23 Janeiro 2020
Em 2007, Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, se opôs ao projeto do cardeal secretário de Estado, Tarcisio Bertone, de intervir nos jesuítas, uma ordem religiosa considerada pelos setores mais conservadores do Vaticano como “aberturista” demais. Os bastidores inéditos são contados pelo historiador Gianni La Bella no livro “I Gesuiti. Dal Vaticano II a Papa Francisco” (Ed. Guerini e Associati).
A reportagem é publicada por Askanews, 22-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No livro, publicado em abril de 2019 e agora também traduzido para o espanhol, La Bella reconstrói o caso no qual o então prepósito geral da Companhia de Jesus, Peter Hans Kolvenbach, já idoso, conseguiu finalmente renunciar e iniciou os procedimentos para eleger o seu sucessor, que seria Adolfo Nicolás.
Os jesuítas, fundados em 1534 por Santo Inácio de Loyola, mantêm um vínculo especial com a Sé Apostólica, a ponto de ter um quarto voto, além da pobreza, castidade e obediência, próprios de todas as ordens religiosas, de especial obediência “circa missiones” ao pontífice. Desde o Concílio Vaticano II, no entanto, não faltaram mal-entendidos entre os papas e a Companhia de Jesus, que, em particular sob a liderança do histórico prepósito geral Pedro Arrupe (1965-1983), envolveu-se fortemente com o compromisso social, com o diálogo com outras culturas e religiões, com a abertura cultural à complexidade. Características que despertaram a apreensão de Paulo VI e a contrariedade de João Paulo II, o papa polonês que, em 1981, chegou a intervir na ordem.
O Pe. Kolvenbach foi eleito após esse traumático episódio, promovendo o degelo das relações com a Santa Sé. No Vaticano, porém, ainda havia reservas: ao longo dos anos, lembra Gianni La Bella, a Congregação para a Doutrina da Fé colocou na mira teólogos jesuítas (Jon Sobrino, Jacques Dupuis, Roger Haight, Thomas J. Reese, Anthony De Mello), as universidades jesuítas de todo o mundo foram colocadas “sob a lupa da Congregação da Educação Católica” e a renúncia de Kolvenbah foi “considerada, por um grupo de renomados cardeais, não propriamente simpatizantes da ordem, como uma oportunidade a não se perder, para convidar o papa a intervir para colocar as coisas novamente em ordem, levando a Companhia de volta para o caminho certo”.
La Bella cita os colombianos Alfonso López Trujillo e Darío Castrillón Hoyos, o mexicano Javier Lozano Barragan, o chileno Jorge Medina Estevez, o estadunidense William Wakefield Baum e o esloveno Franc Rodé.
“Em particular – anota o historiador – o ex-arcebispo de Meddelín, López Trujillo, particularmente nunca havia se preocupado em esconder as suas críticas aos jesuítas, os verdadeiros artífices, em sua opinião, do desvio liberacionista do catolicismo latino-americano, os autênticos manipuladores do arcebispo de San Salvador, Óscar Arnulfo Romero”.
Segue-se a crônica desses bastidores inéditos.
“A preparação da Congregação já está avançada, e Kolvenbach informa as autoridades vaticanas sobre o andamento dos trabalhos. No dia 9 de março de 2007, o secretário de Estado, Tarcisio Bertone, respondendo ao geral, escreve que é desejo do papa ‘que, na próxima Congregação Geral, reflita-se cuidadosamente sobre a preparação espiritual e eclesial dos jovens jesuítas, e, para toda a Companhia, sobre o valor e sobre a observância do quarto voto’. Na continuação da carta, o cardeal informa o prepósito sobre as ‘preocupadas reflexões’ do pontífice, sobre a situação da ordem na França, onde ‘os sinais da vida religiosa comunitária (silêncio, observância do horário, penitência, separação das comunidades, distinção entre professos-coadjutores espirituais, composição da assembleia provincial etc.) parecem ter sido deixados de lado; a vida religiosa propriamente dita (piedade, clausura, mortificação) parece ter sido relegada à esfera da vida privada, perdendo muito da sua dimensão comunitária. Tudo isso foi vivido em uma espécie de euforia com o consentimento pelo menos tácito da autoridade’.
“Uma situação que não diz respeito apenas à França, mas a toda a ordem. Preocupações exacerbadas pelo fato de que a maioria dos jesuítas, eleitores das Congregações provinciais, são jovens e não conhecerem ‘a Companhia como antigamente’, ‘mas apenas a dos anos 1970’. As críticas de Bertone – observa La Bella – dão a densidade da ‘má fama’ de que a ordem desfruta em muitos ambientes do outro lado do Rio Tibre. Ao mesmo tempo, porém, revelam a irrelevância e a inconsistência das acusações e uma visão da vida religiosa arcaica, démodé, pré-conciliar, feita de regras, disciplina e preceitos a serem respeitados.
“Com base nessas avaliações, a Secretaria de Estado decide, com um procedimento inédito e canonicamente anômalo, sugerir a Kolvenbach, a fim de garantir ‘uma celebração mais frutuosa’ da próxima Congregação Geral, que envolva na sua preparação ‘o cardeal Jorge Mario Bergoglio, S.I., Arcebispo de Buenos Aires, assinalando-lhe o aqui exposto, pedindo-lhe o seu renomado parecer a esse respeito’. Muitos no Vaticano, naquele momento, pensavam nele como o candidato ideal, caso fosse decidido uma intervenção, em relação à qual Bento XVI, dado o quilate do personagem, certamente não teria nada a objetar. Kolvenbach, perplexo e desconcertado, entra em contato com o arcebispo de Buenos Aires, que, no dia 13 de abril de 2007, apresentou-lhe as suas considerações sobre o ‘estado da Companhia’.
“Embora não compartilhe totalmente as orientações e as escolhas realizadas pelo governo da ordem e nunca tenha escondido nenhuma das suas perplexidades em relação ao relativismo praticado na formação das gerações mais jovens, o que havia levado a Companhia, em alguns momentos da sua história recente, a um relaxamento da sua tensão missionária, Bergoglio é decididamente contrário a uma hipótese de intervenção que, na sua opinião, multiplicaria os problemas em vez de resolvê-los. Durante a sua visita à província de Castela, em Valladolid, na Espanha, em 6 de maio de 2013, o sucessor de Kolvenbach, Adolfo Nicolás, conta ‘confidencialmente'’ a cerca de 60 jesuítas que, no seu primeiro encontro com o Papa Francisco, este lhe disse que havia se oposto tenazmente à hipótese de uma nova intervenção da Companhia de Jesus, que, em Roma, naquele momento, muitos queriam. Avisado sobre as manobras em andamento, Kolvenbach, ao contrário do seu estilo discreto e reservado, pede uma audiência a Bento XVI e abandona toda prudência, de modo firme e decisivo, como talvez nunca em sua vida, pede ao pontífice que não aprove uma decisão como essa que a Companhia, desta vez, não toleraria”.
A Companhia de Jesus não sofreu intervenção. E, durante o generalato do novo prepósito, Pe. Nicolás, em 2013, Jorge Mario Bergoglio foi eleito papa.
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Intervenção nos jesuítas: quando Bergoglio impediu Bertone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU