18 Mai 2018
“Diante da imensidão e onipresença dos atuais sistemas econômico-financeiros, podemos ser tentados a nos resignar ao cinismo e a pensar que, com nossas pobres forças, não podemos fazer muito. Na realidade, cada um de nós pode fazer muito, especialmente se não fica sozinho”. É a conclusão do documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones, aprovado pelo Papa Francisco e redigido pela Congregação para a Doutrina da Fé e pelo Dicastério para o Serviço ao Desenvolvimento Humano Integral, que propõe “considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico e financeiro”.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 17-05-2018. A tradução é do Cepat.
O texto identifica riscos, injustiças e imoralidades no atual sistema. Mas também sugere soluções: pede maiores regras para que todos tenham garantias, propõe um imposto mundial sobre as transações offshore (que poderia resolver o problema da fome no mundo) e convida a realizar mudanças estruturais para resolver o problema da dívida pública de muitos países.
A primeira parte do documento se ocupa dos fundamentos éticos. A ordem ética, “arraigada na sabedoria de Deus Criador”, é “o fundamento indispensável para edificar uma comunidade digna dos homens, regulada por leis inspiradas na justiça real”. Reconhecendo que “o bem-estar econômico global”, sem dúvida, “aumentou na segunda metade do século XX”, constata-se que, “ao mesmo tempo, aumentaram as desigualdades entre os diferentes países e dentro deles. O número de pessoas que vivem na pobreza extrema continua sendo enorme”.
“A recente crise financeira – lê-se no texto – era uma oportunidade para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e à nova regulação da atividade financeira”; no entanto, apesar de alguns esforços positivos, “não houve nenhuma reação que tenha levado a repensar os critérios obsoletos que continuam governando o mundo. Ao contrário, às vezes, parece voltar a estar no auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo”. Por isso, é necessária “uma ética amiga da pessoa”, uma visão do ser humano “entendido como sujeito constitutivamente incorporado em uma trama de relações”. O progresso não pode ser medido “apenas com parâmetros de quantidade e eficácia na obtenção de lucros, mas tem que ser avaliado também com base na qualidade de vida que produz”. O bem-estar não pode ser avaliado somente segundo o PIB, requer outros parâmetros como “a segurança, a saúde, o crescimento do ‘capital humano’, a qualidade da vida social e do trabalho”.
O documento aponta que a liberdade “da qual gozam, hoje em dia, os agentes econômicos, entendida de modo absoluto e separada de sua intrínseca referência à verdade e ao bem, tende a gerar centros de supremacia e a se inclinar para formas de oligarquia, que em última instância prejudicam a própria eficiência do sistema econômico”. A política parece impotente diante das grandes redes econômico-financeiras supranacionais: “Isto torna, hoje, mais do que nunca, urgente uma aliança renovada entre os agentes econômicos e políticos”.
Não é possível fingir não ver que os mercados não são capazes de se regular por si mesmos: “de fato, estes não são capazes de gerar os fundamentos que lhes permitam funcionar regularmente (coesão social, honestidade, confiança, segurança, leis...), nem de corrigir os efeitos externos negativos (diseconomy) para a sociedade humana (desigualdades, assimetrias, degradação ambiental, inseguridade social, fraude...)”.
E não são suficientes as “boas e corretas intenções” dos agentes: não é possível “ignorar que na atualidade a indústria financeira, devido a sua onipresença e a sua inevitável capacidade de condicionar e, em certo sentido, de dominar a economia real, é um lugar onde os egoísmos e os abusos têm um potencial sem igual para causar dano à comunidade”. Há muitos casos de “imoralidade próxima”, que geram “abusos e fraudes, especialmente em prejuízo da outra parte em desvantagem”. Por exemplo, “comercializar alguns produtos financeiros, em si mesmos lícitos, em situação de assimetria, aproveitando as lacunas de informação ou a fragilidade contratual de uma das partes”, como muitas vezes acontece quando o cliente subscreve produtos financeiros sem estar ciente de seus riscos reais.
Também a “financeirização” do mundo da empresa, “em si mesmo um fato positivo”, “implica hoje o risco de provocar um mau financiamento da economia, fazendo com que a riqueza virtual, concentrando-se principalmente em transações marcadas por uma mera tentativa especulativa”, atraiam “excessivas quantidades de capitais, subtraindo-as ao mesmo tempo dos circuitos virtuosos da economia real”. O rendimento do capital “persegue de perto e ameaça suplantar a renda do trabalho, muitas vezes, confinado à margem dos principais interesses do sistema econômico”.
O documento recorda “a função social insubstituível do crédito” e lamenta a aplicação de taxas de juros “excessivamente altas”, que contaminam o sistema econômico e representam, nos fatos, práticas de usura. Por outro lado, são positivas e devem ser favorecidas “realidades como o crédito cooperativo, o microcrédito, assim como o crédito público a serviço das famílias, empresas, comunidades locais e o crédito para a ajuda aos países em desenvolvimento”. Ao contrário, é inaceitável lucrar à custa dos demais ou perturbando o bem-estar coletivo, como infelizmente acontece “quando uns poucos – por exemplo, importantes fundos de investimento – tentam obter lucros mediante uma especulação encaminhada para provocar diminuições artificiais dos preços dos títulos da dívida pública, sem se preocupar em atingir negativamente ou agravar a situação econômica de países inteiros”. Em relação às enormes dívidas públicas que as diferentes nações acumularam, afirma-se que “os Estados são chamados a reverter a situação com uma adequada gestão do sistema público, mediante sábias reformas estruturais”.
Por isso, é preciso apostar na “saúde do sistema econômico internacional”, evitando as contaminações de “instrumentos econômico-financeiros pouco confiáveis”. É necessário “introduzir uma certificação das autoridades públicas para todos os produtos que provêm da inovação financeira”, e é urgente “uma coordenação supranacional entre as diferentes arquiteturas dos sistemas financeiros locais”. A saúde do sistema depende de sua “biodiversidade”, que garante “aos mercados a presença de uma pluralidade de sujeitos e instrumentos sadios, com riqueza e diversidade de caracteres”.
É mais que nunca necessária uma regulamentação devido à dimensão “supranacional do sistema econômico”, que permite “burlar facilmente as regras estabelecidas pelos diferentes países”. Por isso, o documento espera que haja e se mantenha “uma coordenação estável, clara e eficaz entre as diversas autoridades nacionais de regulação dos mercados”, e recorda que onde “se praticou uma desregulamentação massiva” foram verificadas “bolhas especulativas”, “repentinos colapsos ruinosos” e crises sistêmicas.
Para evitar estas crises, sugere a Santa Sé, seria necessário “estabelecer para os intermediários bancários de crédito uma clara definição e a separação da gestão de carteira de créditos comerciais e aquela destinada ao investimento ou à negociação de carteira própria”. Cada investidor deveria saber, antecipadamente, “se os próprios capitais são usados com fins especulativos ou não”.
O documento aponta que são moralmente criticáveis “os excessivos movimentos do portfólio de títulos, com o propósito principal de aumentar os ingressos gerados pelas comissões do intermediário”, sobretudo quando se pensa nos lucros e não nas exigências do cliente. Por isso, é necessário inverter esta tendência e, neste sentido, seria mais que pertinente instituir “Comitês éticos, que funcionassem junto aos Conselhos de Administração”. O documento menciona exemplos negativos, como os “títulos de crédito de alto risco”, que enriquecem os intermediários, mas criam “facilmente insolvência”, gerando (como no caso da titulação de hipotecas subprime) “intoxicação em amplos setores e dificuldades potencialmente sistêmicas”. É urgente, pois, “uma regulamentação e avaliação pública ‘super partes’ do comportamento das agências de rating do crédito”.
O documento também se refere aos credit default swap (CDS), que ao transferir o risco de crédito apostam no fracasso das empresas, que favoreceram o “crescimento de uma finança de risco e de apostas sobre a quebra de terceiros”, provocando “grandes danos a países inteiros e a milhões de famílias” com ações “sumamente imorais”, o que resulta inaceitável do ponto de vista ético.
Destaca-se também a importância de que os bancos contem com “órgãos internos que garantam o adequado controle de conformidade (compliance)” e com normas que declarem “ilegítimos, com a conseguinte responsabilidade patrimonial de todos os sujeitos imputáveis, aqueles atos cujo propósito seja principalmente a evasão da normativa vigente”. Entre outros, cita-se como exemplo negativo “a concessão de empréstimos por parte de um intermediário bancário, subordinada à simultânea subscrição de outros produtos financeiros talvez não favoráveis ao cliente”. Uma referência à história recente, tristemente conhecida, de vários institutos bancários que deixaram na rua muitos pequenos poupadores.
Além disso, o documento convida a não ignorar os sistemas bancários colaterais (Shadow banking system), que “determinaram de fato uma perda de controle sobre o sistema por parte de diversas autoridades de vigilância nacionais”. É importante a passagem do documento dedicado aos grandes sujeitos do comércio mundial “que reduzem drasticamente sua carga fiscal transferindo os ingressos de um lugar para o outro, dependendo do que lhes convenha, transferindo os lucros aos paraísos fiscais e os custos aos países com altos impostos”. Estas atividades subtraíram recursos fundamentais da economia real e geraram sistemas econômicos baseados na desigualdade.
Não é possível ignorar que essas sedes offshore, em várias ocasiões, tornaram-se lugares “de lavagem de dinheiro 'sujo', ou seja, fruto de lucros ilícitos (roubo, fraude, corrupção, associação criminosa, máfia, pilhagem de guerra...)”. De qualquer modo, “justamente a evasão fiscal dos principais atores que se movem nos mercados, especialmente os grandes intermediários financeiros, o que representa uma abominável subtração de recursos da economia real e um dano para toda a sociedade civil”.
A proposta concreta que o documento apresenta é a seguinte: “calculou-se que bastaria um imposto mínimo sobre as transações offshore para resolver grande parte do problema da fome no mundo: por que não fazer isso com coragem?”. O sistema offshore, “nos países com economias menos desenvolvidas”, “piorou a dívida pública”, diante das riquezas acumuladas nos paraísos fiscais por sujeitos privados que “tendem a buscar a socialização das perdas, frequentemente, com a conivência dos políticos”.
Para concluir, o documento avalia positivamente tudo o que se move “de baixo” como as redes de consumidores ou a possibilidade de “votar com a carteira, e orientando-se para eleger “bens de consumo por trás dos quais há um processo eticamente digno”. Trata-se, pois, de “votar diariamente no mercado a favor do que ajuda no verdadeiro bem-estar de todos nós e rejeitar o que o prejudica”. E o mesmo vale para a poupança, que deveria se dirigir às “empresas que operam com critérios claros, inspirados em uma ética respeitosa do homem todo e de todos os homens e em um horizonte de responsabilidade social”.
Não se deve se resignar à “onipresença” do atual sistema econômico-financeiro, porque “cada um de nós pode fazer muito, especialmente se não fica sozinho [...] Hoje, mais do que nunca, todos somos chamados a vigiar como sentinelas da vida boa e a nos tornar intérpretes de um novo protagonismo social”. Com esta exigência de estabelecer novas regras para tutelar principalmente os mais fracos, para realizar reformas estruturais e dar valor às experiências positivas existentes, o documento, que provocará discussões entre os fanáticos da “desregulamentação” e dos mercados que se “autogovernam”, faz parte de um processo novo, para realizar a partir “de baixo” um ecossistema econômico-financeiro no qual o impacto social e o bem comum não sejam somente palavras vazias ou elementos publicitários.
Há poucos dias, anunciou-se o nascimento da Fundação Quadragesimo anno, durante um congresso na Universidade Lateranense, que pretende criar um sistema de certificação para investimentos e para empresas segundo os critérios da Doutrina Social da Igreja.
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“Sistemas econômico-financeiros onipresentes. Mas podemos mudar juntos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU