27 Fevereiro 2019
“A tarefa hoje é se preparar e conseguir fazer com que os atores sociais invadam a agenda política e se preparem para imaginar soluções colaborativas à crise que parece se avizinhar, opostas à lógica destrutiva que os tambores de guerra nos anunciam”, escreve o economista Ignacio Muro, especialista em modelos produtivos e em transições digitais, em artigo publicado por Economistas Frente a la Crisis, 24-02-2019. A tradução é do Cepat.
O duro presente, com sociedades confundidas e fraturadas, também se expressa mediante uma clara linha que conecta e alinha os traços de um novo tipo de poder que se estende em muitos diferentes espaços da realidade econômica.
Há um fio profundo que conecta o primitivismo imperial, demonstrado por Trump, com a lógica corporativa da grande empresa global baseada em formas de poder unipessoais e quase monárquicas. Esse mesmo fio enlaça as pulsões de reafirmação nacional das direitas populistas xenófobas e excludentes (Vox ou Bolsonaro como exemplo) com o comportamento do empresário mais ordinário de uma pequena empresa - espanhola, brasileira, polonesa... -, que só concebe seu negócio com contratos de lixo e mão dura. Também há conexão entre esses mundos e o medo das classes médias da igualdade de oportunidades dos “outros”, para que não disputem os escassos postos disponíveis. E, igualmente, há conexão entre essas múltiplas lógicas de poder com a furibunda rejeição do varão tradicional à igualdade da mulher.
Pensava Espinoza que “cada coisa se esforça, quando está a seu alcance, por perseverar em seu ser”. De modo que não há que se surpreender que o capitalismo comece a reivindicar soluções claramente estruturadas em privilégios de classe, mostre sua incondicionalidade com uma democracia que descanse na igualdade de oportunidades, baseadas no mérito, e exiba mão dura, ao mesmo tempo em que perde capacidade de sedução e manobra na resolução de conflitos.
Para onde nos leva esta nova lógica? Antecipa um futuro de crise marcado por uma encruzilhada com dois caminhos: de um lado, uma via marcada pela destruição de valor e os “tambores de guerra”; de outro, uma oportunidade certa para caminhar para novos impulsos criativos associados à democratização da economia e das empresas.
A conjuntura econômica está carregada de preocupação com o futuro: de um lado, os analistas assumem como inevitável que se aproxima uma recessão que se teme que seja superior à de 2008; de outro, os Estados Unidos se sentem impugnados pela China como potência emergente que ganha influência em áreas da Ásia, África e América Latina, que até pouco tempo atrás as sentiam como “próprias”.
Um terceiro elemento acrescenta uma incerteza adicionada ao momento: existe consenso em que não há margem de manobra na política econômica para combater a próxima crise. É preciso recordar que nas três últimas recessões, o Fed, o banco central dos Estados Unidos, pôde baixar os tipos de juros perto de cinco pontos percentuais, algo impossível em momentos em que os tipos seguem em mínimos. Algo parecido ocorre com a política fiscal e os ajustes sociais: os níveis de endividamento tornam difícil elevar o gasto público ou rebaixar impostos que atuaram como estímulos para combater uma recessão, ao passo que a proximidade e a dureza das políticas de austeridade implantadas na crise anterior tornam quase impossível sua reedição.
Nesse contexto, os mercados temem/deduzem uma faísca (Venezuela, Irã, Ucrânia...) que desencadeie uma crise geopolítica de gravidade e some como prováveis conflitos bélicos que superem a lógica da baixa intensidade. A guerra e o capitalismo voltam a se emparelhar como opção de saída de uma crise com suas consequências de destruição-reconstrução de capital.
A questão é se um contexto tão complexo permite uma saída alternativa. Logo, aparecerão líderes que, na linha de Nicolas Sarkozy, pretendem nos narcotizar com a retórica de “refundar o capitalismo”. A diferença é que, desta vez, seremos obrigados a enfrentá-lo seriamente.
É que se as políticas de austeridade já possuem escassa margem de manobra pela tremenda desigualdade herdada da crise anterior, uma saída pacífica para a próxima crise só pode nascer colocando em discussão o modo de produzir e a lógica da organização empresarial. Não é possível que as empresas obriguem os diversos atores econômicos (trabalhadores, instituições, provedores, clientes...) a compartilhar os riscos e os sacrifícios e não socializem e compartilhem as decisões. De modo que, quando os ajustes voltarem a ser imprescindíveis, os trabalhadores terão o direito (serão obrigados, inclusive) de reivindicar que seja quantificado e capitalizado seus sacrifícios, mediante a participação no capital das empresas.
É também o único modo de se assegurar que a crise não se converta em uma estafa que desloque para dividendos os ajustes de salários e emprego que o ajuste acarreta. Seria também um modo de reequilibrar o poder interno e obter como trabalhador-acionista a informação e os direitos que lhe é negado como mero trabalhador. Paradoxalmente, a própria incapacidade do sistema em encontrar uma solução poderia abrir um futuro de diálogo e acordo, quanto mais débil e fragmentado parecer o mundo do trabalho.
Esse cenário poderia significar duas coisas e abriria duas interpretações: de um lado, como uma forma de “refundar o capitalismo” e integrar o trabalhador-acionista individualmente no capital; de outro, como o reconhecimento de que o verdadeiro capital na nova economia reside no conhecimento vivo que os trabalhadores proporcionam como coletivo. Ou seja, como um passo para mais capitalismo e, ao mesmo tempo, como um passo para o pós-capitalismo, duas interpretações que, além disso, poderiam conviver e competir durante muito tempo.
Mas, de qualquer modo, seria um passo objetivo, pequeno ou grande, para delineamentos inclusivos, associados à democracia econômica. A pergunta é se as forças progressistas estão capacitadas para vislumbrar e gerir esse cenário possível, se entendem o que essas transições significam, se vislumbram as tarefas que deveriam assumir. A realidade é que isso exige um corpo conceitual do qual careceremos se não forem colocadas em curso, de forma urgente, plataformas para debater e desenvolver a democracia econômica.
Não parece que o problema do mundo, hoje, seja “acabar com a propriedade privada”, mas, sim, superar os modelos caracterizados pelo controle autocrático centralizado, que definem o último capitalismo. O impulso de empresas abertas à participação de seus trabalhadores e outros grupos de interesses é a forma de limitar a concentração de poder dos primeiros executivos como agentes destacados das “minorias de controle” nas grandes corporações. Uma tarefa que necessita ser complementada com novas formas de gerir o espaço público e revitalizar sua missão em termos de eficácia associada ao interesse geral, superando os programas de colaboração público-privado que legitimaram a pilhagem de recursos públicos por elites extrativas. Ou com a extensão de novas formas cooperativas e de trabalho associado em pequenas e médias empresas provedoras de serviços de alto valor.
A história demonstra que não há revoluções globais que sejam realizadas de uma só vez. Que as mudanças se consolidam mediante a coexistência, por um longo período de tempo, de modos de produção diferentes. Que o que intuímos como pós-capitalismo começa a estar presente em determinadas formas econômicas não capitalistas que atuam como moléculas que devem se desenvolver como símbolos de um novo poder, que cuidam do valor do trabalho como fator de inovação em oposição aos enfoques rentistas e as lógicas extrativas.
Não é possível assegurar que esses desafios realmente nos sejam apresentados. Ou pode acontecer que a realidade nos transborde, obrigando a gerir situações que a sociedade está há décadas sem debater. De qualquer modo, a tarefa hoje é se preparar e conseguir fazer com que os atores sociais invadam a agenda política e se preparem para imaginar soluções colaborativas à crise que parece se avizinhar, opostas à lógica destrutiva que os tambores de guerra nos anunciam.
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O futuro se aproxima: democracia econômica ou “tambores de guerra”. Artigo de Ignacio Muro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU