17 Julho 2019
A sociedade está longe de ter uma real percepção dos riscos da tecnologia nuclear, na medida em que é mantida altamente desinformada.
O artigo é de Chico Whitaker, publicado por CartaCapital, 16-07-2019.
Causou impacto em todo o mundo, nas últimas semanas, a minissérie televisiva Chernobyl, na HBO, que mostra a dimensão da catástrofe provocada pelo acidente nuclear de 1986 na União Soviética. O filme é tão impressionante que muita gente passou a não querer nem ouvir falar de usina nuclear. O atual presidente da Eletronuclear não poderia senão retomar, com rapidez, sua prática de antigo “relações públicas” dessa empresa, e conseguir um bom espaço em matéria sobre o assunto publicada em 23/06 pela Folha de São Paulo.
Ele nos disse então, nessa matéria, que os reatores das usinas brasileiras são diferentes dos russos e menos perigosos. Mais ainda: que acidentes como o de Chernobyl acontecem “um a cada milhão de anos”. Ele queria obviamente nos tranquilizar. O que o preocupa de fato é algo que sempre repete a quem levante o problema dos riscos das usinas nucleares: o medo da sociedade, que ele considera que “amplifica a percepção dos reais riscos”.
Mas a questão do tipo de reator é pouco convincente, já que acidentes não dependem somente disso. Menos ainda a da frequência com que ocorrem. O intervalo entre 1979, 1986 e 2011, datas dos acidentes com derretimento do reator em Three Mile Island, Chernobyl e Fukushima, é evidentemente muito menor do que um milhão de anos. Sem considerar que em 1957, antes do primeiro acidente conhecido desse tipo e ainda portanto dentro de um espaço de somente cem anos, houve outro, na União Soviética, que foi mantido escondido do mundo durante trinta anos.
Na matéria da Folha, o presidente da Eletronuclear atribuiu o medo da sociedade ao fato dessa tecnologia ter tido, segundo ele, “o pior marketing da historia”, uma vez que foi apresentada ao mundo pela terrível bomba atômica de Hiroshima. Aliás foi possivelmente por essa razão que, logo que puderam, os marqueteiros da indústria nuclear inventaram o programa Átomos para a Paz, lançado por Eisenhower nas Nações Unidas. E passaram a falar de energia nuclear em vez de energia atômica, para encobrir o tema com o manto mais amigável dos seus usos medicinais e de produção de eletricidade.
No entanto, quem tem mesmo medo é o próprio presidente da Eletronuclear – outro tipo de medo – que é o mesmo de todos que se beneficiam com esse negócio milionário: o da tecnologia nuclear não conseguir enfrentar a desaprovação social, que aumentou quando a minissérie Chernobyl conseguiu escapar do seu controle. Diz-se, aliás que os russos estariam preparando outra minissérie sobre o assunto, possivelmente para se defender de acusações nesse acidente. Mas, em tempos de maior acesso a informações, dificilmente poderiam minimizar as suas dimensões e consequências.
A sociedade ela mesma está em verdade longe de ter uma real percepção dos riscos da tecnologia nuclear, na medida em que é mantida altamente desinformada, até porque o tema é de interesse militar. Mesmo na França – o país mais dependente do nuclear no mundo – a discussão do assunto muitas vezes não prospera porque é classificado como “segredo de defesa do país”.
É nessa mesma perspectiva de informar o mínimo possível que, ao procurar explicar, na matéria da Folha, o que é essa tecnologia, o presidente da Eletronuclear simplificou bastante as coisas. Disse por exemplo que a energia elétrica numa usina “é gerada pelo processo de fissão nuclear”. E nos deu uma informação com que deve pretender impressionar sobre o poder da energia nuclear: “uma pequena pastilha de urânio enriquecido é capaz de produzir a mesma eletricidade que 22 caminhões-tanque de óleo diesel”.
Não sei como fez esse cálculo, mas basta nos informarmos um pouco mais para sabermos que a quebra de átomos nas usinas nucleares não produz diretamente eletricidade.
Essa “mágica” pode ser realizada pelos raios de sol quando incidem em células preparadas com silício em placas chamadas de energia solar. Nas usinas nucleares a fissão serve para produzir calor, como, aliás, nas bombas atômicas – e por isso mesmo há o temor de que o conhecimento de sua tecnologia leve à proliferação dessas armas. Esse calor é então usado para esquentar água e transformá-la em vapor. Este, por sua vez, sob pressão, fará girar as turbinas que são o que de fato produz eletricidade – dentro do mesmo principio das hidroelétricas e até dos dínamos das lanternas de nossas bicicletas.
Ou seja, as usinas nucleares não passam de chaleiras (eram de fato assim chamadas nos seus inícios na França). Mas como lidam com os mistérios do átomo são altamente sofisticadas, e se tornam muito perigosas: qualquer pequeno erro de manipulação pode se combinar com outros tipos de falha, anteriores ou posteriores, e levar à perda do controle das reações físico-químicas, produzindo catástrofes sociais e ambientais. Como em Chernobyl e Fukushima.
A matéria da Folha poderia nos levar a acreditar que, dentro dessa sofisticação – o presidente da Eletronuclear cita ainda outros equipamentos com que funcionam as usinas – tudo no Brasil está sob controle e o risco é zero. Mas isto se esquecermos de que nosso país vem nos surpreendendo há tempos com acidentes com barragens da indústria mineradora – em principio também sempre sob controle – e deixou que em Goiânia, em 1987, aparelhos de radioterapia ficassem abandonados durante anos num hospital falido, o que levou ao pior acidente radiológico que o mundo conheceu. Mas para nossa sorte a Folha acolheu também as ponderações dos professores Schaeffer e Pinguelli Rosa, da URFJ, autoridades no assunto.
Algumas de suas frases já relativizam as afirmações tão seguras do presidente da Eletronuclear. Schaeffer: “Me assusta mais (do que os rompimentos de barragens) um acidente em Angra, devido à possível severidade”. Pinguelli: “Desde então houve um avanço (para que material radioativo não vaze) mas não foi definitivo”; uma explosão de vapor – diferente do incêndio do grafite em Chernobyl – “que espalhe material radioativo no ambiente” é algo “muito pouco provável, mas não quer dizer que seja impossível”.
Ou seja, também no nuclear o simples bom senso nos obriga a dizer que nada é 100% seguro, como em toda obra humana. Já o disse no parlamento francês o próprio presidente da Agência de Segurança Nuclear desse país, depois do acidente de Fukushima: não se sabe quando nem onde, mas um acidente nuclear desse tipo é sempre possível em um dos 58 reatores das nossas 19 usinas.
E Pinguelli nos diz claramente: “Não podemos dizer que o Brasil está defasado. Na verdade o mundo todo está. A tecnologia nuclear é uma tecnologia antiga, velha. Experimentou muito avanço em algumas décadas, depois não mais”. E Schaeffer completa, referindo-se a Angra 3, que a Eletronuclear apresenta como “irmã gêmea” de Angra 2: “Angra 3 é uma usina nova, com tecnologia velha”.
Sobre Angra 3 podemos dizer mais do que isso: seu velho projeto é de 1977, anterior portanto ao acidente com derretimento do reator, até então considerado impossível, que ocorreu nos Estados Unidos em 1979. Assim, não levava em conta a possibilidade desse tipo de acidente. E como se diz que é irmã gêmea de Angra 2, seu projeto não deve ter sido atualizado para atender a essa eventualidade e, nesse caso, evitar explosões e conter a disseminação de radioatividade no meio ambiente. Não é por outra razão que se espalha no mundo uma petição por uma auditoria desse projeto (change.org/usinanuclearnao). Lá fora se sabe que acidentes nucleares não respeitam fronteiras. Portanto, o que é, segundo a Folha, “um projeto prioritário” para o atual Ministro das Minas de Energia, para quem tenha um mínimo de bom senso não é senão um crime anunciado.
Schaefffer completa suas observações dizendo algo que no Brasil se faz todo o possível para ignorar: “A indústria nuclear mundial está diminuindo e não crescendo. (…) mais usinas antigas estão sendo aposentadas, porque já atingiram sua vida útil, do que usinas estão sendo construídas”. E é nesse quadro que a matéria da Folha nos informa, tristemente, que as autoridades brasileiras pretendem pedir a expansão da licença de operação de Angra 1, que expira em 2024.
A Folha lembra ainda a questão do combustível usado, que permanece radioativo e perigoso num prazo que, segundo ela, “pode chegar a 200 mil anos”. Um prazo em que “há sempre o risco de algo acontecer”, diz Pinguelli, acrescentando que esse problema não é só brasileiro, mas mundial. Este é de fato o segundo grande produto das usinas: toneladas de elementos altamente radioativos resultantes do processo de quebra de átomos de urânio. Metade da massa de um deles, o plutônio, leva 24.100 anos para deixar de ser radioativa.
Pinguelli observa ainda que é muito perigoso transportar esse combustível usado, pelo que ele é armazenado “provisoriamente” ao lado do reator em piscinas profundas cheias de agua. Mas sabemos que não se pode parar de refrigerar essa água, porque os elementos radiativos nela estocados continuam a se quebrar uns aos outros e a produzir calor ininterruptamente.
Schaeffer diz então: “É uma maldade com gerações futuras”. Mas o presidente da Eletronuclear ousa considerar esse combustível usado “um legado positivo”, “já que poderá ser usado para produzir energia novamente”, se for retratado. Embora não possa deixar de dizer que será “mais caro que um combustível novo”. Quando e como pensa ele enviar para a usina de re-tratamento da França (uma das poucas no mundo, que já concentra, para angustia dos franceses, uma quantidade de resíduos nucleares que a tornou uma enorme ameaça para todos) os “1.800 elementos combustíveis” já acumulados, segundo ele, em duas piscinas em 34 anos de operação de Angra 1 e 18 de Angra 2?
Independentemente de tudo isso, estaria o presidente da Eletronuclear – e o Ministro das Minas e Energia – conscientes do outro tipo de risco – o econômico-financeiro – que o país poderá assumir com essas usinas e seus possíveis acidentes e mais as que quer construir no Nordeste, com financiamento russo ou chinês? Estariam eles informados de que o governo turco acaba de suspender a construção em seu país de uma usina japonesa-francesa porque as exigências de segurança fizeram com que seu custo subisse de 20 milhões a 44 milhões de dólares? Chegou até eles a informação de que o próprio Japão está considerando, possivelmente também por essas razões, o abandono definitivo das usinas que não conseguiu reabrir depois do acidente de Fukushima? Conheceriam eles a novela (e o desastre financeiro) em que se transformaram as usinas francesas de ultima geração em construção na França (Flamanville) e na Finlândia, com seus prazos de término sendo continuamente postergados enquanto seu custo aumenta com os cuidados exigidos pela segurança?
Voltando a Angra, segundo a Folha “área turística com floresta e mar exuberantes entre São Paulo e Rio de Janeiro, as cidades mais populosas do Brasil”, nem falemos do Plano de Emergência em caso de acidente. O presidente da Eletronuclear o trata na matéria da Folha com a mesma ligeireza: previsões e treinamentos são feitos a cada dois anos, cobrindo um raio de 3 km em torno da usina, quando tanto Chernobyl como Fukushima exigiram que se considerassem 30 km. E como mostra a minissérie que preocupou tanta gente, em Chernobyl foram mobilizadas 600.000 pessoas para socorrer o que no principio foi anunciado somente como um incêndio.
Neste ponto discordo de Pinguelli, que diz que um acidente de média proporção não chegaria a espalhar radiação até São Paulo e Rio, embora pudesse ir mais longe do que o raio de 3 km previstos no Plano de Emergência. Eu diria que infelizmente ainda não temos poder sobre os caprichos dos ventos: a nuvem radioativa que saiu de Chernobyl cobriu toda a Europa.
Tomara que outros vídeos como a minissérie Chernobyl ajudem mais gente a tomar consciência do que são realmente os acidentes nucleares “severos”, em que o reator se funde com o calor com que pretenderiam somente esquentar água – uma operação que pode escapar do controle dos nossos aprendizes de feiticeiro que pretendem dominar a força do átomo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O sucesso da minissérie Chernobyl e o risco de nossas usinas nucleares. Artigo de Chico Whitaker - Instituto Humanitas Unisinos - IHU