20 Fevereiro 2019
Por trás da fachada, a Igreja católica não é bonita de se ver. Em 630 páginas, Sodoma. Poder e escândalo no Vaticano relata quatro anos de investigação (encomendada) no Vaticano e em trinta países. Jornalista da France Culture, já distinguido por ensaios ambiciosos como Soft Power, o autor encontrou-se com muitos sacerdotes, bispos e cardeais. No final desta viagem às obscuras entranhas e palácios do escândalo, Frédéric Martel afirma que a instituição católica é “uma das maiores comunidades homossexuais do mundo”. Ele mesmo gay, apresentando-se como separado da fé, pretende expor a hipocrisia que reina desde os seminários até o topo da instituição. “A homofobia” muitas vezes demonstrada seria o escudo de uma “homofilia” reprimida ou praticada.
"Nós lemos o tijolaço de Frédéric Martel. Veredito: criticável, mas salutar", afirma o editor da revista francesa La Vie.
O comentário é de Jean-Pierre Denis, publicado por La Vie, 19-02-2019. A tradução é de André Langer.
Quanto mais um prelado fala com virulência contra a homossexualidade, tanto mais tem a chance para que o interessado seja atraído pelo que combate. Esse segredo familiar fomentaria a corrupção e promoveria a impunidade pelos abusos sexuais. A existência de redes, ou melhor, como diz Martel, de um “rizoma”, seria um fator determinante para entender por que a instituição encontra tantas dificuldades para combater a corrupção e os abusos sexuais. Basicamente, todo mundo protege o triste segredo do outro para preservar suas prebendas ou seus pequenos hábitos. O raciocínio é perturbador, mas o pacote de elementos relatados é poderoso.
Muitas vezes feroz ou sarcástico, brilhantemente conduzido, o relato nos faz entrar nos círculos do poder eclesial. Fica-se, deve-se dizer, muitas vezes “impressionado”. É raro que tal nível de investigação seja conduzido de maneira tão sistemática. A obra não é um simples tecido de histórias. É um livro sério, que deve ser lido com seriedade. O autor parece ter aberto mesa e hospedagem no Vaticano, uma instituição ainda considerada hermética. Certamente, Martel não é o primeiro a denunciar com força a mentira e a corrupção na Igreja.
Certamente, muitos dos seus desenvolvimentos não são, estritamente falando, revelações, por exemplo, sobre o apoio à ditadura de Pinochet. E outros, especialmente sobre a França, se voltam para clichês, ideologias ou insinuações. O quadro que ele pinta não corre o risco de desestabilizar os católicos sinceros que têm outra imagem ou experiência da Igreja. Martel evoca também um “círculo de corrupção” em torno de João Paulo II. Por ter escrito que não se deveria canonizar este (por outro lado) grande Papa sem ter limpado os arquivos negros de seu Pontificado, eu não fiquei surpreso, mas acabrunhado.
Mas o fato de que esta investigação foi necessariamente feita com recursos financeiros significativos, pode questionar. O fato de que o autor ou os editores acharam apropriado inserir no final do texto uma impressionante lista de advogados, pode intimidar. Isso pode não encorajar o exame crítico... Mais problemático, as afirmações do autor são difíceis de refutar porque não são verificáveis. Algumas, porque são teses pessoais – opiniões, mesmo marteladas e mesmo na moda, não são demonstradas. Outras, porque são impressões baseadas em uma conivência, um olhar, um gesto que escapa. Ou deduções de deduções, do tipo: “dom Dupond era amigo de dom Durand, e o bispo Durand estava lendo o escritor católico Dubois, que era secretamente gay, mas não o assumia, portanto dom Dupond era gay”.
A falta de referências é problemática, dada a importância das questões, a força das teses e a maquinaria de comunicação que o livro tem. Entendemos essa escolha quando uma fonte está em jogo ou quando se trata de uma pessoa viva, mas menos quando o autor se refere a um livro ou a um documento sem dar indicações precisas e sem aspas. Às vezes, estamos mais no tom do Código Da Vinci do que da reportagem.
O fato de o autor fazer da questão gay a explicação quase única dos problemas da Igreja é discutível. “Se a única ferramenta que você tem é um martelo, todos os problemas começam a se parecer com um prego”, diz o provérbio. Certamente, em todas as civilizações (Grécia, Japão, Tibete, ordens religiosas, exércitos, internatos...), as sociedades humanas baseadas na obediência eram propícias ao desenvolvimento de relações homossexuais ou à “iniciação” de efebos. Mas reduzir o comportamento dos seres humanos ao seu desejo sexual – manifesto, satisfeito, reprimido ou sublimado – é reducionista.
Ver a homossexualidade em todos os lugares pode se transformar em obsessão. Martel afirma, assim, que a denúncia do cristianismo “autorreferencial” seria, para Francisco, uma “palavra código” para “insinuar a homossexualidade”, o mesmo valeria para o “narcisismo teológico”, o que é risível. Se nos esquecermos por um instante de quem é o autor, poderíamos taxá-lo de homofobia, pois suas fórmulas são severas, sistemáticas e monocausais. Elas também se juntam, paradoxalmente, àqueles dos adversários mais reacionários do atual Papa.
Às vezes, estamos no campo do prêt-à-penser: “Milhões de fiéis se afastam da Igreja por causa do seu desajuste com o espírito do tempo”. Às vezes, as afirmações do autor se destroem mutuamente. Joseph Ratzinger? Martel perde sua estatura intelectual, o vê como “efeminado” e denuncia sua “perversão” sádica de “grande inquisidor”, mas reconhece também que este Papa foi vítima de uma “verdadeira crucificação midiática e militante”. Bertone, o braço direito deste mesmo Papa Bento XVI? “Ele vê conspirações em todas as partes, maquinações e cabalas”, exclama o autor, cujo livro inteiro quer ver conspirações em toda parte, maquinações e cabalas. Essas críticas, importantes, não diminuem em nada o fato de que Sodoma vai fazer história e será salutar.
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“Sodoma” ou os segredos de família do Vaticano. "Um livro criticável, mas salutar" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU