24 Julho 2019
"Não existe outra civilização além da Ocidental que tenha dado tamanha importância ao sentimento de culpa e à vergonha. O medo também gera um pessimismo em relação à salvação de cada um, acentuado ainda mais entre os que assumem as teses da predestinação, que deixa as pessoas na dúvida e na angústia da possível condenação eterna", escreve Chiara Puppini, escritora, em artigo publicado por Esodo, n. 2, de maio-junho de 2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ela, "o exame de consciência praticado e solicitado pelos predicadores daqueles séculos leva a uma atenção ao 'eu', a uma afirmação do individualismo, que preanunciam um movimento em direção a uma responsabilização das pessoas e a uma laicização da sociedade, iniciando o processo de modernização cultural do mundo ocidental".
A peste é, sem dúvida, entre todas as calamidades desta vida, a mais cruel e certamente a mais atroz. É com razão que é chamada por antonomásia de Mal, pois não há mal na terra que possa ser comparado à peste ou semelhante a ela. A partir do momento em que esse fogo violento e impetuoso irrompe em um reino ou república, vemos os magistrados desorientados, as populações amedrontadas, o poder político incapaz de agir. A justiça não é mais respeitada; as atividades se interrompem, as famílias perdem sua coesão e a ruas sua animação.(1)
As pestilências se repetiam com uma frequência de quase dez anos entre os séculos XV e XVI, mas ainda no final do século XVII a peste provoca a angústia que deriva da inexorabilidade e aleatoriedade da morte. Na ausência de uma explicação científica, que viria apenas em 1894, quando Alexandre Yersin descobriria a bactéria que vive na pulga do rato, três explicações foram formuladas no passado: uma atribuível aos sábios, outra ao povo e outra à igreja. A primeira atribuía a epidemia à contaminação do ar ou às emanações pútridas do subsolo, que acompanhavam fenômenos celestes como aparições de cometas ou funestas conjunções de astros; a segunda procurava um bode expiatório nos untores que propagavam a doença e, portanto, deviam ser processados e punidos; a igreja indicava a fúria de um Deus enfurecido por um povo pecador, que precisava ser aplacado com penitências e orações. Essas explicações muitas vezes se entrelaçavam porque Deus poderia anunciar sua ira através de fenômenos celestes, e demônios e feiticeiros podiam se tornar um instrumento pelo qual Deus despejava sua vingança sobre homens pecadores. (2)
Além disso, verificavam-se carestias devidas a fenômenos naturais como secas, inundações, muitas vezes também como consequência de guerras ininterruptas que cobriam de sangue a Europa entre os séculos XIV e XVIII, acompanhadas por estupro e pilhagens. Aldeias inteiras viviam aterrorizadas com a aproximação de exércitos armados e famintos, que, na maioria das vezes, eram deixados livres por seus comandantes para saquear e satisfazer todos os desejos. Um medo sempre incumbente era causado por situações consideradas insuportáveis por impostos demasiado onerosos, que muitas vezes provocavam revoltas populares, como relata um "cahier de doléances" dos estados da Normandia de 1634: Senhor, vamos parar o horror diante das misérias do pobre camponês; vimos alguns deles, nos últimos anos, morrerem pelo desespero de não poder suportar o ônus, outros mantidos vivos pela paciência mais que pelo prazer ou pelos meios de conservá-la, atrelados ao jugo do arado, como bestas de carga... Não obstante isso, nossos impostos não diminuíram, aliás aumentaram, até o ponto de arrancar a camisa que restava para cobrir a nudez dos corpos, e ver em muitos lugares as mulheres impedidas, pela confusão de sua vergonha, de frequentar as igrejas e outros cristãos. (3)
A Europa renascentista, celebrada por suas luzes e a racionalidade voltada para uma explicação científica do universo, que começava a se expandir com a descoberta de novos mundos e a abertura de novos comércios, também gerou muitas sombras, que perturbaram os homens em todos os aspectos da vida cotidiana, governada por preceitos religiosos. O medo de qualquer mudança provocava insegurança e, para imaginar um futuro sereno, olhava-se para trás, sonhava-se com um tempo feliz, aetas aurea, agora perdido pelo pecado dos homens.
Vivia-se grande apreensão para cada novidade, fantasiava-se sobre um passado idílico, alheio à novidade insidiosa. O diverso, o judeu, o estranho, o vagabundo, assim como a mulher, todos eram vistos com desconfiança e medo, tornavam-se o bode expiatório escolhido de tempos em tempos, mesmo que não faltassem exceções.
Paulo IV, que se tornou papa em 1555, afirma na Bula Cum nimis absurdum: É muito absurdo e inconveniente que os judeus, condenados por Deus a uma eterna escravidão por causa de seu pecado, possam, sob o pretexto de serem tratados com amor pelos cristãos e autorizados a viver entre eles, ser ingratos ao ponto de insultá-los, em vez de agradecê-los, e serem tão audaciosos a erigir-se a mestres, quando deveriam ser sujeitos. (4)
A mulher também faz parte da categoria "diverso". Uma leitura do Antigo Testamento feita pelos confessores-casuístas tem um impacto considerável no desenvolvimento de uma mentalidade compartilhada: os antigos sábios nos ensinaram que sempre que o homem fala longamente com a mulher busca a sua ruína e se afasta da contemplação das coisas celestes e, por fim, cai no inferno ... E eu acredito que seja o que quer concluir o paradoxo do Eclesiástico que diz que "é melhor a maldade do homem do que a bondade da mulher". (5)
Além disso, o avanço dos Turcos e do Grande Cisma de Lutero, com o acréscimo de guerras religiosas, preocupavam a Igreja e os estados nascentes na Europa, que se sentem ameaçados. Respira-se uma mentalidade de assédio. Ao Leste, os turcos chegam para sitiar Viena em 1529 e depois em 1683, e a Oeste a descoberta de povos idólatras e considerados selvagens. No interior, os hereges rebeldes reconhecem o poder político-religioso.
Nesse clima vivia-se a expectativa do fim do mundo, recalculado várias vezes a partir de Joaquim de Fiore, precedido por grandes infortúnios e pela vinda do Anticristo, identificado, de acordo com as crenças religiosas, em muitos sujeitos internos – o Papa para os reformadores; Lutero para os católicos – e externos ao cristianismo. Respirava-se um clima apocalíptico claramente evidente no sermão de 1634 de Johann Arndt:
Este modo de viver hoje em uso, impregnado de corrupção e impiedade, não é apenas diametralmente oposto a Cristo e à sua regra, mas dia após dia só acumula tanta ira divina sobre nós e tantas punições que se pode dizer que todo o universo ou quase - céu, terra, fogo e água – se esmera para lançar vinganças sobre nós pelas ofensas feitas ao seu Criador. Todo o edifício do mundo, como que abalado por injusta indignação, ameaça ruir. É por isso que somos castigados com a falta de cereais, somos punidos com o flagelo da guerra, somos por fim torturados pela fome e pela peste. (6)
À luz do Renascimento, delineiam-se as obscuras profecias apocalípticas e as imagens do Juízo povoam as igrejas. A mais notável delas é o Juízo Final de Michelangelo na Capela Sistina, mas outras obras grandiosas são as de Luca Signorelli em Orvieto, as composições de R. Van der Weyden em Beaune, o Juízo Final de Van Eyck em Nova York, o tríptico de Gdansk de H. Memling até o Apocalipse de Durer. É, portanto, o medo de perder o consenso por parte dos poderosos da época, homens da Igreja e do Estado, que acende as fogueiras que iluminam de maneira sinistra uma Europa ameaçada pelos Turcos e por novos povos, que assomam ao palco da história europeia.
Os homens, e acima de tudo as mulheres, devem ser freados em seu desejo de conhecimento e independência, porque podem subverter a ordem da Igreja e do Estado, podem pôr em perigo sua própria sobrevivência. No período em que se estava desenvolvendo um poderoso meio de comunicação, uma verdadeira revolução através do uso da imprensa, acentua-se o salto cultural entre literatos e analfabetos. Assim, se tornam poderosos os pregadores, como Vincent Ferrier, um dominicano convicto da iminência do Juízo universal, que em cerca de vinte anos percorre um grande território amplo uma vez e meia a França, partindo de Avignon e pregando em Provença, Saboia, Delfinato, Piemonte, talvez Lombardia. Depois Castela, Aragão, Bretanha. Ele morreria em 1419 em Vennes. Mas o medo de espalhar através da imprensa afirmações doutrinárias diversas do magistério da igreja leva à elaboração do Índice dos livros proibidos já em 1546 na Universidade de Lovaina. Depois, em 1571, é instituída a Congregação do Índice.
No mundo rural, em que prevalecia uma mentalidade mágica, também mantida pelo uso de ervas medicinais e rituais antigos, acreditava-se que algumas pessoas tivessem poderes excepcionais, como curar ou fazer adoecer, fortalecer ou destruir um amor. Juízes, que respiravam o clima de assédio, liam tais crenças, que não tinham a aprovação da igreja e da medicina oficial, como inspiradas pelo demônio.
O Malleus Maleficarum ou Martelo das bruxas, no qual se descrevem fatos normalmente inexplicáveis, contribui para identificar a magia popular com a heresia, ligando o crime civil àquele religioso, forçando os tribunais laicos à repressão.
Quase se torna uma bíblia para os inquisidores. Conhece a primeira edição em 1486, depois até 1669 haverá trinta e quatro edições, das quais três são impressas em Veneza. Então, no clima da Reforma, a equação se torna a passagem da feitiçaria diabólica para a heresia.
Entre os séculos XIV e XVI, se multiplicam os manuais para os inquisidores. Respira-se um ar de suspeita, uma situação de estado de sítio. O Fortalicium Fidei de Alphonso de Spina, de 1494, traz como subtítulo "contra hereges, judeus, maometanos e demônios".
Entre 1550 e 1630, as perseguições incendeiam Suíça, Alemanha, França, Lorena, Luxemburgo e Países Baixos, estendendo-se depois para a Inglaterra. São menos frequentes na Itália e na Polônia. Entre 1371 e 1783 quase 12 mil execuções são realizadas.
Para defender-se, é necessário identificar o inimigo.
Trata-se evidentemente de Satanás que furiosamente conduz sua última grande batalha antes do fim do mundo; nesse ataque supremo usa todo instrumento e disfarce. É ele quem permite o avanço dos turcos, é ele quem inspira os pagãos da América; é ele quem habita o coração dos judeus; é ele quem perverte os hereges; é ele que, graças às tentações femininas e a uma sexualidade que há muito tempo é considerada culpada, tenta desviar de seus deveres os defensores da ordem; é ele que, mediante a ação de feiticeiros e, principalmente, de bruxas, perturba a vida cotidiana, fazendo malefícios contra homens, gado e colheitas. (7)
O clima de estado de sítio que a civilização do Ocidente europeu respirava nos séculos XIV e XVII levou assim a identificar o inimigo em Satanás, que insidiava os homens, depois do pecado original. Depois, movimentava um profundo sentimento de culpa coletiva e individual. Um Deus vingador, realmente distante da misericórdia evangélica, envia os flagelos para punir os homens: fome, guerra, peste, turcos, judeus, bruxas, hereges. É preciso fazer penitência e se arrepender. Importante torna-se a figura do "confessor" que abre e fecha as portas do Paraíso e do Inferno.
Mas perto do final do século XVII tornaram-se menos prementes os medos relacionados ao Juízo universal, os turcos, diminuem os processos contra as bruxas, as guerras religiosas, o antissemitismo, já que as igrejas - tanto a católica como as reformadas - e o poder civil haviam posto em ato um processo de "normalização", um modelo de sociedade que garantia uma relativa segurança às populações. A luta contra a blasfêmia, conduzida pelas igrejas e pelo poder político para combater a heresia e o ateísmo, a culpabilidade pelo uso livre da própria sexualidade e do corpo e a consequente culpabilização das mulheres, a luta contra as festas pagãs e a dança, a o uso de lugares sagrados de acordo com comportamentos rigorosos, levaram a uma ordem moral apta a disciplinar uma sociedade rebelde às normas impostas pelo poder político-religioso.
Enquanto na Idade Média o louco e o pobre eram representados como peregrinos de Deus, agora se tornavam uma ameaça à nova ordem moral. Para estes últimos, constroem-se locais de segregação: em Paris, em 1656, é construído um hospício geral para os mendigos, seis anos depois de edito proclama a constituição de um hospício geral em "todas as cidades e grandes burgos” do reino.
Não existe outra civilização que tenha dado tamanha importância ao sentimento de culpa e à vergonha. O medo também gera um pessimismo em relação à salvação de cada um, acentuado ainda mais entre os que assumem as teses da predestinação, que deixa as pessoas na dúvida e na angústia da possível condenação eterna. No entanto, o exame de consciência praticado e solicitado pelos predicadores daqueles séculos leva a uma atenção ao eu, a uma afirmação do individualismo, que preanunciam um movimento em direção a uma responsabilização das pessoas e a uma laicização da sociedade, iniciando o processo de modernização cultural do mundo ocidental.
1) F. de Santa Maria, "Historia das sagradas congregacoes des conedos seculare de S. Jorge en-alga de Venesa e de S. Joao evangelista em Portugal", Lisboa 1697, p. 270-272, citato em J. Delumeau La paura in Occidente, il Saggiatore, Milano 2018, p. 150.
2) J. Delumeau, op. cit., p. 171-172.
3) B. Porchnev, "Les Soulèvements poupulaires en France de 1623 à 1648", Paris, 1963, p. 427, citato em J. Delumeau, op. cit., p. 222.
4)"Bullarium... Summorum rom. Pontificium", Taur. editio, 1860... VI, p. 468, citato em J Delumeau, op. cit. p. 386
5) Benedicti, "La Somme de pechez et remède d'icieux", I ed., 1584, ed. consultada, Paris 1595, p. 347, citada em Delumeau, op. cit., p. 422.
6) Arndt, "De vero Christiano", primeiro prefácio, pág. não numerada, citato em L Delumeau, Il peccato e la paura, l'idea di colpe in Occidente dal XIII al XVIII secolo, il Mulino, Bologna 1987, p. 950.
7) J. Delumeau, La paura in Occidente, il Saggiatore, Milano 2018, p. 505.
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O medo no Ocidente no limiar da Idade Moderna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU