, sua natureza oligárquica), etc.
O segundo grande problema é a alarmante ausência de respostas concretas a essa suposta emergência. Em um trabalho recente de Ecologistas em Ação, com o relatório Cenários de trabalho na transição ecossocial 2020-2030, averte-se que para alcançar as reduções recomendadas pela ONU para não ultrapassar o limite já inseguro de 1,5 grau, é imprescindível realizar transformações drásticas em todos os setores produtivos de nosso país [Espanha]. Do transporte, passando pela construção e terminando no turismo. Tudo tem que mudar no caminho dos horizontes de decrescimento que grande parte do movimento ambiental vem defendendo há décadas.
E um dos setores mais sensíveis, e cujas transformações são mais urgentes, é justamente a agropecuária. No mesmo relatório anterior, pode-se observar que o setor de alimentos (pecuária, agricultura, pesca, etc.) é o quarto maior emissor de toda a nossa economia (isso fazendo o que ninguém faz, contabiliza as emissões associadas aos trabalhos de cuidado, sem elas subiria para o terceiro lugar).
O excesso de máquinas agrícolas e o abuso de pesticidas e fertilizantes químicos transformou uma atividade que de uma maneira natural deveria ser uma fonte de energia (um processo de metabolização da energia solar para obter alimentos) em um sumidouro, dependente de suprimentos baratos de combustíveis fósseis e das atuais cadeias de transporte. E, se as emissões associadas diretamente à produção de alimentos forem adicionadas às necessárias para o transporte, distribuição e o descarte, a conclusão não admite contestação: comer hoje significa pôr em xeque a estabilidade climática do nosso planeta.
Contudo, a agricultura e a pecuária industriais não são apenas insustentáveis por causa de suas emissões de gases do efeito estufa. Se seguirmos os avisos da equipe Rockström em Estocolmo, a sociedade capitalista industrial de hoje está ultrapassando a um ritmo exponencial muitas das fronteiras naturais do nosso planeta. O clima, sem dúvida, mas em muita maior medida o limite de reposição natural de nossos solos, ligado aos ciclos de fósforo e nitrogênio. De fato, a única extralimitação maior que essa é a associada à perda de biodiversidade, cuja magnitude e severidade excedem as escalas de medição.
O nascimento da agricultura de monocultura e da pecuária, em escala industrial, rompeu a simbiose entre agricultura e pecuária extensiva, que durante séculos havia garantido a reposição da fertilidade do solo sem a necessidade de concorrência de insumos externos. A produção industrial de alimentos está há quase um século levando ao limite alguns solos que, para permanecerem férteis diante das novas demandas produtivas, primeiro tiveram que recorrer ao guano e depois a fertilizantes sintéticos.
Tudo isso enquanto a pecuária industrial e a má gestão dos resíduos de nossa sociedade convertiam o que poderia ter sido adubo em tóxicos. Basta ver o nível de poluição da água gerada pelos chorumes das grandes granjas de porcos que inundam nosso território em uma dinâmica extrativista que aproveita o esvaziamento de nossos povoados para extrair lucros.
Assim, a pecuária e a agricultura industriais devastam nosso território, pois ao saturar os solos com químicos, poluem as águas e aceleram sua erosão e desertificação (em média, estima-se, por ano, a Espanha perca três toneladas de solo fértil por hectare). Solos tão saturados com produtos químicos que são incapazes de se regenerar espontaneamente. Contudo, a industrialização do campo não apenas nos levou à insustentabilidade, como também produziu um verdadeiro maremoto socioeconômico, um genocídio antropológico implacável.
A chamada modernização do mundo rural, na Espanha e no resto do mundo, teve como condição a possibilidade de culminação dos processos de dissolução comunitária e mercantilização da produção de alimentos que estavam em marcha há pelo menos um século. A tradicional agricultura de subsistência, destinada a sustentar a vida e não a produção de lucros, desapareceu quando os bens comuns que a sustentavam foram expropriados, com a geração de monopólios que fizeram da produção de alimentos um dos setores capitalistas mais lucrativos do mundo. E com ela desapareceu um mundo inteiro, o camponês, que até então significava um outro campo epistemológico, simbólico, econômico e imaginário. Um tipo antropológico muito diferente do homem moderno.
A particularidade do processo de mercantilização da agricultura e da pecuária é que sua automação encontrou muitas dificuldades históricas. A resistência dos próprios camponeses diante da destruição de seu modo de vida se uniu à dificuldade intrínseca de mecanizar processos que, por natureza, constituíam um exemplo muito acabado de simbiose com as dinâmicas da vida. Talvez um dos mais requintados e belos legados daquele Neolítico sobre o qual Mumford nos falava em “El pentágono del poder”. Esse processo de coevolução das sociedades humanas e do resto de Gaia que permitiu a constituição de sociedades camponesas e indígenas.
E com o trator vieram empréstimos bancários, o salário, a especialização produtiva. E uma vez que a comunidade foi dissolvida e em prol do lucro, chegou a burocracia: impostos, medições, concentração da terra... Hoje, o campo enfrenta cada vez mais a constituição de monopólios que transformam agricultores em simples funcionários e arrendatários de grandes multinacionais que fornecem sementes, insumos químicos e que ameaçam cada dia mais cada agricultor com sua pronta substituição por um robô que automatizará suas tarefas. Tudo isso enquanto o Estado informatiza e monitora cada um de seus movimentos em busca da rastreabilidade, higiene e eficiência.
Paisagens históricas estão se deteriorando para se adaptar ao ritmo das novas máquinas, os olivais centenários são arrancados para dar lugar a treliças robóticas, agricultores renovam hipotecas repetidas vezes, a fim de manter sua competitividade no mercado mundial de alimentos (inevitavelmente acoplados aos combustíveis fósseis). Investem na modernização compulsiva de suas propriedades, que, mais do que granjas ou campos, tornaram-se verdadeiras fábricas de alimentos.
E é justamente esse modelo o que não é questionado nas recentes mobilizações dos trabalhadores fabris do campo que tiveram sucesso na semana passada. Quando organizações como a UPA (União de pequenos agricultores e pecuaristas), Asaja (Associação Agrária de Jovens Agricultores) e COAG (Coordenadoria de Organizações de Agricultores e Pecuária) concentram suas reivindicações nos baixos preços de origem e nas ofertas agressivas dos supermercados, e se calam diante da insustentabilidade e não aceitabilidade de um modelo industrial que os torna escravos das imposições do Estado e das grandes multinacionais agrícolas. Quando o ministro da Agricultura, Luis Planas, declara que nem a Constituição, nem a União Europeia permitem intervir e regulamentar as regras da concorrência, deixa claro que a agricultura é mais uma peça no jogo macabro do mercado.
Enquanto isso, o discurso sobre a “España Vaciada” não entende que o mundo rural hoje não precisa se reindustrializar, como defendeu a ministra Ribera em suas recentes visitas a Zamora e León em dois atos sobre o êxodo. Nosso mundo rural nunca foi tão industrializado como hoje. Também não é aceitável focar o debate na suposta incidência do aumento do salário mínimo no emprego agrícola, que apesar de nem sequer estar entre as reivindicações da UPA, foi o centro da tentativa de capitalizar esse conflito por parte da extrema direita do Vox.
Fazer as pazes com Gaia, hoje, e evitar a desestabilização total do nosso sistema climático passa pela reconstrução do metabolismo rural. Uma economia verdadeiramente circular terá que imitar os modos de produção campesino, sua sabedoria ao fechar ciclos e substituir infinitamente o uso de recursos próximos. Isso, entre muitas outras coisas, implica voltar a apostar em uma produção de alimentos necessariamente agroecológica e desindustrializada. Uma produção de alimentos que encha nossos povoados com cooperativas dedicadas à agricultura de policultura e pecuária extensiva. Uma reconstrução de nosso território que o defenda, diante do extrativismo, de qualquer dinâmica industrializante e que também permita reconstruir vidas autônomas no político, no individual e no material para resistir às sombras que os tempos agitados do colapso do ecossistema lançam hoje.
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Desindustrializar e desmercantilizar o campo diante da emergência climática - Instituto Humanitas Unisinos - IHU