06 Dezembro 2019
O sociólogo francês Christian Laval (1953) passou pelo centro cultural El Born para revisar a sombra da revolução russa e seus mitos. Justamente no momento em que do Chile ao Iraque, de Hong Kong ao Líbano e Equador, há revoltas populares contra o governo.
A reportagem é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia, 02-12-2019. A tradução é do Cepat.
O professor de Nanterre, escreveu com Pierre Dardot livros como ‘A nova razão do mundo”, sobre a atual ordem neoliberal e Comum, sobre os comuns, a palavra que articula os novos movimentos de resistência ao neoliberalismo no século 21. E ainda que se recorde de maneira divertida que há 150 anos o capitalismo está sendo enterrando, “é incontestável que o neoliberalismo, hoje, está em crise”. E não só isso. Acredita que renasceu um desejo de mudar o mundo, a vida ... e a nós mesmos.
“A partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim, passamos a pensar – recorda - que a revolução tinha sido abolida. Que um grande ciclo revolucionário iniciado com a Revolução Francesa se acabava. Muitos historiadores diziam que havia acabado. Também a história. Mas, nota-se que não. Continua existindo lutas, insurreições e revoltas. O poder continua aí e continua sendo contestado. E estamos em um momento em que o neoliberalismo é colocado em questão em muitos lugares do mundo, e os políticos autoritários também”, avalia.
“Na França, os coletes amarelos são um sintoma ou um sinal dessa revolta geral no mundo. É a revolução? O modelo da revolução bolchevique imposto durante todo o século XX, uma grande referência de todos os movimentos revolucionários, penso que acabou definitivamente após 1968. Contudo, não se deve confundir o fim do modelo bolchevique com o da revolução. Ao contrário, o momento em que vivemos é um despertar, um renascimento de formas de desejo de mudar a vida, o mundo, a sociedade e a nós mesmos, porque o neoliberalismo se tornou totalmente insuportável, intolerável por causa das desigualdades sociais muito evidentes, hoje, e pela crise ambiental relacionada. Isso faz pensar que a juventude do mundo inteiro finalmente se revolta”, pondera.
Estudioso das ideias de Jeremy Bentham, criador do utilitarismo, Laval recorda que com ele nasceu o Homo economicus, que há algumas décadas se transformou em um homem-empresa que está em inovação e desequilíbrio perpétuo, obrigado a superar sua pontuação continuamente.
“Bentham queria que tudo fosse útil e formulou, no final do século XVIII, o princípio da sociedade moderna. Fundada sobre o cálculo da utilidade, seus indivíduos têm como motivação para a ação apenas o interesse pessoal. Com o neoliberalismo, na metade do século XX, esse homem de mercado se transforma de maneira sutil em homem-empresa”.
O homem-empresa, aponta, “é a representação antropológica do management, da contabilidade, do marketing. É um investidor e em tudo o que faz deve pensar na rentabilidade de seus estudos, saúde, trabalho, vida sentimental e sexual. Isso teve um efeito na linguagem. Gerenciar é a palavra mais utilizada da língua. Tudo é gerenciado. A empresa se torna a lógica geral e, portanto, a concorrência é o modelo com o qual devemos nos envolver. Todo indivíduo está preso na rede fina dessa concorrência. E não estamos bem, ao contrário, mal”.
Porque, avalia, “todos estão em concorrência por tudo e as pessoas acabam sofrendo. Além disso, é algo que permite diminuir os meios: são dados aos que mais ‘merecem’, aos outros, pouco. Durante anos, as pessoas não disseram nada, acumularam sofrimento, pareciam passivas e, em um determinado momento, surgiu um movimento de massas e os governos estão desestabilizados”.
O sociólogo destaca que já tivemos episódios revolucionários, em nível mundial, e hoje há algo “que se parece um contágio em todas as partes. E o movimento entre diferentes partes do mundo dá sinais. Entre Hong Kong e Barcelona, há ecos. Entre Chile e os coletes amarelos, há referências comuns”.
Em sua opinião, os coletes amarelos franceses “se rebelam contra a situação social em que vivem, com frequência situações precárias e que se degradam. São pessoas que vivem nas periferias e são as primeiras vítimas da redução de auxílios e do desaparecimento dos serviços públicos. A novidade é que surgiram distantes das organizações políticas e sindicais. É um momento de crise muito profunda da representação política. Daí a ambiguidade do movimento, que desenvolveu traços nacionalistas e canta La Marseillaise, não A Internacional. E inventou um novo símbolo, o colete amarelo, extraordinário, símbolo da revolta no mundo”.
Adverte que é um movimento muito heterogêneo, mas há tentativas de concorrer às eleições municipais com listas cidadãs. “Acreditam que a democracia local é um bem precioso. É um movimento muito local. A primeira coisa que fizeram foi ocupar praças perto dos centros comerciais, pequenas praças, em vez de grandes praças. E reivindicam referendos locais, distantes da ideologia muito centralista da extrema direita”.
Para Laval, são uma contestação ao fato do sistema estar “desconectado de suas vidas e prisioneiro de processos globais”. Mesmo assim, para que explorassem era necessário que esses processos se encarnassem em alguém. E chegou Macron. “Representa o sistema e as forças globais. Lançou a carta régia e começou seu reinado dizendo que exerceria um poder jupiteriano. É preciso ser francês e fanático pelo centralismo para dizer algo assim. E disse isso sem rir”.
“Seu eleitorado responde ao fenômeno da concentração de riqueza em algumas cidades globais. Não foi eleito pelas periferias. Seu golpe de gênio foi conseguir fundir dois eleitorados: as frações modernizadoras da centro-direita e centro-esquerda. Seu livro de campanha eleitoral se chamava “Revolução”. Ele a prometeu. E fez uma política radical de direita, que a direita não havia ousado. Sobre o mercado de trabalho, os impostos, a educação. E tem a ideia da nação startup. O mesmo que fala do poder jupiteriano. Arcaísmo e modernidade”.
Contudo, se o neoliberalismo está em crise, disse, também é muito plástico, e também há o neoliberalismo autoritário ao modo Bolsonaro ou Trump, “que reciclam a raiva social, transformando-a em movimentos de demanda por mais autoridade, de um chefe que dê soluções”. No outro lado, aponta, a social-democracia europeia está prestes a desaparecer por aplicar a política neoliberal.
E mais à esquerda, tudo ainda está para nascer: muitas forças, destaca, acreditam ter encontrado no comum uma base doutrinal, mas são necessárias mais experiências para que se desenvolva. “O socialismo do século XIX também precisou de tempo. Em 1820, havia Saint-Simon, Proudhon, Fourier, mas o socialismo como doutrina e partido nasceu no final do século. Frente a novos problemas, inventar novas respostas demanda tempo e erros”, conclui.
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“Frente a novos problemas, inventar novas respostas demanda tempo e erros”, afirma Christian Laval - Instituto Humanitas Unisinos - IHU