28 Junho 2019
Enzo Traverso é um destacado historiador, conhecido sobretudo por seus estudos de história das ideias e por suas análises das políticas de memória histórica, dois temas que se fundem em seu livro Melancolía de izquierda. Después de las utopías, publicado em 2016, em inglês, e traduzido agora ao espanhol por Galaxia Gutenberg” [em português: “Melancolia de esquerda: Marxismo, História e Memória”, publicado pela editora Âyiné]. Esteve em Barcelona, convidado pela Escola Europeia de Humanidades, para a conferência “Retorna o fascismo? As direitas radicais em uma perspectiva histórica”, no Palau Macaya, da Obra Social La Caixa.
A entrevista é de Gustau Nerín, publicada por El Nacional, 23-06-2019. A tradução é do Cepat.
Recentemente, você publicou “Melancolia de esquerda”. Em primeiro lugar, o que são as esquerdas? Há certa confusão sobre isso: os que utilizam bicicleta? Os veganos?...
Meu livro é um livro de história intelectual, de história cultural. Tomo a palavra “esquerda” em seu sentido histórico: os movimentos políticos e sociais que a partir do século XIX tentaram mudar o mundo e tentaram transformar a sociedade no sentido do socialismo: no sentido da liberdade e igualdade.
O que acontece com as esquerdas, após a queda do Muro de Berlim?
Após a queda do Muro, a esquerda perdeu o norte. Até a queda do Muro, de forma contraditória, tensa e não linear, a esquerda, em seus diferentes componentes, tinha uma visão do mundo: era preciso substituir o capitalismo por outro modelo de sociedade. E se pensava que a sociedade estava indo nessa direção. Em 1989, esta visão muda. Já não é possível ter esta visão. A esquerda fica órfã de suas ilusões e de suas certezas.
O que fazer diante desta situação?
Após o desaparecimento do comunismo, uma das vertentes da esquerda, ganha importância a outra vertente, a social-democrata, que se adapta ao capitalismo. Mas, a adaptação da esquerda ao capitalismo é um beco sem saída. Eu acredito que a esquerda, para se reconstruir, precisa inventar algo novo, porque os velhos modelos do passado estão esgotados e seus limites são óbvios. Muitos movimentos dos últimos anos, como o altermundialismo, os Coletes Amarelos e o 15-M, apontam, não que se esteja construindo uma nova esquerda, mas para a necessidade de inventar algo novo. O que será? Eu, simplesmente, não sei.
Alguns teóricos apontam que, após o fracasso do comunismo na Europa do Leste, a esquerda deveria renunciar a utopia. Concorda com esta avaliação?
O problema não é tanto renunciar a utopia, mas, sim, tomar consciência de que as antigas utopias pereceram. Mas, um mundo sem utopias é um mundo muito triste, é um mundo encerrado no presente. Você tem a sensação de viver sem horizonte. Eu acredito que as sociedades precisam de utopias para mudar, para se transformar, para se construir, para inventar o futuro... É preciso romper esta gaiola de ferro que é um mundo encerrado no presente, que é o mundo de hoje. Estamos em um mundo no qual não é possível pensar o futuro. Só é possível pensar em termos de catástrofe.
Mas a mudança é possível?
O mundo se caracteriza por uma aceleração espasmódica, na qual temos a sensação de que tudo muda, mas nada muda de verdade. No próximo ano, terei que mudar meu iPhone porque já estará velho, mas os modelos sociais do mundo continuarão igual. Para renascer, a esquerda precisa romper esta gaiola e buscar novas premissas para pensar o futuro. É o grande desafio. Mas, as utopias não são o produto de um trabalho frio que se faz em uma biblioteca. As utopias nascem do corpo social, emergem dele... E esperamos isso, que surja. Sem isso, a esquerda não terá perspectivas.
A desorientação da esquerda contribui para o auge das direitas radicais?
Sim. Em muitos países, a direita radical (não no caso da Espanha) se alimenta e se legitima por sua oposição ao neoliberalismo. Isto é evidente na França, mas também na Europa central e na Itália (com o enfrentamento entre o governo e a Comissão Europeia). Se a extrema direita pode desempenhar este papel é porque a esquerda se deslegitimou como força de oposição ao neoliberalismo. Isto se tornou evidente em 2015, na Grécia, quando a esquerda aceitou a chantagem da troika e, em seguida, desencadeou a ascensão da extrema direita. É um sistema de vasos comunicantes: quando a esquerda se fragiliza, a extrema direita se fortalece.
As direitas radicais avançarão para um fascismo clássico ou adotarão novas formas?
Não acredito que voltem ao fascismo clássico, porque não são dadas as condições. As direitas radicais são muito diferentes dos fascismos clássicos. Mas, não digo isso para tranquilizar os cidadãos. Há um nacionalismo excludente, reacionário. Há muita xenofobia e um racismo muito forte. Vemos um conservadorismo muito acentuado. E há muito autoritarismo (em alguns casos, misturado com o neoliberalismo, em outros com o protecionismo).
É um coquetel muito perigoso. A direita radical anuncia a possibilidade de algo novo, que talvez não será simples de definir. Mas, mesmo que não seja o fascismo dos anos 1930, será um fascismo do século XXI.
Você costuma usar o termo “pós-fascismo”. Por quê?
O pós-fascismo é um fenômeno que surge, cronologicamente, depois do fascismo, quando este já está encerrado. Politicamente, o pós-fascismo está buscando um caminho diferente ao do fascismo clássico. É outra coisa. A maioria das forças da direita radical não se define como fascista, mas, ao mesmo tempo, é um reflexo espontâneo e natural do fascismo clássico. O pós-fascismo já não é o fascismo, mas não podemos defini-lo sem nos remeter ao fascismo, é um fenômeno em transição. Por isso, acredito que pós-fascismo é a definição mais pertinente.
Há alguns anos, você afirmava que o capitalismo globalizado não dava apoio à extrema direita. Diante do avanço de personagens como Trump e Bolsonaro, ponderaria suas opiniões?
Ponderaria, pois como já disse há anos, o capitalismo neoliberal também pode se adaptar a qualquer sistema político: adapta-se muito bem a Bolsonaro ou a Trump. É um fato que as elites financeiras dos Estados Unidos não deram apoio a Trump. O candidato do capitalismo liberal não era Trump, era Hillary Clinton. Contudo, agora se acomodaram muito bem a ele... O capitalismo é uma hidra polimórfica que pode se adaptar a qualquer sistema.
O combustível das direitas radicais é sua crítica ao neoliberalismo. Por isso, as elites econômicas não apoiam a extrema direita, mas, sim, a Comissão Europeia, o Banco Central... As elites não trabalham para derrubar a União Europeia. Assim como Hitler também não foi criação das elites alemãs, mas, ao final, as elites econômicas aceitaram que Hitler tomasse o poder, após a paralisia da república de Weimar.
Faz mais de 40 anos que Franco morreu e ainda está enterrado em um mausoléu, presidindo os corpos de seus partidários e de suas vítimas. Como avalia isso?
Isto indica que há problemas de memória. Na Espanha, há uma herança que não é fácil de lidar. Eu, pessoalmente, acredito que a decisão de Pedro Sánchez em transferir os restos de Franco é uma boa decisão, mas que chegou muito tarde. O problema é o que fazer depois com o Vale dos Caídos, uma vez “dessacralizado”, depois de deixar de ser um lugar de peregrinação franquista. Para mim, a solução, talvez, seria o que se fez em outros países: transformar o lugar em um memorial, como se fez em muitas instalações nazistas da Alemanha...
O Vale dos Caídos é, antes de mais nada, um lugar de memória, não só de Franco, mas também dos presos políticos que ali trabalharam, dos soldados ali mortos... Mas, seria possível transformá-lo em um lugar de memória democrática? É possível fazer isso mantendo aquela cruz gigante que possui? Eu acredito que não... É um verdadeiro problema.
Acredita que o “Vale dos Caídos” poderia ser um espaço de memória para todos, sem exclusões?
Eu não acredito na possibilidade de uma memória compartilhada. Não acredito que no Vale dos Caídos seja possível, pela manhã, reunir os neofranquistas e, à tarde, os antifranquistas. Todo país tem memórias que não são compartilhadas. São conflitantes. E a força de uma democracia se define por sua capacidade de coexistência de memórias conflitantes do passado.
Qual a sua opinião sobre o auge da direita radical no Estado espanhol?
Eu sou um observador externo... Não tenho todos os elementos para fazer uma análise aprofundada, mas acredito que o fenômeno Vox se explica, por uma parte, por uma tendência europeia geral e, por outra, pela crise catalã. Vox é a reação casticista, nacionalista, frente à Catalunha. É o neofranquismo. O auge da ultradireita se explica também por uma crise profunda do PP. Vox sai do PP, vem dele. Expressa, de uma maneira explícita e clara, uma corrente neofranquista, reacionária e conservadora que sempre existiu dentro do PP. Vox é diferente do Alternativa para a Alemanha ou do Frente Nacional francesa, porque estes movimentos não nasceram de uma crise dos partidos conservadores.
Os resultados eleitorais de Vox lhe surpreenderam?
Era previsível. Não era o pior que poderia acontecer... Havia a possibilidade de uma maior ascensão da extrema direita.
Qual a sua opinião a respeito da situação da Catalunha?
Preocupo-me muito com o que acontece na Catalunha. É uma terra que amo muito. Mas, tenho dificuldades em compreender esta explosão do nacionalismo catalão. Não vejo a Catalunha como uma nação oprimida. Gosto de pensar em Barcelona como uma metrópole global. Mas, dito isto, é absolutamente inaceitável a repressão política que atingiu a Catalunha e a existência de presos políticos. O direito de autodeterminação é um princípio básico de qualquer estado democrático. A primeira coisa que deveria ser feita para solucionar a crise catalã seria um verdadeiro referendo, reconhecido e legal, para estabelecer se a Catalunha pode ser independente ou não.
E qual é a sua opinião sobre a polêmica na Câmara de Barcelona?
Eu sentia muita admiração por Ada Colau como prefeita. Gostaria que houvesse uma Colau em Roma ou Milão. Fiquei surpreso com a sua decisão de se apoiar em Valls, porque teria sido mais natural uma coalizão com ERC. Ela sempre disse que não era nem independentista, nem anti-independentista, uma posição na qual me reconheço. Mas, se faz uma associação “de facto” com Cidadãos, esta neutralidade entra em questão... Com Cidadãos, a única convergência que há é o anti-independentismo...
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“Um mundo sem utopias é um mundo muito triste”. Entrevista com Enzo Traverso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU