18 Setembro 2019
“O suposto sujeito soberano acabou sucumbindo à exofobia contemporânea projetando o negativo para fora, em uma visão turva e ameaçadora, aceitada supinamente. Como se tudo tivesse que permanecer necessariamente no interior, sob o sinal da imunização.”
Publicamos aqui um trecho da “lectio magistralis” que a filósofa italiana Donatella Di Cesare proferirá em Carpi, Itália, no próximo domingo. Di Cesare é professora da Universidade de Roma “La Sapienza”.
O artigo é publicado por Il Manifesto, 14-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como poderíamos descrever hoje o mundo do capitalismo avançado? Não como um “palácio de cristal”, nem como um labirinto de “passages”, as duas famosas metáforas propostas por Dostoiévski e Benjamin. A imagem é mais a de um shopping center planetário, aberto 24 horas por dia, operando de acordo com o ritmo imparável das “24 horas por dia, 7 dias por semana”. O exterior foi sugado pelo interior.
Tudo é constantemente iluminado por uma narcose de luz, em que o dia aspira a se tornar permanente. Os limites implodem: não só entre exterior e interior, mas também entre luz e escuridão, atividade e descanso, sono e vigília. Na longa noite do capital, iluminada com um dia permanente, nenhuma pausa é permitida. O ambiente artificial intensamente iluminado favorece um sonambulismo de massa.
O céu é sem estrelas, sem pontos de orientação. Porque as estrelas, mesmo que existissem, não seriam mais visíveis, ocultas pela alta intensidade do brilho que se confunde com os miasmas da poluição. Sob esse céu vazio, opera rapidamente o supermercado planetário, que permite uma variedade infinita de ofertas, mas que não admite a possibilidade de um além.
Altura e profundidade parecem perdidas. O supermercado planetário se estende horizontalmente, integrando tudo em seu interior, em uma planura desarmante, que desmente todo “fora”. Chamei de “imanência saturada” o regime de um globo sem janelas, o do capitalismo em estado avançado. A imanência deve ser entendida no sentido etimológico daquilo que permanece em si, sempre dentro, sem fora, sem exterioridade. A saturação é espaço-temporal.
Isso poderia surpreender. Não seria este, talvez, o mundo dos fluxos absolutos, do capital, da técnica, da mídia? Não é o mundo da aceleração? É claro. Mas, olhando bem, a economia em vórtice do tempo descreve as mesmas órbitas. A rapidez precipita na estase, a aceleração acaba na inércia. O selo do globo sincronizado é uma mudança inercial.
O mundo da imanência saturada é aquele que pretendeu se imunizar de tudo o que está fora e evitar toda alteração. Esse mundo do capitalismo tardio é o da catástrofe ecológica iminente, da qual, muito frequentemente, se esquece a responsabilidade: a incandescente soberania do capital. Assim, já é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. O mundo da imanência saturada é o do regime capitalista-global, em que se oscila entre o não evento do fluir liberal-democrático e o iminente colapso planetário.
Aqui, domina uma exofobia, um medo abismal, um frio pânico por aquilo que é externo, por aquilo que está acima e além. Permanece-se no interior, aceitando um fechamento espacial que é também uma prisão temporal. Falta de sensibilidade, privação de memória, redução das faculdades perceptivas, impossibilidade de reflexão caracterizam o sonambulismo de massa.
Quais são os efeitos dessa exofobia sobre a existência? O que significa habitar na imanência saturada do supermercado planetário?
Aqui, não se trata tanto da questão ética que diz respeito à expulsão do outro, mas sim da questão psicopolítica que investe sobre o “eu”. E o “eu” incapaz de se estender para fora, pronto para compartilhar todas as imagens exofóbicas? Aquelas que o pressionam a temer a perda de força de gravidade, a perda de identidade local, a perda de lugar e de posto de trabalho, devido a uma “invasão” anunciada de fora, a um predomínio dos estrangeiros, a uma invisível ameaça difundida por toda a parte?
A exofobia se traduz em uma redução do outro, que, considerado como um fantasma no espaço externo, não é mais o coabitante, real ou potencial, da esfera comum. Ao contrário, torna-se o representante espectral de tudo aquilo que vem de fora, que constitui uma emergência contínua, um perigo incumbente. Daí a tentação do “eu” de ser cada vez mais sedentário e hiperprotegido, fechando-se em uma limpeza preventiva.
É evidente o encurvamento sobre o próprio ego, em um egoísmo que já se tornou extramoral, fomentado pelo modelo da incorporação ditada pelo consumo. O ego do consumidor soberano, cuja existência é medida em poder de compra, cuja liberdade se condensa na escolha entre produtos diferentes, é, ao mesmo tempo, o ego do eleitor soberano, cujo amor próprio é cada vez menos o amor de si, e cada vez mais o amor do próprio e da propriedade.
Intuem-se os efeitos psicopolíticos exercidos pelo regime de imanência saturada. Isso vale ainda mais na época da soberania anunciada, do soberanismo reivindicado pelos Estados, mas também – não devemos esquecer – pelos sujeitos. O “eu” que quer ser soberano é paradoxalmente o mais assujeitado e subjugado pela psicopolítica neoliberal.
Esse “eu” egoico foi se afundando inexoravelmente em si mesmo. Enquanto existir significa emergir de si, estender-se para fora, o seu existir se tornou um desconsolado in-sistir, que pesa sobre o próprio centro. Assim, ele se fundiu teimosamente em si mesmo, sem encontrar mais a fresta para o além.
O suposto sujeito soberano acabou sucumbindo à exofobia contemporânea projetando o negativo para fora, em uma visão turva e ameaçadora, aceitada supinamente. Como se tudo tivesse que permanecer necessariamente no interior, sob o sinal da imunização.
Sobre esse “eu” fechado, encurvado sobre si mesmo e solidário apenas consigo mesma, é perpetrada uma repressão sutil, uma pressão destrutiva, que se manifesta como depressão. Com isso, não se deve entender um distúrbio que alguns sofreriam, mas sim a própria patologia do mundo sem “fora”. A depressão deveria ser entendida não só e não tanto como aviltamento, mas também como impossibilidade de se levantar e certamente também como cativação, ou seja, aquele tornar-se “captivus”, prisioneiro.
Esse “eu” deprimido e sonâmbulo que, impassível, viu outros naufragarem diante dos seus olhos, naufragou em si mesmo. Além disso, no mundo da indiferença pós-imunitária, da voracidade bulímica, da plenitude do “eu”, não pode haver hospitalidade. Porque a hospitalidade é interrupção do “eu”. Aqui, porém, os cálculos não funcionaram: não se previu que a negação do outro também seria autonegação. Assim, pôs-se em movimento uma espiral de autodestrutividade.
Habitar é sinônimo de existir, no sentido de estar no mundo. Contanto que o mundo não seja considerado como um contêiner. É precisamente esse o caso do supermercado planetário, um universo cada vez mais inabitável.
O regime da imanência saturada é o globo atravessado e percorrido por redes digitais, em que é eliminada toda estranheza/estrangeiridade, na qual o “eu”, fechado no leito dos fluxos, que não admitem interrupção, perdeu a excentricidade, a saída do centro e está tão desorientado como nunca.
A resposta, porém, não está em uma hiperimunização reacionária que idolatra o lugar, que sacraliza a casa, que presta louvores à pátria étnica. O “eu” que afirma não poder existir senão no lugar onde põe os pés, do qual imagina ter a propriedade e, por isso, a faculdade de excluir os outros é aquele “eu” que já se afogou.
Tornar o mundo habitável significa opor à exofobia uma exofilia, uma amizade pelo exterior, também e precisamente lá onde ele parece ser mais estranho, onde atemoriza e assusta. A limpeza preventiva do “eu” que pretenderia ser sedentária e hiperprotegida leva ao naufrágio. Somente a traumática alavanca do outro pode nos fazer sair da narcose do atordoamento.
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Do sonambulismo de massa à exofobia. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU