26 Novembro 2018
Após visitar a Argentina pela última vez em 2015, a cientista política belga Chantal Mouffe retornou ao país esta semana para apresentar seu novo livro e participar do Fórum Mundial do Pensamento Crítico, organizado pelo Clacso. Ao contrário de suas obras anteriores, Por um populismo de esquerda (Siglo Veintiuno Editores) não é um texto de teoria política, mas uma interpelação direta aos diferentes setores da esquerda diante daquilo que chama de “momento populista”, iniciado com a crise do atual modelo neoliberal.
Professora da Universidade de Westminster (Inglaterra) e esposa do famoso Ernesto Laclau – um dos intelectuais argentinos mais destacados do mundo –, Mouffe adverte sobre a possibilidade de que a saída dessa “crise de hegemonia” seja através de um populismo de direita, encarnada por líderes como Donald Trump ou a francesa Marine Le Pen. No entanto, e em uma reivindicação do populismo como forma de articulação política, ela proporá uma saída para um populismo de esquerda, no qual haverá uma “radicalização da democracia” baseada nos pilares da igualdade e da justiça social.
Em uma longa entrevista concedida ao jornal Página/12, e embora o eixo do seu pensamento seja a Europa Ocidental, Mouffe também se refere à Argentina e ao novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, a quem chama pura e simplesmente de “fascista”.
A entrevista é de Sebastian Abrevaya, publicada por Página/12, 25-11-2018. A tradução é de André Langer.
O que você quer dizer quando diz que este é um “momento populista”?
Estamos passando por uma crise da hegemonia neoliberal. Essa crise pode dar origem a várias saídas: uma que vai em direção a governos mais autoritários, que vão restringir a democracia e esse é o caso em que ganha o populismo de direita. Mas enquanto isso é verdade, também abre a possibilidade para uma ampliação da democracia. Isso depende da atitude das forças da esquerda, das forças progressistas. Eu sou fortemente contra considerar os populismos de esquerda e de direita como os dois lados da mesma moeda antidemocrática.
No livro, você desenvolve o conceito de “pós-democracia” e afirma que atualmente provoca uma grande quantidade de resistências. O que significa essa ideia de pós-democracia?
A situação pós-democracia tem dois componentes. Um mais político, que em 2005 chamei de “pós-política”. Naquele momento, dizia-se que a distinção direita-esquerda havia acabado e que a democracia se tornara mais madura. Mas, ao contrário do que todos diziam, isso não significou um progresso, mas que os cidadãos, quando iam votar, não tinham nenhuma possibilidade de intervenção. É por isso que os partidos social-democratas, quando chegaram ao poder, não produziram uma alternativa, mas vivenciaram um pouco mais humanamente essa globalização neoliberal.
O outro componente da pós-democracia é de tipo econômico e é o fenômeno da oligarquização das sociedades europeias que vem ocorrendo cada vez mais desde a crise de 2008. É uma situação em que há um grupo cada vez mais reduzido de pessoas super-ricas e, por outro lado, há as classes populares e também as classes médias, em uma situação cada vez pior. Fala-se da desapropriação e do desaparecimento das classes médias. Pode-se dizer que é um processo de latino-americanização da Europa Ocidental. É uma consequência do domínio do capitalismo financeiro. É o que eu chamo de pós-democracia em seus dois lados: o econômico e o político.
Vamos voltar ao básico. O que é o populismo?
Eu sigo a definição de populismo de Ernesto Laclau no livro A Razão Populista. Não é uma ideologia, é uma estratégia discursiva de construção política. É uma construção baseada na fronteira povo-oligarquia. Obviamente, vocês, na América Latina, já tiveram isso antes, mas agora vocês veem exatamente esse tipo de populismo na Europa. A grande diferença entre o populismo de esquerda e o populismo de direita é como se constrói esse povo, porque esse povo não é a população, não é uma referência empírica; o povo é uma construção política.
Por que temos que caminhar para um populismo de esquerda?
Eu estou convencida de que a única maneira de lutar, de impedir o desenvolvimento do populismo de direita é desenvolver um populismo de esquerda. Os partidos tradicionais europeus, justamente porque estão tão ligados à manutenção da ordem estabelecida, não oferecem a possibilidade de canalizar um caminho democrático e progressista, que, para mim, consiste em expandir a democracia, porque isso implica uma ruptura com a ordem neoliberal. Não há meio de se evitar a crise se não se questionar o modelo neoliberal, e é evidentemente isso que faz o populismo de esquerda. Não devemos aceitar que se alguém quer defender a democracia contra o populismo de direita, que evidentemente tem tendências autoritárias, tem que defender o status quo.
Como se explica o avanço do populismo de direita?
Uma das críticas que eu faço no livro é a ideia de que aqueles que votam no populismo de direita são pessoas intrinsecamente racistas, sexistas, etc. Por exemplo, no caso da França, acho que há muitas pessoas das classes populares que se sentiram abandonadas pelo Partido Socialista, que se dedicou exclusivamente às classes médias, e se sentem abandonadas. Essas pessoas que não são fundamentalmente racistas, mas se constroem vendo os imigrantes como os responsáveis por seus problemas.
Eu acredito que originalmente o que essas pessoas querem é ter voz. Uma coisa do movimento dos indignados que eu sempre gostei muito é que eles diziam: “nós temos voto, mas não temos voz”. E é verdade: durante o sistema pós-político você tem voto, mas não tem voz. A origem desses movimentos populistas é que nos escutem, nos deem dignidade, que nos reconheçam. E consideram que os partidos tradicionais não o fazem, e é por isso que são atraídos por esses partidos de direita.
Em certos setores, esses populismos de direita são chamados de fascistas. São formas de fascismo?
Isso me parece perigoso e sou contra dizer que são fascistas. Eu penso que há uma grande diferença entre o populismo de direita e os fascistas. Por exemplo, atualmente, e não falo apenas a nível europeu, mas pensando na América Latina, há apenas uma pessoa que merece o título de fascista e é (Jair) Bolsonaro. O projeto de Bolsonaro é claramente um projeto que coloca em questão o Estado de Direito e as instituições da democracia pluralista. Mas eu não vejo nenhum outro realmente no mundo ocidental que vá tão longe.
É perigoso, porque diante do fascismo, a única coisa que você pode fazer nesse caso é proteger-se, estabelecer um cordão sanitário para impedi-lo. Então, em primeiro lugar, você não vai entender o que está acontecendo, a razão pela qual as pessoas estão votando nesses partidos. E então não vai entender como impedir que cresçam. Parece-me que é totalmente contraproducente.
Qualificaria Trump como um populista de direita?
A campanha de Trump é definitivamente a campanha de um populismo de direita, mas o governo Trump não pode ser, porque o populismo não é um regime. Populismo é uma estratégia para construir um povo, para construir uma força política para intervir, para mudar. No caso do populismo de esquerda, para criar uma nova hegemonia. Mas, realmente, para mim, não faz sentido falar de um governo populista, porque todos os governos democráticos precisam reivindicar o povo. Na verdade, existe uma dimensão que eu posso chamar de populista, que é necessária na democracia. Você não pode ter uma democracia sem povo.
Quais são as diferenças entre esse populismo de direita e de esquerda?
Uma das diferenças é que o populismo de esquerda vê que o que está em questão é a globalização neoliberal, existe uma dimensão anticapitalista. Digo “dimensão”, porque o populismo de esquerda não é justamente uma esquerda marxista. Dentro do populismo de direita não há uma dimensão anticapitalista. O que há em certos casos é uma dimensão antineoliberal, contra o modelo do capitalismo financeiro. Eles propõem, por exemplo, as medidas protecionistas.
No caso de Marine Le Pen, o que ela quer é estabelecer um capitalismo nacional. É interessante ver como, durante sua campanha e mesmo antes da campanha, muitas das coisas que ela propôs tinham um requinte de esquerda. Mais que o Partido Socialista, porque, por exemplo, ela defendia o Estado de Bem-Estar Social. Mas o Estado de Bem-Estar para os nacionais. O específico era isso. É por isso que é contra a União Europeia, é contra o elemento da globalização do capitalismo.
O livro dá conta do papel dos novos movimentos sociais como o ambientalismo, o antirracismo e o feminismo, entre outros. Na Argentina, o feminismo assumiu uma força muito grande. Como as demandas do feminismo se inscrevem especialmente nesta ideia de populismo de esquerda?
Parece-me que é um elemento fundamental. O argumento é que se trata de construir um povo. Esse povo não é um povo já dado; é um povo que resultará da articulação de demandas em uma cadeia de equivalências. A questão da articulação é ainda muito mais ampla, em consequência da hegemonia neoliberal, porque criou muito mais antagonismos. Há muito mais demandas heterogêneas que precisam ser articuladas no momento da hegemonia, demandas que chamamos de democráticas, que vêm das classes populares, das classes médias, do feminismo, do antirracismo. Obviamente, outro aspecto que estava presente, mas ao qual eu daria muito mais ênfase, é a ecologia. Isso é absolutamente fundamental.
Um tema que não está tão presente no livro, mas que é fundamental para a ideia do populismo, é a figura do líder...
O povo precisa ser construído em articulação com as demandas heterogêneas e isso não é fácil porque essas demandas não convergem naturalmente. É preciso fazê-las convergir e para isso se necessita de um princípio articulador. Ainda há uma discussão sobre o que esse princípio tem que ser. Muitas das críticas ao populismo dizem respeito à centralidade desse líder carismático. Parece-me que isso é apresentado de maneira completamente falsa.
Isso está ligado a outros elementos que considero importantes, que é o papel dos afetos na política. Quando você fala em criar um povo, na realidade fala sobre criar um nós, pessoas que se reconhecem e se identificam como uma coletividade. Isso implica um elemento afetivo e não é uma questão puramente racional. E o líder cristaliza: podemos ver isso aqui na Argentina com Cristina Fernández, e antes com Perón.
Mas é verdade que há aspectos problemáticos disso, porque pode haver tendências autoritárias, mas não necessariamente. Pode ser um líder interpares, não precisa necessariamente ser uma relação autoritária entre o líder e o povo. Mas há um outro aspecto: não necessariamente precisa haver um líder. O princípio articulador também pode ser uma das lutas, que se torna a luta simbólica. Na realidade, o que é necessário é que haja um símbolo da unidade do povo.
Essa luta poderia ser, por exemplo, o feminismo?
Acho interessante analisar se em alguns lugares o movimento feminista não poderia ser o princípio articulador. No caso europeu, apenas na Espanha esse movimento feminista é forte. O que aconteceu no 8 de Março foi impressionante, a greve feminista, que realmente é um movimento completamente transversal, de todas as idades, de todos os grupos. E o que é interessante é que é uma luta das mulheres, porque não se limita às demandas específicas das mulheres; é uma luta que se articula, na medida em que você tem mulheres trabalhadoras. Há uma série de lutas que se articulam.
Além disso, revolucionou o país em termos de valores. No senso comum, tiveram um impacto muito grande. Então, é possível pensar que o feminismo será o símbolo de todas as lutas pela radicalização da democracia. E parece-me que talvez algo semelhante possa acontecer aqui na Argentina. O movimento Ni Una Menos também é muito forte aqui. E também, pelo que entendo, é um movimento que articula diferentes demandas.
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Diante do avanço do populismo de direita, “o único caminho é desenvolver um populismo de esquerda”. Entrevista com Chantal Mouffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU