09 Outubro 2019
Pressionada por parceiros internacionais preocupados com a imensa quantidade de agrotóxicos liberada pelo governo, mais de 300 desde janeiro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, recorreu a mais uma mitologia. Segundo ela, o clima no Brasil não é favorável ao cultivo de orgânicos e só resta aos produtores a alternativa de bafejar pesticidas nas plantações.
A reportagem é de René Ruschel, publicada por CartaCapital, 08-10-2019.
E o ritmo de novas autorizações não para. Na terça-feira 1º, o ministério anunciou a análise de mais 33 pedidos de liberação de agrotóxicos, para alegria da indústria que encontra cada vez mais dificuldade para desovar seus produtos em nações desenvolvidas. Não se trata apenas de volume. O País impõe limites de toxicidade absurdamente mais elevados que aqueles permitidos nas principais economias do planeta. Um trabalho elaborado pela pesquisadora Larissa Bombardi, “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a Comunidade Europeia”, aponta a diferença entre os limites locais e aqueles adotados na União Europeia.
Embora as metodologias sejam diferentes, assim como os anos apurados, um estudo elaborado pela European Envinroment Agency, em 2008, “Use of Herbicides Across Europe”, mostra que na UE a escala não passa de 2 quilos por hectare – e essa quantidade só é utilizada em um único país, a Bélgica. No Brasil, a média de consumo do glifosato nos estados da Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Mato Grosso do Sul oscila entre 5 e 9 quilos por hectare. No Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás e Mato Grosso, esse número cresce assustadoramente: entre 9 e 19 quilos.
Segundo o professor Pablo Moritz, diretor do Centro de Formação Toxicológica do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina, não existe um jeito seguro para o uso de agrotóxicos na produção de alimentos. “Nos períodos de maior vulnerabilidade do nosso corpo, como gravidez, infância e adolescência, qualquer dose pode provocar graves doenças”, afirma.
O resultado dessa engenharia da morte é que a presença de herbicidas nos alimentos tende a ser fatal à saúde humana. Existem quatro graves consequências, enumera Moritz. A primeira, chamada de neurotoxicidade, age diretamente no sistema nervoso periférico. A ciência comprovou que, mesmo em pequenas doses ou porções, os agrotóxicos, neste caso notadamente os inseticidas, causam sérios problemas, principalmente em crianças, como alteração no QI, déficit de atenção, hiperatividade, autismo e transtornos psiquiátricos. Na vida adulta, é o gatilho para uma série de doenças neurológicas.
A segunda é a chamada toxicidade endócrina, que afeta os órgãos regulados por hormônios. As principais doenças são obesidade, diabetes, infertilidade, puberdade precoce e o câncer em órgãos que dependem de hormônio – mama, próstata, ovário e testículo.
A terceira é o câncer. O glifosato, agrotóxico mais utilizado, é, de acordo com inúmeros estudos científicos, altamente cancerígeno. Pesquisas recentes relacionam os pesticidas à incidência de leucemia, linfomas e tumores sólidos no sistema nervoso central. Por fim, estimula-se a chamada disbiose intestinal, um desequilíbrio causado pela diminuição do número de bactérias boas do intestino e o aumento das bactérias capazes de causar doença.
No Brasil, entre 2007 e 2014, foram registradas quase 2 mil mortes por intoxicação agrícola, média de 148 óbitos por ano ou um caso a cada dois dias e meio. O campeão é o Paraná, com 231 falecimentos no período, seguido por Pernambuco (151) e o trio São Paulo, Minas Gerais e Ceará (83 cada um).
Os registros oficiais do Ministério da Saúde apontam que, no mesmo período, os casos de intoxicação por agrotóxicos superam 25 mil. O alarmante nesta estatística é que, para cada caso notificado, pode haver 50 outras não notificadas. “Os casos apontados no Mapa são apenas a ponta do iceberg, cerca de 2% do total”, escreveu Bombardi. Por conseguinte, continua ela, “é possível haver 1,25 milhão de intoxicações no País por agrotóxico”. Na mesma lógica, o número de óbitos seria muito maior.
Outro fator preocupante é a quantidade de mortes de bebês com até 12 meses. No período, foram anotados 343 casos, média de 49 por ano. O Paraná também lidera esta lista (41), seguido por Minas Gerais (35) e Pernambuco (28). Uma criança nessa idade não se locomove sozinha. Isso demonstra claramente o risco a que estão expostas pela presença de veneno no ambiente familiar, na convivência comunitária ou no uso desenfreado do produto, inclusive pela pulverização da área. Vale lembrar que na Comunidade Europeia não é permitido o uso de aviões na aplicação dos produtos.
Sônia Hess, engenheira química e pesquisadora na área de química orgânica e saneamento ambiental, afirma que a cada dia “estamos sendo mais e mais envenenados”. Para os cientistas, diz ela, não há novidade nessa descoberta, mas a população não consegue entender o risco latente pela falta de informações. “A mídia tradicional sobrevive justamente das empresas que produzem venenos.” Ela lembra os mais de 300 produtos autorizados só neste ano pelo governo Bolsonaro. “Isso mostra que a saúde pública não é prioridade, mas o lucro das empresas e os resultados econômicos.” Dentre todas as medidas para amenizar os efeitos, afirma, a mais importante é a preservação dos mananciais, a partir de medidas para evitar que sejam jogados lixo e esgotos nos rios e o uso de veneno em lavouras próximas. “Precisamos de uma legislação rigorosa que proteja a água.” É pouco provável que algo nessa linha venha a ser aprovado neste governo.
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Número de mortes e doenças causadas por agrotóxicos está subestimado, diz pesquisadora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU