09 Mai 2019
“As crises orçamentárias e fiscais que supostamente justificam os cortes no gasto e a austeridade, na realidade, são as consequências das políticas financeiras falidas do capitalismo e seus agentes. Mais uma vez, transferem os custos da crise às classes trabalhadoras e populares, por meio da redução de salários, mais impostos, reformas das aposentadorias e pensões, flexibilização trabalhista e, por conseguinte, acarreta a precarização do emprego”, escreve Eduardo Camín, jornalista uruguaio, correspondente de imprensa na ONU-Genebra e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE), em artigo publicado por Rebelión, 08-05-2019. A tradução é do Cepat.
Nos primeiros dias de abril, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, destacou em seu discurso o “precário momento global da economia mundial”. Este eufemismo que pretende desvirtuar o pano de fundo da dialética inerente à crise do capitalismo, nos evidencia que o precário é aquilo que não só carece de recursos, é pouco estável e objetivamente não está em condições de se sustentar no tempo.
Pouco a pouco, torna-se cada vez mais visível que os poderes fáticos do sistema mundial estão cada vez mais à deriva, na medida em que a crise do capitalismo global escapa de suas mãos.
As imensas desigualdades estruturais da economia política mundial já não podem ser [resolvidas] através de mecanismos consensuais de controle social. As classes dominantes perderam legitimidade e estamos assistindo a uma ruptura da hegemonia do núcleo central do capitalismo em escala mundial. É muito difícil vislumbrar uma seguridade política e social, em um mundo onde milhões de pessoas continuam presos ao ciclo de pobreza, em um sistema global que é discriminatório e injusto.
É óbvio, que as elites globais esperavam – como manifestaram em suas conferências, cúpulas e foros – que a “Grande Depressão”, que começou com a crise das hipotecas e o colapso do sistema financeiro mundial, em 2008, fosse uma recessão cíclica, ou seja, estes episódios regulares no sistema capitalista, que ocorrem aproximadamente uma vez a cada década, e em geral não duram mais de dois anos.
Contudo, a crise estrutural que enfrentamos é mais profunda, e sua resolução requer uma reestruturação profunda do sistema. As crises estruturais mundiais, nas décadas passadas, foram resolvidas mediante uma reorganização do sistema que produziu novos modelos de capitalismo. Porém, esses paliativos não quer dizer que os problemas que a maioria da humanidade enfrentava sob o capitalismo foram resolvidos, ou que serão resolvidos, mas, ao contrário, que a reorganização do sistema capitalista, em cada caso, foi dirigida à retomada da acumulação de capital em escala mundial.
As receitas do capitalismo mundial traçaram os mecanismos de exportação de capitais e de uma nova onda de expansão imperialista e, posteriormente, foram resolvidas com variantes da social-democracia, de bem-estar, capitalismo populista e desenvolvimentista que implicavam redistribuição, privatizações e terceirizações no setor público e a regulação do mercado pelo Estado.
Não obstante, a globalização e a crise estrutural atual se desenvolveram a partir da própria resposta que diferentes protagonistas deram aos episódios anteriores à crise, em seu preâmbulo em particular, à crise dos anos 1970 da social-democracia ou, dito mais tecnicamente, do fordismo-keynesianismo ou do capitalismo redistributivo, “com rosto humano”.
Na raiz dessa crise, o capital passou a ser global, como uma estratégia da emergente classe transnacional e seus representantes políticos para reconstituir seu poder de classe, ao se libertar das restrições à acumulação que os Estados-nação estabeleciam. As elites globalizantes se apropriaram do poder estatal na maioria dos países do mundo e utilizaram esse poder para impulsionar a globalização capitalista através do modelo neoliberal.
A globalização e as políticas neoliberais, junto à revolução na tecnologia apoderada pelo grande capital: computação, robótica e informática e outros avanços tecnológicos, ajudaram o capital transnacional emergente a conquistar grandes avanços na produtividade e a reestruturar, “flexibilizar” e se desfazer de mão de obra em todo o mundo.
Isto, por sua vez, fragilizou o trabalho assalariado, significou a perda dos benefícios sociais e facilitou uma livre transferência de ingressos e saídas sem controle de capital, estimulando o crescimento através do consumo em sua máxima expressão. No entanto, o modelo neoliberal se traduziu também em uma polarização social em nível global.
É uma ruptura entre a lógica de acumulação e a de reprodução social, que repercutiu em um crescimento sem precedentes da desigualdade social e intensificou as crises de sobrevivência de milhares de milhões de pessoas mundialmente. Os efeitos de pauperização, desatados pela globalização, geraram conflitos sociais e crises políticas que, hoje, cada vez mais o sistema tem dificuldade de conter.
A polarização social global aguça o problema crônico de sobreacumulação, e a concentração da riqueza está cada vez em menos mãos, até que o mercado mundial seja incapaz de absorver a produção mundial e o sistema colapse. É cada vez mais difícil para os capitalistas transnacionais se livrar de sua massa já volumosa e ainda crescente de excedentes. Não podem encontrar saídas onde investir seu dinheiro com a finalidade de gerar novos lucros, razão pela qual o sistema entra em uma recessão ou algo pior.
Nos últimos anos, a classe capitalista transnacional recorreu à acumulação militarizada, à especulação financeira selvagem e ao achatamento e pilhagem das finanças públicas, sob diferentes instrumentos de endividamentos públicos e privados, para sustentar o seu lucro.
O capital financeiro transnacional e seus agentes políticos utilizaram a crise para impor uma austeridade brutal e tentar desmantelar o que resta dos sistemas de bem-estar e os estados sociais desenvolvidos da Europa, América do Norte, para retirar mais mais-valia da mão de obra, diretamente através de uma exploração mais intensa, e indiretamente através dos cofres estatais. Os níveis de endividamento dos países desenvolvidos aumentaram a níveis históricos.
No entanto, o sistema é incapaz de se recuperar, ao contrário, se afunda mais no caos. As “elites globais”, com a cumplicidade de seus “sócios locais”, não podem dirigir as contradições explosivas. É impossível prever o resultado da crise. No entanto, algumas coisas estão claras na atual conjuntura mundial.
A amplitude dos meios de violência e controle social não têm precedentes. As guerras informatizadas, aviões teleguiados, bombas antibunker, guerras das galáxias e outros mudaram o rosto da guerra. A guerra se tornou algo “normal” e “sanitário” para aqueles que não estão na mira direta de uma agressão armada.
Também sem precedentes é a concentração do controle dos meios de comunicação e da produção de símbolos, imagens e mensagens nas mãos do capital transnacional. Chegamos à sociedade de vídeo-vigilância e ao controle “orwelliano” do pensamento.
Paulatinamente, estamos chegando aos limites da grande expansão do capitalismo, no sentido de que já não há novos territórios de importância que possam ser integrados ao capitalismo mundial. A desruralização já está muito avançada e se intensificou a mercantilização do campo e dos espaços pré e não capitalistas, convertidos ao estilo estufa em espaços do capital, de modo que a expansão intensiva está chegando a níveis nunca vistos antes.
Emerge um grande excedente de população que habita um planeta de cidades-miséria, excluído da economia produtiva, lançado às margens e sujeito a sofisticados sistemas de controle social e de crise de sobrevivência, como também a um ciclo mortal de pilhagem-exploração-exclusão. Este fato expõe de maneira nova o perigo de um “fascismo do século XXI” e de novos episódios de genocídio para conter a massa excedente de humanidade e sua rebelião real ou potencial.
As elites mundiais foram incapazes de apresentar soluções, estão na bancarrota política e são impotentes para dirigir o curso dos acontecimentos que ocorrem diante de seus olhos. No G-8, G-20, outros foros e em outros organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), primam as disputas, divisões e uma aparente paralisia, onde se mostram indispostos a questionar o poder e a prerrogativa do capital financeiro transnacional. Essa fração do capital que é hegemônica em escala mundial é, ao mesmo tempo, a fração mais voraz e desestabilizadora.
Enquanto isso, os aparelhos estatais nacionais e transnacionais resistem em intervir para impor regulações ao capital financeiro global. Sim, atuaram para impor os custos da crise à classe trabalhadora. As crises orçamentárias e fiscais que supostamente justificam os cortes no gasto e a austeridade, na realidade, são as consequências das políticas financeiras falidas do capitalismo e seus agentes. Mais uma vez, transferem os custos da crise às classes trabalhadoras e populares, por meio da redução de salários, mais impostos, reformas das aposentadorias e pensões, flexibilização trabalhista e, por conseguinte, acarreta a precarização do emprego.
Em conclusão, não haverá saída rápida do caos mundial que cresce. Aguarda-nos um período de grandes conflitos e transtornos profundos, nos quais três setores do capital transnacional, em particular, se destacam como os mais agressivos e propensos a buscar acordos políticos neofascistas (Brasil, Itália, Áustria) para garantir a acumulação contínua, na medida em que a crise avança: o capital financeiro especulativo, o complexo militar-industrial-segurança e o setor extrativo-energético.
A acumulação de capital no complexo militar-industrial-segurança depende de intermináveis conflitos e guerras - incluindo as chamadas guerras contra o terrorismo e as drogas -, assim como da militarização do controle social.
As indústrias extrativas dependem de novas rodadas de expropriação violenta e da degradação ambiental em todo o planeta.
Como destacava um recente relatório da OIT, um total de 2 bilhões de trabalhadores têm um emprego informal, ou seja, 61% da população mundial ativa. Isto nos ilustra sobre a precariedade, periculosidade e amplitude do capitalismo em sua fase atual, que estimula uma recessão, estagflação e outros impactos econômicos/financeiros/sociais de alcance global. A indiferença mecânica do capitalismo como sistema robustece com as desgraças humanas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Um "precário" momento global: os eufemismos da crise cíclica? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU