07 Fevereiro 2019
Pacote “anticrime” do ministro inclui medida que, copiada dos EUA, ataca garantias civis, produz encarceramento em massa e vitima, em especial, negros e pobres. Há alternativas, escreve João Telésforo, professor de Direito Constitucional, em artigo, publicada por Outras Palavras, 07-02-2019.
Entre as propostas apresentadas pelo Ministro Sérgio Moro na segunda-feira, 4 de fevereiro, como parte de seu pacote de medidas “anticrime”, uma das mais graves e perigosas é a importação do “plea bargain” (ou “plea bargaining”), instituto fundamental do sistema de justiça criminal dos Estados Unidos – país com maior população carcerária do mundo. Nesse modelo, o Ministério Público e o investigado ou denunciado podem celebrar acordos de não persecução penal ou de redução de penas, mediante confissão de culpa.
Argumentaremos, aqui, que se trata de uma medida vocacionada a aprofundar graves problemas do nosso direito processual penal, aspecto fundamental da epidemia de violência que assola o Brasil. Apontaremos também, ao final, uma proposta de reforma do processo penal, no sentido oposto àquela apresentada por Moro, que pode contribuir para um enfrentamento efetivo à crise sistêmica da nossa justiça criminal.
Os defensores da proposta de Moro argumentam que a celebração desses acordos geraria ganhos de celeridade e eficiência do processo penal, beneficiando a sociedade com menos gastos com a máquina do sistema de justiça e menos tempo para dar início à execução das penas. Os infratores, por sua vez, teriam, supostamente, a oportunidade de cumprir penas menores. Não é isso que demonstra, entretanto, a experiência internacional.
Nos Estados Unidos, 97% dos processos criminais são concluídos com acordo de plea bargaining, de modo que a função de julgar foi transferida, sistemicamente, dos juízes para os promotores. Assim também acontecerá caso a proposta de Sérgio Moro seja aprovada: na prática, o Ministério Público acumulará a função de acusar com a de sentenciar no processo penal, e o juiz será reduzido a uma função residual, de homologar acordos já celebrados pelas partes, devendo deixar de fazê-lo somente em caso de manifesta ilegalidade ou desproporcionalidade.
Esse modelo tem sido cada vez mais criticado pelos próprios norte-americanos, como se viu recentemente, em dia 2/11/18, em sessão plenária da seção de justiça criminal da American Bar Association (análoga à nossa OAB), dedicada ao debate do tema (ver aqui). Conforme a respeitada organização Fair Trials – uma das convidadas para aquela sessão –, a experiência mostra que o “plea bargain” não promove “livre acordo” entre denunciado e Ministério Público, e sim o peso da ameaça de um processo penal ou de uma condenação à cadeia, como forte “incentivo” ou coação para que o acusado aceite a proposta dos promotores.
Jed Rakoff, juiz federal sênior em Nova York, que também participou do painel, tem argumentado há anos que esse modelo de processo penal padece de falta de transparência: consiste em um “sistema de justiça totalmente secreto”, menos passível de controle público; promove forte desequilíbrio a favor da acusação; e conduz à condenação sistemática de pessoas inocentes, sem que elas tenham podido, sequer, se defender em juízo. Vide, a esse respeito, o artigo “Why Innocent People Plead Guilty”, publicado por Rakoff em novembro de 2014, entre outras matérias sobre o assunto.
Na prática, esse modelo de persecução penal sepulta, definitivamente, os princípios da presunção da inocência, ampla defesa e contraditório, por possibilitar a condenação criminal sem ter por base a produção de provas em juízo, a instrução criminal conduzida pelo juiz, segundo o devido processo legal, com garantias à presunção da inocência, ao contraditório e à ampla defesa.
Quando a parte acusadora se confunde com a julgadora, não subsiste a concepção democrática do processo penal, como anteparo do cidadão ante o arbítrio punitivo do Estado; temos, antes, um Estado policial. Não surpreende que a generalização da condenação penal “negociada” tenha sido um dos responsáveis por gerar, nos Estados Unidos, a maior população carcerária do mundo. Rakoff argumenta que esse modelo ganhou cada vez mais força para ampliar a capacidade do sistema de justiça processar o rápido aumento dos crimes levados a julgamento, em especial a partir da década de 1970, com o impacto de políticas de ampliação do Estado penal, notadamente a “guerra às drogas”.
Geram indignação, mas tampouco produzem surpresa, as pesquisas que têm demonstrado que os acordos penais produzem maiores taxas de encarceramento da população negra e latina do que da branca, inclusive pelos mesmos crimes (relacionados a drogas por exemplo) – vide aqui,aqui e aqui. Deve-se recordar que negros e latinos são 31% da população estadunidense, mas quase o dobro (59%) da população prisional do país.
O que ocorre, no modelo realmente existente de “justiça penal negociada”, não é a manifestação livre e voluntária de vontade por parte do acusado, mas a criação de uma forte estrutura de incentivos para que abdique de seu direito de ampla defesa, da produção de provas no processo, e se autoincrimine, para evitar uma pena maior, ainda que a considere injusta. Conforme Rakoff, esses “acordos” equivalem a um “contrato de adesão”, em que uma parte pode efetivamente impor sua vontade à outra. Segundo explica o jurista Geraldo Prado, professor de Direito Processual Penal da UFRJ, ex-Promotor de Justiça e Desembargador aposentado, “não se produz consenso entre sujeitos que estão em posição desigual”.
Prado lembra que o professor John Langbein, da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, em texto da década de 1970, comparou o sistema penal do “plea bargaining” com a justiça criminal medieval europeia, baseada na tortura – que também visava a extrair a confissão dos acusados, também com supostas salvaguardas para que esta não decorresse somente do afã de se livrar do sofrimento imposto. Segundo Langbein (v. aqui), há paralelos notáveis quanto à “origem, função e até mesmo pontos específicos da doutrina”, entre os dois sistemas.
O caráter não consensual da “justiça penal negociada” já pode ser observado no Brasil, na experiência das transações realizadas pelos juizados especiais criminais (para crimes de menor potencial ofensivo, de penas de até dois anos), desde 1995. Vera Ribeiro de Almeida, na dissertação de mestrado “Transação Penal e Penas Alternativas: uma pesquisa empírica nos juizados especiais criminais do Rio de Janeiro” (Universidade Federal Fluminense, 2014, p. 219-220), concluiu: “durante as audiências preliminares e na fase de aplicação das transações penais, o ‘acordo’ foi gerado pelo mecanismo da imposição da vontade do agente estatal, fosse ele representado pelo atuar do conciliador ou do promotor de justiça. Os diálogos entre as partes foram evitados pelas interferências dos operadores e as reivindicações das vítimas foram afastadas, em face do objetivo exclusivo da penalização do autor do fato. (…) Em geral, a transação penal foi representada como imposição de uma pena, de forma antecipada, prevalecendo o caráter repressivo deste procedimento”.
A autora observou também “práticas que, fundadas na mesma lei, variaram conforme o juizado, a situação econômica ou social do infrator, ou ainda, a necessidade de se confirmar e assegurar a autoridade do promotor de justiça, entre tantos outros critérios. O ‘processo’, por sua vez, foi representado como uma ameaça ao cidadão e não como uma garantia”. Ela também chama a atenção para a “ausência das justificativas das escolhas dos promotores de justiça” – um dos aspectos da falta de transparência desse instituto, apontada por Rakoff –, o que “refletiu sua desobrigação quanto à prestação de contas de seus atos e sua irresponsabilidade frente ao serviço público, comportamentos estes que embora se aproximem do perfil de um Estado de polícia, representam a forma muito característica do Estado Democrático de Direito brasileiro”.
Sérgio Moro pretende, agora, ampliar a possibilidade de celebração de acordos de não persecução penal (em que o Ministério Público não apresenta a denúncia, em troca da confissão e ajustamento da pena) para crimes com penas de até quatro anos. Além disso, propõe também a possibilidade de celebração de acordos já após o recebimento da denúncia; nesses casos, aplicáveis a todo e qualquer crime (inclusive aqueles com penas maiores), não se trata de acordo de não persecução penal, por óbvio (uma vez que a denúncia já foi apresentada), mas para a aplicação imediata das penas, com renúncia à produção de provas e à apresentação de recursos, pelo denunciado. Que dizer, então, da pessoa que já esteja presa provisoriamente – situação de mais de um terço dos mais de 650 mil presos do Brasil? Estará em condições de negociar “livremente” um acordo penal?
Não se trata, portanto, de uma mudança marginal, mas de uma transformação estrutural do processo penal brasileiro, para que, tal como nos Estados Unidos, o modelo da justiça penal “negociada” – ou imposta – pelos promotores torne-se predominante.
O rechaço a esse modelo de negociação não implica negar quaisquer métodos “alternativos” de resolução de conflitos. Devemos fortalecer a participação ativa das vítimas no processo penal, conforme propõe o paradigma da justiça restaurativa; a proposta de Sérgio Moro, entretanto, não caminha nessa direção.
Os defensores da justiça criminal “negociada” argumentam que produzirá redução de gastos com a máquina do processo penal e a conclusão dos processos em tempo mais breve. Em suma, ganhos de eficiência. Trata-se de um modelo impulsionado pela crescente força da abordagem do “Law and Economics” ou “análise econômica do direito”, que submete a estrutura do Judiciário e as suas decisões a cálculos de natureza econômica, vinculados à redução do gasto público e maximização do lucro privado.
Contra o raciocínio econômico estreito da propaganda do “Law and Economics”, devemos considerar, em primeiro lugar, que direitos fundamentais – ao devido processo legal, à presunção de inocência, contraditório e ampla defesa – não podem ser sacrificados porque seriam muito “caros”, em nome da lógica da “austeridade fiscal”. A análise de custo-benefício da L&E (ou AED) depara-se com sérios limites, diante do fato de que não é possível mesurar quanto vale uma vida, ou condenar uma pessoa inocente a passar anos na prisão, ou produzir uma catástrofe social por meio da política de encarceramento em massa [sobre o assunto, v. o livro “Priceless: On Knowing the Price of Everything and the Value of Nothing”, de Frank Ackerman e Lisa Heinzerling, de 2004]. O nosso desafio é estruturar as decisões de política econômica e política pública para garantirem direitos fundamentais (segundo propõem abordagens como a “análise jurídica da política econômica”, AJPE), e não nos conformarmos à violação de direitos em nome de decisões econômicas contingentes, apresentadas como necessárias.
De qualquer modo, em segundo lugar, a generalização do sistema de “justiça penal negociada”, nos Estados Unidos, ao ser um dos instrumentos para o superencarceramento, não gerou economia para o Estado – pelo contrário, dados os altos custos do sistema prisional. Produziu, isto sim, lucros vultosos para grades empresas privadas que têm explorado a privatização dos presídios, nesse país, ao longo das últimas décadas. O “plea bargaining” avançou decisivamente, nos EUA, a partir da década de 1970, de modo simultâneo às políticas neoliberais de privatizações, desmonte dos serviços públicos, precarização das relações trabalhistas e aumento do desemprego. Não se trata de uma coincidência, mas fruto da maior incidência de uma determinada classe sobre as decisões do Estado, vinculado à dinâmica do capitalismo crescentemente concentrado, financeirizado e “improdutivo”.
Em terceiro lugar, e não menos importante, há propostas de reformas da legislação penal e do sistema de justiça criminal que, ao mesmo tempo que promoveriam efetiva redução de gastos estatais (e, inclusive, aumento de arrecadação), também seriam positivas para a política de segurança pública e para a garantia de direitos. Entre estas, encontram-se: o fim da política da guerra às drogas; o estímulo à justiça restaurativa e às chamadas “medidas alternativas” à prisão; e o fortalecimento das garantias no processo penal.
A reforma do processo penal de que precisamos caminha precisamente no sentido oposto ao da proposta de Sérgio Moro. São urgentes medidas como aquela proposta pelo ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), no PL 7973/2017, que cria a figura do juiz de garantias, responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado. Atualmente, um mesmo juiz participa da fase de inquérito e profere a sentença. Esse projeto atribui ao juiz de garantias atuar na fase da investigação, e ao juiz do processo julgar o mérito do caso, tendo competência para controlar a legalidade das provas produzidas na fase de investigação.
“Trata-se de alteração indispensável à materialização da ideia de sistema processual penal acusatório, em que as figuras do acusador e do julgador estão organicamente separadas”, argumenta Wyllys.
O projeto apresentado por ele foi elaborado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em conjunto com a Pastoral Carcerária Nacional – CNBB, a Associação Juízes para a Democracia e o Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação (da Faculdade de Direito da UnB), como parte de um conjunto de dez medidas processuais penais contra o encarceramento em massa.
O desencarceramento, enfim, é a saída para aumentar a eficiência do nosso processo penal; gerar maior celeridade dos julgamentos; debilitar uma das fontes do poder de organizações criminosas, que recrutam novos membros em prisões superlotadas e sucateadas; e, sobretudo, reduzir injustiças estruturais cometidas por um sistema de justiça que opera com gritantes filtros de seletividade de classe e raciais.
É exatamente para isso que tem apontado o crescente movimento, nos Estados Unidos, em defesa da reversão da política de encarceramento em massa. Da luta social à inserção institucional, essa pauta tem ganhado ressonância e força crescente na sociedade americana. Se é para seguir exemplos gringos, nossos políticos precisam de menos “Law and order”, e mais aprendizado com Angela Davis e Alexandria Ocasio Cortez.
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O novo contrabando de Moro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU