27 Outubro 2017
“Pioneiros no Assentamento da América”, de William A. Crafts (Domínio público, via Wikimedia Commons)
Num período em que as crianças se vestem de bruxas para o Halloween, somos lembrados de que houve um momento em que as bruxas eram perseguidas e executadas pela sociedade.
Para um olhar sobre este período horrível da história europeia, entrevistei o Pe. David Collins, professor jesuíta de história da Universidade de Georgetown.
A entrevista é de Thomas Reese, jesuíta, jornalista, publicada por Religion News Service, 25-10-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Por que se interessou em bruxas?
Acabei me interessando em bruxas porque tinha interesse em magia de um modo geral. Os historiadores estudam magia medieval por causa da luz que ela lança sobre a maneira como as pessoas da Idade Média achavam que o mundo natural funcionava e como poderiam usar, subordinar e tirar vantagem das forças naturais no mundo criado.
Escrevi minha tese sobre os santos. Os milagres formam uma grande parte desta história, e os teólogos medievais, juntamente de figuras eclesiásticas, muito se interessavam em desvendar a diferença entre milagres e magia. Em alguns casos, era até mesmo difícil distinguir entre pessoas a que haviam ocorrido milagres e aquelas que haviam praticado magia. Se os milagres eram provas de santidade e a magia era o produto da mágica, como ter, na prática, um modo confiável para distinguir santos de feiticeiros?
Após muita pesquisa sobre os santos, desejei misturar as coisas e me voltei aos feiticeiros e às bruxas, sobre os quais trabalho atualmente.
O que é uma bruxa?
Não há uma definição clara. Depende muito da cultura e do período histórico analisado. Na Idade Média, raramente era algo que a pessoa atribuía a si mesma; em geral, era uma característica que outras pessoas acusavam alguém de ter.
O que as pessoas têm em mente, hoje, é uma mulher velha a pilotar uma vassoura, usando um chapéu pontudo e que pratica o mau. É também alguém que foi assombrado e perseguido com um fervor irracional no passado.
A caça às bruxas histórica que as pessoas pensam em geral não é medieval; ela é um pouco mais recente. Quando pensamos nas bruxas que foram queimadas ou condenadas, estamos falando de algo que surge no século XV e que dura até o fim do século XVIII.
Nesse período, definia-se bruxa como alguém que fez um pacto com o diabo. O pacto era normalmente selado com o intercurso sexual, e as bruxas formavam uma comunidade de malfeitoras, reunindo-se regularmente nos assim-chamados “sabbats”. Os pactos eram o que tornava a maldade delas tão poderosa.
Sempre houve a noção da mulher que faz coisas más ou pessoas que usam da magia para prejudicar outros indivíduos. O negócio de um pacto com o diabo é singular, característico da história ocidental, em oposição ao resto do mundo. E o pacto estava no centro das preocupações sociais que motivaram as perseguições do início do período moderno (1400-1800).
É algo que surge no fim da Idade Média e começa a ser perseguido com vigor no meio do século XV. As primeiras grandes condenações são do começo do século XV e os últimos datam da década de 1770, aproximadamente.
Isto é como os opositores descreviam as bruxas. As bruxas, elas pensavam que estavam fazendo um pacto com o diabo?
Há duas escolas de pensamento nesta questão. Uma sustenta que a crença em bruxaria foi inventada por grupos que a acusavam, tendo em vista a consecução de seus próprios objetivos. A outra escola de pensamento sustenta que as pessoas acusadas acreditavam, genuinamente, em bruxaria.
Está claro que os processos por bruxaria nasceram de jogos de poder de forças religiosas e seculares que queriam ganhar um maior controle sobre as comunidades religiosas e civis. Mas, hoje, temos também inúmeros exemplos de pessoas que se confessavam perante as acusações, conforme definido. Nem todos estes casos podem ser explicados por tortura, muito embora a possibilidade de tortura sempre esteve presente.
De onde vem a ideia de um pacto com o diabo?
Na verdade, a ideia começa por volta de 1200, entre os literatos, pessoas instruídas, no momento em que cogitaram aprender sobre magia e feitiçaria. Pensemos no Fausto: um pacto com o diabo para obter um conhecimento oculto e para manipular o mundo natural como a alquimia.
Temos manuais de necromancia, que claramente foram produzidos pessoas letradas ligadas à Igreja, em fins do século XIV, início do século XV. Eles invocam os espíritos dos mortos para conseguir a ajuda deles na feitura das coisas. Os manuais de necromancia, na estrutura dos rituais e das cerimônias, são imagens espelhadas de exorcismos. “Se podemos expulsar demônios, talvez possamos invocá-los”.
Além de um desejo de dominar um conhecimento oculto, havia um elemento financeiro impulsionando esta “pesquisa”. Estas pessoas faziam por dinheiro. Quem não iria querer ver os seus tesouros aumentados com o recém-criado lingote de outro do alquimista? E todos os tipos de pessoas poderosas se interessavam em horóscopos – príncipes, papas, todos eles. De que outra forma elas saberiam os dias propícios para assinar contratos, fazer tratados, casar as filhas, etc.?
Por volta de 1400, a preocupação com a ajuda do diabo para chegar a fontes mais profundas de conhecimento místico, conhecimento esotérico, se funde com a magia popular praticada nas aldeias, vilarejos.
Parte da tragédia social é que é mínimo o número de processos e execuções contra essas figuras da elite. Existe um certo tipo de pessoa que acaba comprimida entre uma fixação bizarra com o poder do diabo no mundo vindo de cima, e a amargura e o preconceito que vêm debaixo. No final das contas, as bruxas acabam comprimidas entre os dois.
A magia em si era vista como má?
Historicamente, surgiu a ideia de forças ocultas que podem ser usadas para fins bons. O teólogo escolástico dos séculos XV e XVI diria: “Se você estiver manipulando os poderes do mundo natural de um modo que é natural e para fins bons, então, de fato, não é magia”. Estas forças ocultas nos objetos materiais estão aí para se tirarem a vantagem mais completa delas.
A poção do amor constitui um caso de estudo interessante nas escolas. “Podemos usar a poção do amor contra o parceiro que não está apaixonado por nós?” Há dois problemas para os alunos debaterem. Um tem a ver com a licitude da produção da substância e se esta é natural. A outra tem a ver com o livre arbítrio. “O uso da poção do amor está privando o outro de sua liberdade, apesar da infelicidade que é o parceiro não estar mais apaixonado?”
Mas há outros que diriam que a poção do amor é uma coisa boa porque o casamento pode, às vezes, ser difícil. As brasas esfriam-se, e seria bom elas se reacenderem.
Anônimo. Museu Nacional da Baviera, em Munique (Domínio público, via Wikimedia Commons)
Que tipo de prova era usada num processo por bruxaria?
Temos aí algo bastante arbitrário. Lembremos da cena do filme “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” com o pato. Não gosto de usar arte popular contemporânea para explicar coisas em história, mas acho que essa cena capta o problema.
Acreditava-se que havia pessoas que eram bruxas e que fizeram pactos com o diabo, e criam que elas causavam um mal verdadeiro. Se um conselho municipal ou os consultores do arcebispo recebessem um conjunto coerente de problemas lançados em seu colo e ele começasse a associá-los, poderia pensar: “Bem, podem ser bruxas”.
Em seguida, diria: “Por que não ter um processo?” Então se começa a caminhar numa dada direção, está-se à procura de certa coisa, e esta é encontrada.
O primeiro livro realmente importante contra os processos por bruxaria é “Cautio Criminalis”, de Friedrich Spee, publicado em 1631. Spee é um jesuíta e confessor de bruxas que haviam sido condenadas. Ele escreveu um tratado que defendia parar a realização destes processos com base em que não havia um padrão adequado de provas. Ele não questionava a existência ou não uma tal coisa chamada bruxas.
O guia mais famoso para estes processos, muito embora não o mais comumente usado na época, é “Malleus Maleficarum” (O martelo das bruxas), de Heinrich Kramer, que escreveu a obra na década de 1480 depois de não conseguir obter as condenações de um conjunto particular de processos em Innsbruck. Cerca de um terço é um longo discurso misógino, ideias tiradas da Antiguidade e trazidas para o momento contemporâneo; um outro terço fala sobre como encontrar uma bruxa; e o outro terço fala a respeito dos procedimentos, como realizar um julgamento.
Quantas bruxas foram executadas?
De 1450 até 1750 foram provavelmente 100 mil julgamentos, no máximo. Na década de 1970, o número estimado estava em torno de 9 milhões, mas hoje ficamos entre 100 mil e 70 mil julgamentos. Grande parte deles foram processos civis, e não eclesiásticos. Houve de 30 mil a 50 mil execuções nesse período de 300 anos. Pesquisas recentes sustentam números menores ainda.
É importante também perceber que não houve um número constante, coerente de processos entre os anos de 1450 e 1750. Os casos irrompem em lugares particulares e em épocas particulares. Os julgamentos continuam por alguns anos e então desaparecem. Ou duram por um ano e então, de repente, 50 anos mais tarde desaparece de novo.
Há um alto índice de execuções, mas há um índice ainda mais alto de condenações. Houve mais condenações do que execuções. Havia a possibilidade de penalidades alternativas à execução. Assim, se a pessoa renunciasse o pacto com o demônio, se as provas não fossem suficientes para uma condenação plena por bruxaria, havia penalidades menores.
O que fazia irromper estes processos?
Uma vez que a ideia da elite de magia e a ideia popular de bruxaria se juntaram, o ator principal para o surgimento dos processos em geral tende a ser a pessoa proeminente de uma pequena localidade. Muitas vezes, o que parece ter acontecido é que coisas ruins ocorriam e alguém precisava ser culpado.
Na ausência de alguma explicação, a magia maléfica servia para estes propósitos: pôr a culpa de qualquer coisa que precisa ser explicada em alguém que, por alguma outra razão, estava socialmente separada, era odiada ou, simplesmente, era alguém sem confiança dentro da comunidade.
Há problemas que, por muito tempo, perduraram. E, de repente, num momento apetece: “Ah, a solução para estes problemas duradouros é começar uma caça às bruxas”.
Bruxa prestando homenagem ao demônio, de Buch der Tugend, por Johannes Vintler (Domínio público, via Wikimedia Commons)
Que impacto a Reforma teve sobre os processos?
Quando começa a Reforma há um declive, há uma pausa. As pessoas estão distraídas. Mas, por volta das décadas de 1550 e 1560, o número de processos e execuções aumenta de novo, especialmente na Alemanha. Um total de 70% dos processos e execuções aconteceu na Alemanha. Algo entre 90 e 95% das pessoas executadas por bruxaria falavam um dialeto alemão.
Além disso, após a Reforma, são os tribunais seculares que processam as bruxas. E é aí quando as coisas se tornam realmente brutais. No período entre 1560 e 1660, que é quando as acusações mais brutais se encontram, são os tribunais seculares, com o incentivo das autoridades eclesiásticas, que os realizam.
Parece também haver uma pequena associação com uma preocupação religiosa de reformar a sociedade cristã. As figuras eclesiásticas que se preocupavam com os pactos com o diabo estão também falando sobre a reforma da Igreja. Elas estão olhando para a cristandade e dizendo: “Estamos trabalhando nisso há 1.500 e ainda não temos o Reino de Deus. Por que isso? É porque muitíssimas pessoas estão fazendo pactos com o diabo”.
Por que havia mais processos por bruxaria na Alemanha do que em outras partes da Europa?
Imaginemos a importância dos atores locais em conseguir com que alguém fosse julgado por bruxaria. Se tivermos um sistema jurídico altamente centralizado, ele força camadas múltiplas de revisões. Na França, por exemplo, temos um número pequeno de execuções, e eles malogram logo em seguida. Depois de um entusiasmo inicial, este número estanca. Por quê? Por causa do sistema jurídico.
Na França, um judiciário centralizado em Paris assume o papel-chave de supervisionar os processos. Um pequeno vilarejo perto de Toulouse poderia condenar 20 bruxas de uma vez só, mas estas condenações iam para Paris, e muitas delas que aí chegavam eram anuladas.
O que não temos no Sacro Império Romano? Não temos um governo central forte. Temos o imperador, mas temos estes principados, mais de 300 deles, cada qual sendo o responsável pelo seu próprio sistema de justiça. Exatamente estas camadas de supervisão é que faltam, e isso uma das razões pelas quais os processos duraram todo aquele tempo na Alemanha.
Qual o sistema jurídico mais centralizado da Europa nos séculos XV, XVI e XVII? A inquisição. Portanto, em lugares onde as inquisições organizadas – a romana e a espanhola – eram as mais fortes, quase não temos julgamentos por bruxaria. Na Espanha e na Irlanda, não temos quase nenhum. Na Itália, pouquíssimos. De novo, onde temos os sistemas jurídicos menos centralizados, vemos mais e mais casos [de processos].
Que lição os julgamentos por bruxaria nos deixam para os dias de hoje?
As tendências humanas que levam a elite e outras pessoas a conspirar para processar e perseguir nos primórdios da era moderna estão ainda entre nós, hoje. A nossa criatividade em fazer bodes expiatórios – em inventar ideologias para explicar coisas que a razão e a experiência real não dão conta; em expressar as nossas frustrações nos limites das nossas realizações com violência; em justificar esta violência com o apelo à raison d’etat [razão de Estado] e à pureza da crença – desconhece fronteiras.
Curiosamente, foi a burocracia que deu início a esta calamidade particular, e a burocracia que o encerrou. A atenção à irracionalidade humana e a prática de duvidar de si próprio, especialmente quando se trata das formas como nós restringimos, punimos e acusamos os outros, são, com certeza, desafios recorrentes desde a caça às bruxas. Mas, então, não temos muita coisa no século passado que dê a entender que iremos, em algum momento, aprender esta lição.
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