10 Janeiro 2019
Você já deve ter lido sobre os bilionários da tecnologia que estão apoiando pesquisas ambiciosas sobre a longevidade. Entre eles estão Larry Ellison, que investiu centenas de milhões de dólares em pesquisa anti-envelhecimento; Larry Page, da Alphabet, que colocou um bilhão de dólares na Calico, uma misteriosa empresa de extensão de vida. E há o fundador do PayPal e o senhor das sombras de todos os propósitos, Peter Thiel, que está sugando o sangue do pescoço de… bem, espere, não está muito claro o que Peter Thiel está fazendo. Mas ele demonstrou interesse na parabiose, que envolve a obtenção de transfusões de sangue de jovens.
A reportagem é de Jessica Powel, publicada por Outras Palavras, 08-01-2018.
O interesse da indústria de tecnologia na imortalidade não é surpreendente: conquistar a morte seria o último santo graal a romper – e uma nova e fabulosa oportunidade de mercado. Embora neste caso o interesse provavelmente não seja apenas intelectual e capitalista. Acessar a eternidade (ou algo próximo disso) seria o ato mais extremo de auto-exaltação: prova eterna do gênio e superioridade de alguém.
É por isso que muitos dos esforços empregados na busca da vida eterna têm se concentrado compreensivelmente na ciência e nas personalidades por trás dela – o vasto financiamento proveniente de pessoas que construíram suas fortunas fazendo software e que parecem acreditar que o envelhecimento é um código que pode ser quebrado.
No entanto, pouco tem sido escrito sobre as consequências que poderiam surgir se esses bilionários – vamos chamá-los de Centenários — conseguissem empurrar a si mesmos, e seus amigos ricos, para o clube de três dígitos.
O contexto é: as estimativas atuais preveem que a expectativa de vida de alguém nascido em 2050 estará em torno dos 90 anos – um avanço pequeno, mas importante, devido ao progresso gradual na pesquisa e combate a doenças específicas. Mas os que buscam projetos de longevidade muito mais ambiciosos dizem que podemos ir bem além. Alguns cientistas duvidam que haja um limite absoluto para o corpo humano e outros afirmam que este limite pode se estender até os 1000 anos (neste caso, ao fim, chamaremos os Centenários de Milenários)…
Em países como os Estados Unidos, já existe uma diferença de vida de 20 anos entre diferentes grupos socioeconômicos, com uma idade média de 66 anos em algumas das comunidades mais pobres, em comparação com 87 em áreas mais ricas [1]. É possível imaginar que, até o final do século, o abismo entre as expectativas de vida possa aumentar ainda mais, já que os caríssimos avanços em biotecnologia, nanotecnologia, robótica e outros estão disponíveis apenas para os verdadeiramente ricos.
Sabemos há muito que a expectativa de vida não é apenas a combinação de bons genes e vida saudável, mas que riqueza e meio ambiente também desempenham papéis importantes. A diferença é que, no futuro, mais ainda do que o presente, uma vida mais longa pode ser algo que se pode adquirir imediatamente. E o que pode ser adquirido por uma pessoa é muitas vezes cobiçado por muitos; o que é cobiçado por muitos em geral se torna uma grande oportunidade de mercado.
Uma oportunidade de mercado, no setor de tecnologia, é frequentemente expressa como “democratização”. Assim como o Vale do Silício democratizou publicações, comunicações, informações e pagamentos, agora os Centenários de tecnologia estariam se preparando para ajudar a “democratizar a longevidade”.
Como quer que seja chamado — longevidade, extensão de vida, “melhor envelhecimento” — o campo provavelmente seguirá os passos da blockchain, realidade virtual e inteligência artificial, repleto de avanços legitimamente inspiradores, bem como de alegações ilusórias. Ainda mais do que hoje, provavelmente veremos substâncias bioativas e suplementos que prometem melhorar a vida em nossos alimentos e bebidas, além de gadgets e aplicativos que estimulam, lembram ou até mesmo exigem certas modificações no estilo de vida para manter o usuário saudável. Sob a promessa de vencer a morte, nossos corpos poderão ser medidos, monitorados e manipulados a cada momento, numa extensão muito mais impressionante do que um Fitbit primitivo dizendo quantos passos você dá durante o dia.
Aos poucos, viveremos todos um pouco mais — não de forma exponencial, mas gradual – com as migalhas das conquistas obtidas pelos Centenários. E você pode apostar: o mesmo setor que quer nos ajudar a decifrar a imortalidade terá muitos serviços suplementares para nos vender, enquanto nos dirigimos suavemente ao túmulo. É apenas o mais leve ato de futurismo imaginar o setor de tecnologia trazendo fármacos entregues por drone, cadeiras de rodas terrestres auto pilotadas e dentaduras que analisam a composição da saliva para alertar, a nós e a nossos médicos robôs, sobre qualquer mudança preocupante em nossa vida. Podemos esperar algum sinal desses serviços bem antes do meio deste século.
É claro, há muito se afirma que o envelhecimento da população exercerá enorme pressão sobre a infra-estrutura social. Basta pensar nas implicações para o meio ambiente, transporte, assistência médica e a quantidade de espaço alocado para reclamações longas na seção Cartas ao Editor do único jornal restante. Mas menos atenção tem sido dada à desigualdade de idade. Embora qualquer discussão sobre o futuro esteja fadada a ser especulativa, a desigualdade potencial de nossas datas de morte merece mais atenção.
Em primeiro lugar, a desigualdade de renda provavelmente piorará. Isso porque a morte tem sido um grande redistribuidor de riqueza. Sem a morte, para efetivar um pesado imposto sobre herança, os Centenários concentrarão uma fatia ainda maior do dinheiro do mundo. Você julga que a distribuição de riqueza é desigual hoje em dia? Pense sobre como seria quando os ricos morressem muito mais lentamente do que o resto da população e quando não houvesse imposto sobre o capital para impedi-los de acumular mais.
O poder é um corolário da riqueza. É derivado de quanto capital você controla e dos relacionamentos que você constrói com outras pessoas ricas. Em um futuro de grande desigualdade de renda, seria possível esperar uma concentração muito maior de poder nas mesmas mãos (antigas) de antes. Isso pode ser uma benção para o financiamento estatal de rampas de acesso para cadeiras de rodas, mas um mar de líderes ricos e de pele enrugada dificilmente representará a população total ou se alinhará com seus interesses. O que acontece quando um presidente norte-americano de 130 anos determina o orçamento de educação para os alunos que não se aposentam até um século depois?
Isso pode soar como o prelúdio de uma revolta do tipo “Os filhos do Comum contra os Centenários”, mas o aspecto insidioso da desigualdade de idade — como o da maioria das desigualdades — é que nós a apoiamos tanto quanto a criticamos. Fazemos o possível para melhorar nossa posição pessoal, enquanto simultaneamente tentamos lutar por um princípio maior. E é muito possível que nos lamentemos sobre a desigualdade, porém sejamos impotentes para revertê-la, porque estaremos comprando todos os Kylie Kollagen Kits que pudermos ,e as pessoas com poder de enfrentar a situação serão as mesmas ameaçadas pela revolta.
De todos os bilionários que nos governaram ao longo da história recente, são os bilionários da tecnologia, em particular, que não professam nada além de boas intenções quando falam sobre os problemas que eles próprios criaram. Pode-se imaginar os Centenários da tecnologia — conhecidos por seus fortes valores e declarações de missão — fazendo declarações grandiosas sobre o quão profundamente entristecidos estão com a disparidade de idade. Eles podem fazer promessas para combatê-la; eles vão encomendar pesquisas para explorar suas causas. Talvez eles até doem desodorante de célula-tronco ou o Neural Lace de Elon Musk em cidades de baixa renda.
De fato, podemos imaginar que um período marcado por grande desigualdade de idade, riqueza e poder também será marcado por grandes ações na filantropia, permitindo que os Centenários da tecnologia apresentem-se como forças do Bem. É claro que grande parte de suas doações pode estar concentrada em aliviar as pressões que seus próprios negócios de saúde e extensão de vida criaram. As comunidades de aposentados e os centros de cuidados paliativos poderiam proliferar em número, com o nome do doador do Centenário estampado na entrada, servindo como um lembrete constante de sua generosidade. Lembre-se de tudo isso em seus momentos finais, enquanto eles te levam para o Ambulance Airtube de Travis Kalanick [o fundador do Uber] e você vê sua cidade – agora conhecida como Zucker Berg — zunindo adiante, a cara enrugada de homens brancos e enrugados olhando para baixo com benevolência. Lembre-se de que foi você quem comprou os suplementos e os tratamentos; foi você quem devorou imagens dos rostos de plástico dos Centenários e corpos alegres de 120 anos de idade, pulando em um campo de golfe.
Foi você quem quis viver para sempre. Os Centanários estavam lá para tornar tudo isso possível. Tudo o que aconteceu depois estava fora do controle deles. Um “efeito colateral”, se quiser, da imortalidade.
Referência:
[1] Sem falar no Brasil: o Mapa da Desigualdade revela que num único município (São Paulo), a diferença de expectativa de vida chega a 23,7 anos – quando se compara, por exemplo, os elegantes Jardins com o singelo Jardim Ângela [Nota da Tradução].
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O ultracapitalismo controlará a longevidade? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU