29 Novembro 2018
O Brasil sofre de "patologia histórica profunda" e rompe o pacto democrático internacional, avalia Tales Ab’Saber.
Um mês após a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, intelectuais e pesquisadores ainda tentam entender o que levou um povo conhecido internacionalmente por sua cordialidade e alegria a eleger um candidato de extrema direita.
Para o psicanalista, ensaísta e professor de Filosofia da Psicanálise na Unifesp Tales Ab’Saber, a própria psicanálise, mas também a filosofia e a literatura podem explicar as contradições de um Brasil em crise de identidade.
A entrevista foi publicada por Radio France Internationale, 29-11-2018.
“Os brasileiros ficaram loucos?”, perguntou uma conhecida jornalista na rádio France Inter ao entrevistar o fotógrafo Sebastião Salgado após a eleição. Salgado respondeu: “Foi o Brasil que ficou louco” e remontou à destituição de Dilma Rousseff em 2016.
Esta também é a opinião de Ab’Saber, autor do livro “Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica”, entre outros, e vencedor de dois Jabutis (em 2005 e 2012). “O Brasil ficou louco, sim. Uma loucura que diz respeito claramente a romper o pacto democrático ocidental, seus princípios de civilidade e sociabilidade, e até mesmo seus fundamentos legais, já que a velha ética, no nosso caso, já foi dispensada há muito tempo”, dispara.
Quais os efeitos dessa "loucura"?
O Brasil se torna reduzido e provinciano novamente, caipira e inimigo dos valores democráticos globais. Parece mesmo que o Brasil está louco, rompendo os tratos societários da vida contemporânea global. Ao menos é isso que ouvimos todos os dias da imprensa liberal mundial e de cidadãos democráticos esclarecidos de toda parte.
Todo mundo nos diz que estamos loucos, é verdade. E não é de hoje. Não por acaso diziam isso abertamente durante os 18 meses da crise artificial movida para a derrubada da presidente Dilma Rousseff. Um ano e meio de país parado e bloqueado por si mesmo. E depois diante das práticas de exceção jurídicas de muitas ordens utilizadas para criminalizar e prender o ex-presidente Lula, criando as condições estranhas para a eleição de um Bolsonaro, para muitos juristas, de toda parte, um julgamento sem provas.
As elites brasileiras, e o povo brasileiro engajado no populismo autoritário do ex-capitão do Exército, de fato fizeram – ou desfizeram – tudo isso em apenas quatro anos. Uma loucura política única, de efeitos graves, até mesmo para um país como o Brasil.
Como aconteceu esse processo?
Hoje existem juristas que dizem simplesmente que a Constituição brasileira de 1988 não legisla mais. Ela é usada, falseada e ultrapassada de acordo com os poderes que estão em jogo, a cada momento do quadro de forças e de interesses.
Nossa ordem jurídica seria uma falsificação interessada, pronta para ser negada, como foi em muitos momentos da criminalização da esquerda, ou da liberação geral dos atos de quebra de decoro democrático de Jair Bolsonaro, espantosos, por um pacto social ordenado desde cima, que o desejou e criou como uma alternativa possível. O Brasil tornou a voz de uma posição exterior à democracia democrática.
E, de fato, o interesse das elites ditas modernas, que agora se acanham diante do mau humor do mundo com o destino do Brasil, é que o governo de extrema direita no poder destrua de modo livre e definitivo os pactos sociais que foram necessários, acordados na saída da ditadura em 1988, que orientavam a construção da tênue socialdemocracia brasileira, para fazer o ajuste fiscal desejado, tornado hoje como um verdadeiro Santo Graal econômico da vida brasileira e da cabeça de tabela de bolsas de valores de nossas elites. E, como todo mito, pronto para explodir no ar.
As "fake news" são um sintoma da doença?
O Brasil está louco, por todos estes critérios de civilidade, cosmopolitismo e de lei que perde a própria legitimidade. E também não. Não, o Brasil não está louco. Porque, apesar da novidade tecnológica espetacular do uso maciço e de forma ilegal de mentiras industriais na internet, deste novo tipo de tomada do poder de nossa elite com tendências antidemocráticas, de fato observamos apenas o retorno de um ciclo de desrespeito democrático de uma nação que foi constituída assim desde suas raízes.
Apenas verificamos mais um dos tropeços de nosso trabalho democrático, um grande mal-entendido, como dizia Sérgio Buarque de Holanda, que vai alinhar esta fase perigosa da democracia brasileira com os períodos antissociais ou não democráticos do passado: nosso Império escravocrata do século XIX, nossa República Velha antipopular e racista, a ditadura dos anos 1930 e 1940, de Getúlio, e por fim, mas não por último, a ditadura militar da Guerra Fria de 1964-1985, na qual tem origem o espírito belicoso e de política da paranoia de Jair Bolsonaro.
Mas o Brasil parecia ter avançado...
Embora o mundo não saiba direito, e nos julgue por liberais, democráticos e criativos, há um Brasil real que sempre foi inimigo desta modernidade que o próprio país representou em algum momento do século XX, a modernidade derivada e expressa em nosso modernismo cultural, uma modernidade que poderíamos chamar de erótica.
Sempre existiu um forte Brasil autoritário, antissocial e antierótico, que talvez o mundo desconhecesse em intimidade. Mas nós não. Certamente esta é uma faceta triste de nossa normalidade nacional, de fato a nossa maior loucura, nossa própria história, que insiste em se repetir.
E qual seria, então, o remédio para esta loucura coletiva?
Podemos dizer que não estamos mais nas condições de alienação e miséria dos anos de 1960, da nossa última gestão política abertamente autoritária: o País se modernizou, se integrou numa sofisticada rede de comunicações e milhões sentiram a experiência da subjetivação política e da cidadania nos últimos anos, embora o resultado produzido na política seja uma lamentável tendência neofascista, uma real regressão democrática.
Há acumulação de experiência e algum debate público, nem sempre isento ou qualificado, que será interessante observarmos o desenvolvimento quando os equívocos anunciados e as violências projetadas do governo da nova direita se revelarem.
Como está escrito no túmulo de Marcuse, em Berlim, não temos nenhuma alternativa neste momento, apenas a certeza de que 'o trabalho da civilização continua'.
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Bolsonaro pratica "política da paranoia", diz psicanalista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU