20 Dezembro 2018
"Apesar da opressão que poderiam provocar essas manifestações de ressurgimento da extrema direita na América Latina e em outras partes do planeta, não compartilhamos do pessimismo extremo que existe entre alguns atores, ainda que possamos entendê-lo. Um pessimismo que considera que o capitalismo alcançou uma vitória total na América Latina e que qualquer opção de esquerda se tornou inviável. Ao contrário, entendemos que esse colapso afeta os progressismos, e que eles deveriam permitir novas opções para reconstruir as esquerdas", escrevem Eduardo Gudynas, ambientalista e pesquisador vinculado ao Centro Latino-Americano de Ecologia Social - CLAES, e Alberto Acosta, economista, foi presidente da Assembleia Constituinte do Equador e candidato à presidência pela Unidad Plurinacional de las Izquierdas. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Continua o aluvião de análises e opiniões sobre as dramáticas mudanças políticas no Brasil. A partir dos demais países sul-americanos se observa com muita atenção o que ocorre, e, ao menos na nossa perspectiva, é necessário identificar e aprender do que aconteceu no país. O que nos ensina o Brasil para evitar, por exemplo, que a extrema direita alcance a presidência no Equador ou no Uruguai? Como evitar que o exemplo Bolsonaro permita que se acentue ainda mais a deriva à direita no Chile e na Colômbia? Sem negar as intromissões externas ou os desvios internos, é necessário refletir sobre o ocorrido.
É oportuno começar a partir de uma reflexão de Florestan Fernandes sobre o Brasil. Em uma palestra, que tem muita vigência ainda que tenha passado mais de meio século, oferecida em 1965 aos estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo, ele indicava que “na verdade, é quase nula a diferença que separa o presente do passado em muitas comunidades humanas brasileiras, onde ainda imperam formas arcaicas de mandonismo. Também é pacífico que as três experiências republicanas falharam no plano elementar de garantir ao regime democrático viabilidade histórica e normalidade de funcionamento (para não dizer de crescimento)” (1).
Seguindo essas ideias, teria que se perguntar se segue prevalecendo o mandonismo arcaico que descreve Florestan, ou se este mais recente ciclo republicano voltou a falhar em garantir e fortalecer a democracia. Em um artigo anterior exploramos algumas das primeiras lições que se podiam tomar (2). Partimos da distinção entre progressismos e esquerda, para explicar que progressismos como o do Partido dos Trabalhadores - PT abandonaram muitos compromissos das esquerdas dos quais nasceram. Entre eles destacamos a incapacidade para romper com as estratégias de desenvolvimento subordinadas como provedores de matérias-primas, enquanto se refugiavam em políticas sociais cada vez mais assistencialistas e mercantilizadas, sem mudar as arcaicas estruturas de acumulação de capital ou de concentração de riqueza. Advertimos que os experimentos de radicalização da democracia se apagaram, e em troca prevaleceu o verticalismo partidário, o culto ao caudilho. Não se quebraram os vícios da corrupção política e tampouco se deram passos para transformações estruturais, tudo com o qual se faz analogia com as advertências de Florestan.
Neste artigo objetivamos explorar alguns dos elementos que são comuns a esses e outros problemas, partindo de Florestan Fernandes, para concluir em um retorno a ele, e ao seu chamado ao papel que deveriam desempenhar os intelectuais.
Observando desde o exterior a situação brasileira, com tudo o que isso pode ter de vantajoso como também de limitado, em primeiro lugar impressiona o giro político. O giro ocorreu depois de quase quatro governos sucessivos nas mãos de uma coalizão progressista (duas administrações de Luiz Inácio Lula da Silva, uma completa de Dilma Rousseff e a outra abortada). A partir de uma perspectiva histórica, a virada à direita radical foi vertiginosa.
Imediatamente se deve apontar outra particularidade. Muitas análises tanto dentro do Brasil como na América Latina insistiram em descrições essencialistas. Os governos do PT eram apresentados, tanto por outras esquerdas como inclusive por conservadores, como uma maravilha, se insistia em ganhos rotulantes (como a substantiva redução da pobreza), e os apresentava como um exemplo a seguir para as esquerdas dos países vizinhos. Se dizia que Lula era uma esquerda séria, do tipo social-democrata, e longe dos desvarios, por exemplo, de Hugo Chávez na Venezuela. Hoje em dia mudaram os argumentos e as vozes, mas se repete esse essencialismo totalizante: o Brasil agora se converteu no exemplo da pior extrema direita.
Muitas dessas abordagens esquemáticas são as mesmas que indicavam que aquele “povo” que poucos anos atrás era empurrado para a esquerda, agora repentinamente festeja utilizar armas, achincalhar migrantes ou indígenas, ou se refugiar no dogmatismo religioso. É por isso que alertamos sobre os usos superficiais de categorias como “povo”.
Esse problema se repete em vários países sul-americanos. É assim que na Argentina muitos intelectuais e líderes sociais insistiam que os governos do matrimônio Kirchner haviam mudado para sempre a sociedade argentina, enquanto na Bolívia se publicita que se criou um estado “plurinacional” com predominância dos “indígenas”. Agora sabemos que as duas posições são tanto simplificações como exageros.
No Brasil do PT e sua base aliada, como nos demais governos progressistas, quando se cai em simplificações que insistem em apresentar como quase tudo isso foi positivo, já não há lugar nem para advertência ou críticas, nem para os ajustes e mudanças. Aquelas posturas mostram que se minimizaram muitos problemas, e inclusive se negavam as contradições. Ao se abordar as situações dentro do Brasil, a crítica e a autocrítica estavam suspensas para muitos, tanto dentro como fora do país. Não se entendiam os alertas sobre as crescentes contradições no governo do PT e seus aliados. Era mais simples minimizar ou ocultar os problemas, negar os enfrentamentos, ou recorrer a slogans. Entre eles se adjetivavam os alertas como expressão da oposição conservadora, de ser uma esquerda infantil, ou servir ao imperialismo estrangeiro, tão somente para citar algumas delas. Assim, simplesmente qualquer crítica era de antemão desprezada porque se fazia o jogo da direita, diziam.
A negação da autocrítica e a blindagem irracional também se observava, com distintas intensidades, nos países onde os progressismos ainda governam. Isso vai desde a perseguição direta à dissidência partidária e o desmoronamento das garantias democráticas na Venezuela, à decomposição política do governo Ortega na Nicarágua, passa pelo abuso eleitoral como ocorre com o Movimiento al Socialismo - MAS da Bolívia que qualifica qualquer voz de alerta como neoliberal, opositora ou de direita, e chega à postura do governo de Tabaré Vázquez no Uruguai que simplesmente se refugia em uma postura pedante e silenciosa.
Pode-se retrucar que os agrupamentos partidários progressistas ou de esquerda promovem a crítica, que realizam seminários convidando todo tipo de painelistas, que discutem com os movimentos sociais, e assim sucessivamente. Mas na realidade, uma vez ganho o governo, todos eles avançaram para o enclausuramento e blindagem. E o que é mais grave, grupos de pensamento outrora críticos terminaram por orquestrar reuniões que demonstram que nesse passo simplesmente vão morrer de nostalgia pelo poder que perderam.
Uma insistência notável foi a adesão a distintas versões do chamado “novo desenvolvimentismo” como um caminho que não podia ser questionado. É certo que essas estratégias permitiram no início alguns avanços importantes, entre eles o mais destacado e repetido é a redução da pobreza. No entanto se desentenderam todas as advertências que se faziam sobre os limites de um desenvolvimento que seguia baseado nas matérias-primas que se exportavam, mas que geravam severa deterioração ambiental e conflitos locais, em paralelo à perda de terreno dos setores industriais. Nesse contexto se mesclam reivindicações de emprego e saúde com outras, como as demandas econômicas. O consumismo e as ajudas em dinheiro aos setores mais empobrecidos fortaleceram a lógica do clientelismo (sustentado muitas vezes em uma intimidação caudilhista), sem que construíssem ou fortalecessem cidadanias responsáveis e organizações sociais autônomas, indispensáveis para fazer das requeridas mudanças estruturais uma realidade.
O sonho de resolver as contradições e conflitos por meio de compensações econômicas, entregando todo tipo de bonificação, foi derrubado. Em condições onde o consumismo gera a falsa imagem de bem-estar em amplos segmentos sociais, ao carecer de espaços plurais para sobrepesar oposições, se semeia o terreno para apelar a um narcisismo nacionalista que em pouco tempo se conecta com a xenofobia. O racismo xenófobo já não ocorre somente no Brasil. Ultimamente se percebe e se vive nas ruas das cidades da Colômbia, Equador, Peru e Chile. E em ambos se envolve sobretudo a migração venezuelana, aproveitando para acusar o socialismo como a raiz de todos os males.
A situação, em suma, se tornou muito estranha, havia muitas discussões sobre distintas variedades de desenvolvimento, mas se impedia de pensar mais além do desenvolvimento. O debate crítico e plural se empobreceu.
O mesmo ocorre em países vizinhos. A subordinação global como provedores de matérias-primas se acentuou na Venezuela, Equador e Bolívia, e, assim como no Brasil, os setores industriais também se reduziram ou se simplificaram na Argentina e no Uruguai. E nessas nações esse desenvolvimentismo origina conflitos similares. Uma análise minuciosa dessa dinâmica permite entender o limitado potencial de mudança do progressismo.
As posturas diante do desenvolvimento são uma das temáticas principais para distinguir entre progressismos e esquerdas, e que afetam vários grupos nos países vizinhos. Por exemplo, no Peru a aliança Frente Amplio conseguiu uma importante votação, arranhou o segundo turno presidencial, e formou uma importante bancada no Congresso. Mas em pouco tempo rachou devido a uma mistura de disputas pessoais e a contradições mais estruturais: uma ala progressista que defende um desenvolvimentismo estatista, ao estilo do PT, e outro grupo aposta que se nutrem de uma crítica mais radical diante do desenvolvimento. Essa mesma tensão está agora presente no Frente Amplio do Chile, outro grupo que conseguiu uma importante adesão de eleitos na última campanha.
O novo desenvolvimentismo golpeou sobretudo os pobres e marginalizados nas cidades e no campo, e em particular os indígenas. Isso alimentou as brigas do progressismo com organizações campesinas, indígenas, ambientalistas e feministas etc.
Em síntese, os conflitos e as contradições proliferam, e sim se observam com atenção estando presentes no Brasil e nos outros governos progressistas. O que sucede agora é que essas situações são agora mais difíceis de ocultar, e chegou a tal extremo no Brasil que esse imobilismo do progressismo se converteu em um dos tantos fatores que seguramente explicam a vitória de Bolsonaro.
Ao final, se buscou silenciar os problemas, mas não os resolver. Por isso, aumentam as contradições entre distintos grupos sociais, ou entre o capital e a natureza, ou entre a soberania nacional e a subordinação à globalização, para mencionar apenas três situações. Essas contradições seguem sua marcha, se somam tensões, as pessoas se cansam, se irritam, se enojam, e chega um momento em que se corrói grande parte da base de sustentação cidadã do progressismo.
Aqui há vários problemas sociais. Enquanto insistimos que progressismos e esquerdas são distintos, os questionamentos e o cansaço cidadão termina englobando a esquerda. É entendível que para boa parte da opinião pública esquerda e progressismo sejam o mesmo, sobretudo pela insistência dos progressismos em se auto-qualificarem como uma nova esquerda, por um lado, e pela sistemática ação de confusão e demolição ideológica que levam adiante as forças da direita, por outro lado. Então, o desastre de progressismos como o PT no Brasil ou o kirchnerismo na Argentina tem uma consequência associada que faz ainda mais dificultosa a reconstrução de algumas esquerdas que sejam realmente novas.
Nessa frente também operam a escassez de análises rigorosas e críticas, por exemplo, sobre as particularidades dos progressismos, suas diferenças com as tradições das esquerdas latino-americanas, ou o abuso de etiquetas como a de populismo para todo tipo de regime político.
Por sua vez, o desencanto e a raiva com os progressismos no Brasil – assim como ocorre em outros países – também afeta a qualidade da política. Observamos uma queda da confiança cidadã nos partidos políticos, nos poderes legislativos ou executivos. Como denota o relatório Latinobarómetro 2018, o apoio à democracia declina de maneira sistemática desde o ano 2010, alcançando 48% em 2018 (3). Enquanto começou a crescer a porcentagem dos que prefeririam um regime autoritário, essa mesma análise adverte que “os cidadãos da região que abandonaram o apoio ao regime democrático preferem ser indiferentes ao tipo de regime, afastando-se da política, da democracia e suas instituições. Esse indicador nos mostra um declive por indiferença. São esses indiferentes que votam os que estão produzindo as mudanças políticas, sem lealdade ideológica, nem partidária e com volatilidade” (3). Tudo isso alimenta as posturas antipolíticas que preparam um terreno fértil para aventuras ultraconservadoras, como a que expressa Bolsonaro.
Nessa deterioração, vale para a imprensa insistir que não foi nada menor o papel dos escândalos de corrupção que salpicam em todos esses governos. Todos os progressismos, que em suas origens se ofereciam para combatê-la, tiveram problemas de corrupção, ainda que com intensidade e extensão diferentes. É uma situação que foi aproveitada pelos meios de comunicação convencionais, insistindo uma e outra vez em tramas como a da Petrobras e as corporações como um exclusivo problema da esquerda.
Não pode deixar de surpreender que o mesmo país que há poucos anos atrás era apresentado como exemplo de “maré para a esquerda”, de um “novo” desenvolvimentismo e de uma liderança popular, passara agora a ser um estudo de caso no sentido contrário. Uma tendência que para alguns anuncia uma catástrofe democrática. Essa situação merece uma reflexão adicional pensando nas respostas que são necessárias para enfrenta-la.
Os exemplos expostos têm em comum a prevalência de análises simplistas e essencialistas. A isso se soma a falta de autocrítica, inclusive a ativa oposição a ela. O abafamento da pluralidade de vozes deteriora as opções da esquerda para se renovar, porém ao mesmo tempo implica em um enfraquecimento da democracia.
Isso permite voltar a Florestan Fernandes, já que na sua conferência de 1965 também assinalava que “não tenho dúvida em sustentar que o único elemento realmente positivo de nossa história recente diz respeito aos pequenos progressos que alcançamos na esfera da democratização do poder”. Ali já postulava que “o dever maior do intelectual, em sua tentativa de ajustar-se criadoramente à sociedade brasileira, objetiva-se na obrigação permanente de contribuir, como puder, para estender e aprofundar o apego do homem médio ao estilo democrático de vida”.
O que ocorreu com os progressismos é que se tornaram cada vez mais comuns os casos de intelectuais que abandonavam a reflexão independente e se somavam aos coros de apoio, em vez das análises que escutavam as reivindicações das comunidades locais, preferiram as visões e argumentos da burocracia desenvolvimentista estatal, e assim sucessivamente. Essa deterioração das capacidades de análise crítica e autocrítica é um fator muito importante para explicar o esgotamento dos progressismos.
O que o Brasil mostra são as consequências das falhas, limitações ou fraquezas nessa tarefa. As ideias que bastava conquistas a presidência para mudar tudo, foram demolidas pela realidade. Sobretudo porque uma vez no palácio do governo, ao se assumir portadores da vontade coletiva e quase proprietários da verdade, acreditaram que já não era necessário seguir aprofundando a democracia. Posições que, sem dúvida alguma, se revelaram não somente alheias à esquerda, mas sim que terminam sendo funcionais no médio prazo à extrema-direita. A democratização em buscar alternativas ao desenvolvimento não pode ser confundida, nem reduzida, à nacionalização de recursos ou sustentar empresas estatais.
Florestan insistia que os “intelectuais brasileiros devem ser paladinos convictos e intransigentes da causa da democracia”. Nesse compromisso democrático está a necessidade de aceitar, reconhecer e escutar as advertências, as reivindicações e as críticas. Ali se abrem as portas para uma renovação a partir da esquerda.
Apesar da opressão que poderiam provocar essas manifestações de ressurgimento da extrema-direita na América Latina e em outras partes do planeta, não compartilhamos do pessimismo extremo que existe entre alguns atores, ainda que possamos entende-lo. Um pessimismo que considera que o capitalismo alcançou uma vitória total na América Latina e que qualquer opção de esquerda se tornou inviável. Ao contrário, entendemos que esse colapso afeta os progressismos, e que eles deveriam permitir novas opções para reconstruir as esquerdas.
Aceitamos que essa situação de excepcionalidade que vivemos é fruto de processos profundos que devemos compreender melhor, e que são parte da complexa e convulsa mudança civilizatória. Por isso as alternativas para reconstruir as esquerdas que surgem da resistência ante esses atropelas, não podem se colocar em marcha como forma de imposição de uma vanguarda que acredita ter lido corretamente o andar da história. Apelamos às esquerdas que sejam conscientes dos limites do planeta, e por isso explorem uma renovação ecológica, que assumam a brutalidade do patriarcado, e apostam em outras relações de gênero. Esquerdas que superem a colonialidade e que enfrentem racismos, iniquidades e desigualdades sociais.
Tudo isso em um processo de permanente radicalização da democracia. Pois, sem se criar mais democracia se corre um risco no Brasil, dizia Florestan, e, como agregamos, nos demais países latino-americanos: que o capitalismo gere “formas de espoliação e iniquidades sociais tão chocantes, desumanas e degradantes como outras que se elaboraram em nosso passado agrário”.
(1) Fernandes, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5ª edição, Global, São Paulo, 2008.
(2) A extrema-direita no poder no Brasil. E agora? E. Gudynas y A. Acosta, Correio Cidadania, 8 novembro 2018.
(3) Latinobarómetro 2018. Corporación Latinobarómetro, Santiago de Chile.
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Projetando o futuro: ensinamentos do triunfo de Bolsonaro para as esquerdas latino-americanas. Artigo de Eduardo Gudynas e Alberto Acosta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU