24 Novembro 2019
"Possivelmente tenha sido o judeu mais conhecido do Brasil por muitas décadas, sempre identificado não apenas com a religião e a cultura judaicas, mas com a tolerância e a defesa dos direitos de todos os homens e mulheres, não importa sua religião, cor ou orientação sexual", escreve Jayme Brenner, em artigo publicado por Jornalistas Livres, 22-11-2019.
Tikkun Olam é um conceito bastante caro ao judaísmo. Significa, literalmente, “consertar o mundo”. E, como tudo no judaísmo, tem 5.000 interpretações diferentes. Uma delas traduz Tikkun Olam como o compromisso que o judeu e a judia têm com o mundo, além de sua família e de sua comunidade.
Seja qual for a tradução que se escolha, ela se aplica perfeitamente a Henry Sobel (1944-2019), rabino cuja trajetória representou um compromisso permanente, muito além da comunidade judaica, com os direitos humanos no Brasil e com o mundo.
Nascido em Portugal, de família polonesa refugiada do nazismo, Sobel criou-se nos EUA e chegou no início dos anos 1970 como jovem rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), preferindo o Brasil a uma oferta na Suíça. Seguindo a regra do “no Brasil, como os brasileiros”, logo escolheu seu clube de futebol — o Corinthians, que terminaria trocando pelo São Paulo por influência de amigos.
Com pouco mais de 30 anos e falando um português ainda capenga, viu-se no meio de um vendaval: o assassinato do jornalista judeu Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura, cometido pelos órgãos de repressão do regime militar. Sobel não aceitou a versão oficial de suicídio e recusou-se a autorizar o sepultamento de Herzog na ala reservada aos suicidas do Cemitério Judaico do Butantã.
Dom Paulo e Henry Sobel no enterro de Herzog. (Foto: Divulgação)
É inesquecível sua imagem ao lado de outros dois gigantes do humanismo —o cardeal d. Paulo Evaristo Arns e o reverendo Jaime Wright — no culto ecumênico em homenagem a Herzog, na praça da Sé, um marco fundamental para o avanço da luta que culminaria com o fim da ditadura, quase dez anos depois.
O papel de Sobel fez com que o Brasil o adotasse. O corte de cabelo sui generis e o sotaque inconfundível (como esquecer seu “queridos irmãos” nova-iorquino?) o transformaram em personagem obrigatório do cenário político, cultural e religioso do país.
Possivelmente tenha sido o judeu mais conhecido do Brasil por muitas décadas, sempre identificado não apenas com a religião e a cultura judaicas, mas com a tolerância e a defesa dos direitos de todos os homens e mulheres, não importa sua religião, cor ou orientação sexual.
Tive a sorte de testemunhar cenas inesquecíveis: Sobel interrompendo uma importante reunião comunitária para atender à liderança do Movimento dos Sem Terra e intermediar uma conversa com um governador de estado, também judeu.
Ou sua decisão de abrir a sinagoga da CIP para um ato ecumênico em homenagem a um jornalista judeu argentino, torturado em seu país, e que se suicidou no Brasil. Para muitos líderes religiosos judaicos, essa homenagem deveria ser vetada a um suicida, já que o ato representa uma ofensa à vida.
Henry Sobel comprometeu-se com o mundo e abraçou o Brasil. Mas também foi abraçado e protegido pelo Brasil democrático, até em momentos polêmicos, principalmente em seus últimos anos de vida, marcados por sérios problemas de saúde que dificultaram sua atuação.
A morte de Sobel em um momento em que crescem a intolerância, o racismo e o antissemitismo no mundo e em que, no Brasil, os direitos humanos, para muitos, deixam de ser um compromisso obrigatório e se reduzem a “coisa de quem defende bandidos”, um Tikkun Olam parece obedecer a um timing perfeito. Hora de sair de cena.
Enquanto Amanda, sua esposa, a filha Alisha e todo o país choram a morte de Sobel, a essa altura, o rabino americano mais brasileiro que já houve deve estar reunido com seus amigos Jaime Wright e Paulo Evaristo Arns, todos lamentando os tempos difíceis. O Brasil democrático amanhecerá mais pobre amanhã.
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Morre um justo, o rabino Henry Sobel, herói dos direitos humanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU