Por: Jonas | 14 Agosto 2015
“O populismo de esquerda – que vem a ser a síntese prática atual da teoria Laclau-Mouffe assumida pela direção do Podemos – tem bases muito questionáveis do ponto de vista da construção de um sujeito político transformador e consequências práticas que conduzem inevitavelmente ao campo do eleitoral à custa das lutas sociais”, escreve o cientista ambiental Miguel Sanz Alcántara.
Também aponta que “a tradição marxista original concebe a luta, em diferentes níveis, como ferramenta para a ruptura com a ideologia dominante e a aquisição de consciência, processo que vimos em numerosas ocasiões, desde o impacto das mobilizações do 15M às revoluções do século XX e XXI. Por isso, é imprescindível recuperar o Gramsci original, hoje em dia, frente ao Gramsci do pós-marxismo: para contrapor uma alternativa revolucionária a um projeto, o do reformismo de esquerda, que já falhou muitas vezes ao longo da história”.
O artigo é publicado por LibreRed, 28-07-2015. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A influência do populismo de esquerda de Laclau e Mouffe no núcleo impulsionador do Podemos é evidente. Neste artigo, esmiuçamos os elementos que configuram este pensamento e o contrastamos exatamente com o do revolucionário italiano que o inspirou, Antonio Gramsci.
A proposta política de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe é claramente o principal braço teórico do núcleo fundador do Podemos: Pablo Iglesias, Íñigo Errejón, Juan Carlos Monedero e Carolina Bescansa. Pelo que parece, com diferentes nuances, todos eles se movimentam em um acordo de orientação prática que tem como referência a teoria Laclau-Mouffe.
Laclau, nascido em 1934, militou no marxismo nacionalista argentino a partir dos anos 1960. Sua evolução a partir do golpe de Estado, de março de 1976 (já fixado na Universidade de Essex, Inglaterra), conduziu-lhe a um distanciamento progressivo de suas posições anteriores até dar nascimento, junto a Chantal Mouffe, ao que se denominou “pós-marxismo” (1). Um dos motivos que impulsionou o surgimento do pós-marxismo foi a busca por uma adaptação da esquerda aos novos movimentos sociais surgidos após 1968 (feminismo, ambientalismo, libertação gay e lésbica, antimilitarismo, etc.) (2). Tratava-se de teorizar uma estratégia política que rompesse com o velho esquema marxista de uma transformação revolucionária da sociedade apoiada na atividade consciente da classe operária.
A obra “Hegemonia e Estratégia Socialista: para uma radicalização da democracia”, de 1985, talvez seja o trabalho mais conhecido do pós-marxismo. As abordagens de Laclau e Mouffe – abstratas, obscuras e pouco acessíveis para os e as leitoras não familiarizadas com a linguagem do pós-modernismo – encaixavam-se bem no ambiente intelectual dos anos 1980. O panorama político europeu e norte-americano movia-se para a direita (com Reagan e Tatcher em seu apogeu) e a classe trabalhadora e os sindicatos do ocidente recuavam. Como veremos, a crítica de Laclau e Mouffe ao marxismo é muito mais uma crítica a uma caricatura das ideias de Marx e Engels, primeiramente popularizada pelos teóricos da Segunda Internacional e depois pelo estalinismo. O próprio Laclau, antes de sua transição para o pós-marxismo, foi influenciado por esta forma de interpretação das ideias de Marx e Engels, embora adaptadas à complexa situação da Argentina dos anos anteriores ao golpe de 1976, onde o peronismo era de longe a corrente política dominante (3).
O populismo de esquerda – que vem a ser a síntese prática atual da teoria Laclau-Mouffe assumida pela direção do Podemos – tem, como se explicará na sequência, bases muito questionáveis do ponto de vista da construção de um sujeito político transformador e consequências práticas que conduzem inevitavelmente ao campo do eleitoral à custa das lutas sociais. A apropriação enviesada que estes dois autores fizeram do revolucionário italiano Antonio Gramsci, como se explicará ao final do artigo, oferece algumas das chaves para encontrar uma resposta alternativa e transformadora ao populismo de esquerda.
Distanciamento do marxismo
As posições desenvolvidas por Laclau e Mouffe, nos anos 1980, estendiam a proposta de Althusser (4) de “autonomização” ou independência das diferentes estruturas que formam a realidade social. Para Althusser, não existia uma “totalidade”, mas, ao contrário, percebia a sociedade dividida em diferentes estruturas, entre as quais estariam as estruturas econômica, política e ideológica. Estas estruturas se desenvolveriam de forma independente e se relacionariam apenas de forma conjuntural (5).
Laclau e Mouffe assumem esta abordagem e levam ao extremo o conceito de “autonomização”: as relações sociais não fazem parte de um sistema unitário no econômico e político, mas, sim, de um campo entrecruzado de antagonismos que podem ou não se relacionar, mas que requer a autonomização das esferas de luta. “Não há, por exemplo, vínculos necessários entre antisexismo e anticapitalismo [...]. Só é possível construir esta articulação a partir de lutas separadas, que somente exercem seus efeitos equivalenciais e sobredeterminantes em certas esferas do social” (6).
Neste esquema, as lutas dos e das trabalhadoras (pedra angular da transformação social no marxismo) não têm nenhum tipo de papel central. A luta de classes é um ponto a mais, entre outros, da articulação de antagonismos. E mais, se as esferas ideológica e econômica da sociedade são autônomas, os conflitos surgidos neles são também independentes. As identidades de grupos sociais surgidas destas esferas (identidade de gênero, de raça, de classe, etc.) e seus respectivos conflitos não podem se explicar a partir da existência objetiva de uma fonte primária de opressão. Desse modo, fica descartada a exploração da classe trabalhadora no sistema capitalista (e as relações de produção que implicam) como elemento configurador do conjunto das relações sociais. E fica sacralizada a expressão da luta através de identidades sociais independentes, em esferas de ação que só encontram seu lugar comum no cultural, ideológico e discursivo.
Para estes autores, o capitalismo moderno desfez as grandes identidades comuns (em especial o da pertença a uma classe social concreta) e tornou os conflitos heterogêneos, produzindo uma multidão de identidades coletivas diferenciadas. Embora isto seja até certo ponto correto, existe uma grande diferença entre entendê-lo como um efeito do capitalismo que, sob as condições adequadas, pode ser revertido, e considerá-lo uma característica intrínseca do capitalismo contemporâneo, assim como os autores do pós-modernismo consideram.
Nas obras posteriores dos dois autores e, por exemplo, em “A Razão Populista” (penúltimo livro publicado em vida por Laclau), podemos encontrar numerosos exemplos da proposição de que a luta é sempre de natureza discursiva, ideológica, e que esta é a esfera realmente totalizante onde os esforços de ação política devem ser empregados. Para Laclau, Mouffe e os autores e autoras do pós-marxismo, “não há nada fora do texto” (ou do discurso). Este inclui o ideológico e o material: “Falamos dos discursos como totalidades estruturadas que articulam elementos tanto linguísticos como não linguísticos” (7). Uma das consequências diretas desta concepção é o papel central que confere aos intelectuais na luta política, algo que encaixa como uma luva para o núcleo da direção do Podemos. Como destacou Ellen Meiksins Wood, esta concepção “necessariamente dá aos intelectuais um papel predominante no projeto político, ao mesmo tempo em que joga sobre eles a responsabilidade não menor que a tarefa da construção de ‘agentes sociais’ por meio da ideologia e o discurso” (8).
A separação das esferas econômica e ideológica na análise da sociedade deve ser entendida como uma rebelião – já aberta por Althusser e outros pensadores e pensadoras – contra o mecanicismo marxista generalizado pelo estalinismo e seus intelectuais, dominante desde os anos 1930 no panorama comunista internacional, e do qual parcialmente o próprio Laclau procedia. Laclau e Mouffe centram em “Hegemonia e estratégia socialista” grande parte de sua crítica contra um marxismo caricaturado, onde existe uma relação de determinação próxima ao absoluto entre a realidade material e a evolução ideológica da sociedade. Serve como exemplo a obra de Stalin “Sobre o Marxismo na Linguística”. Nela se insiste, uma vez e outra, em que a superestrutura ideológica, política e jurídica refletem meramente as mudanças na base da sociedade (as relações de produção), que por sua vez refletem as mudanças nas “forças produtivas”. Isto o leva a concluir que “a esfera de ação da superestrutura é estreita e limitada” (9).
Laclau, Mouffe e muitos outros autores e autoras (10) reagem a esta abordagem mecanicista com uma independização da superestrutura ideológica, onde encontram o verdadeiro campo de ação política, um campo tão amplo que acaba abarcando a própria realidade material. No entanto, as ideias de Marx, Engels ou de pensadores como Gramsci divergiam muito deste mecanicismo cru criticado por Laclau e Mouffe. Interpretavam esta relação de forma dialética, entendendo que embora os dois campos da realidade não estivessem separados e a base material da sociedade em alguns momentos atuasse de forma determinante, a superestrutura ideológica da sociedade podia adquirir uma enorme autonomia. Daí que a batalha política ou ideológica também seja determinante para o marxismo.
O ponto paralisante da proposta Laclau-Mouffe é que relega a ação política ao campo discursivo, cultural ou de construção de identidades. Desta forma, suas abordagens não oferecem nenhum tipo de proposição coerente acerca da construção de sujeitos políticos que não sejam efêmeros ou atuem, direta ou indiretamente, no campo da realidade material.
O populismo de esquerda
O esquema de Laclau e Mouffe serviu, durante os anos 1980 e 1990, para respaldar as políticas de identidade, que frente ao retrocesso das lutas operárias provocaram uma atomização dos diferentes movimentos sociais (11). No entanto, estes autores foram decantando-se mais e mais para a definição de um projeto político que, hoje em dia, Chantal Mouffe chama de “populismo de esquerda”. Em “A Razão Populista”, Ernesto Laclau expõe como as diferentes demandas surgidas dos diferentes campos da sociedade podem chegar a convergir para dar lugar ao nascimento de um sujeito político (“o povo”) com capacidade para colocar em marcha uma nova época mais democrática. Com a ajuda de conceitos e proposições procedentes da linguística e da psicanálise, o autor traça um modelo de análise do populismo de cunho positivo. O populismo não é uma ideologia, nem uma carência de ideologia. É uma lógica política que atravessa ideologias e propostas políticas. Vejamos como funciona.
Laclau parte da existência de demandas democráticas que emanam de diferentes grupos sociais. O primeiro passo para a construção do “povo” é a criação de uma fronteira política que consiga agrupar todas estas demandas (ou uma parte considerável delas) em um campo comum, e definir ao mesmo tempo um inimigo que se encontra do outro lado da fronteira política. É o trabalho realizado pelo conceito de “casta”, uma vez e outra, repetido no discurso público do Podemos.
Como se disse anteriormente, o papel do discurso para Laclau e Mouffe não é apenas instrumental (a mobilização através de uma mensagem política), mas também constitutivo. É a leitura correta da situação e a escolha de um discurso por parte de uma liderança forte e carismática o que torna possível o reconhecimento de uma “cadeia equivalencial” entre diferentes demandas e a constituição de uma frente política comum que parta de demandas dispersas.
O segundo passo é o processo hegemônico através dos significantes vazios. Para Laclau e Mouffe, o processo hegemônico do conjunto de sua teoria diverge muito do elaborado por Gramsci (como veremos no final deste artigo). Consiste fundamentalmente em que uma das demandas democráticas contida nessa cadeia se coloca como incorporadora de todas as demais. Contudo, isto só pode ocorrer se a demanda que se converterá no sinal de todo o movimento é veiculada através de um significante – uma palavra ou conjunto delas – cujo conteúdo – significado – está vazio. O conceito de vazio faz referência a uma demanda cuja plenitude nunca pode ser alcançada e cujo significado está aberto. Um exemplo de significante vazio pode ser a demanda por “paz, pão e terra” da revolução russa. Esta demanda, em sua particularidade, agrupava ao mesmo tempo toda uma carga de exigências particulares contra o czarismo. Por isso, ao mesmo tempo, constituía um significante com capacidade para hegemonizar o processo e veicular muitas outras demandas.
A construção do povo segundo Laclau implica na consolidação deste campo político, com outros ingredientes como uma liderança que simbolize o sujeito político em seu conjunto e mobilize os anseios e paixões do público (“a unificação simbólica de um grupo em torno de uma individualidade é inerente à formação de um povo” (12)).
Dois aspectos problemáticos da quadratura do círculo populista
Em primeiro lugar, Laclau admite que o populismo é, por definição, um exercício de união de uma multidão de elementos heterogêneos. Dá como fato que a cadeia equivalencial de demandas que darão lugar ao sujeito político deve agrupar diferentes classes e setores sociais. Disto se deduz que o discurso do populismo deve ser, por definição, ambíguo, destinado a abranger o maior número possível de setores sociais, em diversos graus de conflito com a autoridade.
O seguimento desta noção por parte de Pablo Iglesias e Íñigo Errejón é evidente. Podemos foi diluindo suas posições políticas de esquerda para tornar mais e mais habitável a opinião favorável do maior número de setores sociais, inclusive se seus interesses estão em disputa. Dificilmente é compatível a unificação do núcleo de gente trabalhadora procedente do 15M (que gritava que nossa solução é mandar os banqueiros para a cadeia) com os “empresários honestos” que o secretário geral do Podemos Madri, Jesús Montero, apontava em menção à família Botín (13).
Igualmente, é incompatível casar aquelas demandas que requererão uma maior tributação e os interesses das classes médias (pequenos empresários e profissionais) que não têm interesse em pagar mais impostos. O resultado é que demandas como a renda básica, já por si pouco ambiciosa, acabam saindo do programa para manter a coesão da cadeia equivalencial (ou das perspectivas eleitorais). A elaboração do último programa eleitoral do Podemos para as eleições autonómicas e municipais é um esforço a mais para visualizar esta união heterogênea e instável de interesses sociais.
Neste sentido, uma intervenção esclarecedora foi a de Carolina Bescansa, há meses, quando no processo das prévias da Comunidade de Madri, para desacreditar o setor crítico de Podemos, esgrimiu frente à imprensa que “existe um Podemos para protestar e outro para ganhar” (4).
Efetivamente, com um sujeito político que contém interesses sociais não definidos, que podem chegar a ser contraditórios, não é possível colocar em marcha uma frente comum, com objetivos claros, destinada à mobilização e a conquista popular de direitos. O que se pode fazer com um sujeito político assim é o que a direção estatal de Podemos está fazendo: apelar ao nosso voto ou a tudo o que sirva para captar mais votos, mas nada mais. O processo de desmantelamento dos círculos como espaços de organização social também está relacionado às consequências colaterais da estratégia populista. Esta não pode se desenvolver com espaços vivos e ativos de base, onde se produz uma clarificação política e programática dos interesses da formação. O que se encaixa com um espaço político populista é a indefinição, a ambiguidade do discurso e a redução dos antagonismos de classe em seu seio.
A heterogeneidade e indefinição concebidas por Laclau, embora pareçam indiscutíveis em sua utilidade no âmbito eleitoral, armaram um truque: um partido claramente liberal e conservador como Cidadãos está sendo capaz de usar os mesmos mecanismos discursivos para devorar uma boa parte do seu apoio eleitoral (o das classes médias que até agora haviam apoiado, com má vontade, o Podemos). Seguindo Laclau, os elementos em torno dos quais o partido Cidadãos está construindo o seu discurso (regeneração democrática, luta contra a corrupção, fim do esbanjamento econômico...) representariam significantes que passaram de “vazios” a “flutuantes”. Para expressar de alguma forma, estão em disputa entre “diversos processos hegemônicos” (15). Seja como for, a situação com Cidadãos mostrou a fragilidade da teoria do populismo de esquerda no campo da construção simbólica do discurso (que parecia ser o seu forte) ou ao menos mostrou a incapacidade para se reformular de forma precisa à esquerda e evitar que a direita faça uso das ferramentas discursivas que o próprio Podemos construiu no último ano e meio. A construção do populismo tem esse risco (como Chantal Mouffe insinuou mais de uma vez (16)): arma um sujeito político impreciso, estimulado pelas emoções, mas que pode oscilar da esquerda à direita, caso não seja efetuada uma mudança qualitativa de consciência em seu interior. Mudança que, por outra parte, não é possível conseguir no marco limitado e superficial da mobilização eleitoral.
Em segundo lugar, se a estratégia populista tenta colocar em pé um sujeito cuja relevância deve ser a máxima até a conquista eleitoral, o que poderá ocorrer depois? O populismo de esquerda não tem outro objetivo que não seja atuar com a maquinaria do Estado para provocar um giro nas políticas do neoliberalismo, como expressou Chantal Mouffe, muito mais explicitamente do que Laclau, em uma multidão de artigos e entrevistas (17). Esta crença na possibilidade de “usar” o Estado contra a minoria dirigente (a casta) procede da concepção de autonomia das estruturas da sociedade, cuja natureza não está definida e são apenas um produto “relacional” da articulação de diferentes elementos.
Porém, à luz da experiência do Syriza e outros casos históricos da chegada ao poder político de partidos de esquerda (18), realmente cabe se perguntar se é suficiente a conquista do governo para poder impor um novo programa de medidas de enfrentamento ao neoliberalismo. A resposta a esta pergunta fica fora do objetivo deste artigo. O que, sim, sabemos é que o populismo de esquerda de Iglesias e Errejón não está especialmente interessado no cenário interno do Podemos na pós-vitória eleitoral. Não há nenhuma só proposta definidora de como deve se articular uma organização com presença no Governo e fora dele. No entanto, o que está ocorrendo na Grécia ou experiências como a do Chile, em 1970-1973, demonstram que a relação entre a organização política, os movimentos, o governo e outros elementos do “Estado profundo” (19) pode ser crítica ao avanço ou não de um processo de transformação social.
Gramsci sem Gramsci
Para Gramsci, a essência última da instância articuladora – ou a vontade coletiva – é sempre o que ele chama de classe fundamental da sociedade, e a identidade desta classe não é considerada como o resultado de práticas de articulação. Isto é o que, em “Hegemonia e estratégia socialista”, denominamos como o último vestígio de essencialismo em Gramsci. Se o eliminamos, o povo como instância articuladora só pode ser o resultado da sobredeterminação hegemônica de uma demanda democrática particular que funciona como significante vazio (20).
A maior diferença na apropriação enviesada de Gramsci que Laclau e Mouffe realizam em seu trabalho em relação ao que foi realizado pelo eurocomunismo, entre o final dos anos 1950 e 1970, é que Laclau e Mouffe são bastante honestos quando admitem a supressão que realizam da abordagem de classe em Gramsci. Para poderem utilizar Gramsci, precisam esvaziá-lo por completo das aspirações socialistas revolucionárias, para as quais consagrou sua vida, sua obra e sua morte. Não é uma apropriação metodológica como a que Marx pôde realizar da dialética de Hegel, mas, ao contrário, muito mais uma apropriação de seu pensamento, quase por completo, para conduzi-lo a objetivos diametralmente opostos aos de Gramsci. São três os elementos que Laclau e Mouffe precisam descartar ou reformular, em sua essência, para poder utilizar Gramsci: seu conceito de hegemonia socialista, a “guerra de posições” e a noção de consciência contraditória. Estas três reinterpretações se fundamentam na negação da classe trabalhadora como agente principal da mudança social e como portadora potencial de uma proposta global para a substituição do capitalismo por um sistema mais justo.
A hegemonia apresentada por Gramsci, como contraposição à hegemonia exercida pelo sistema capitalista, é a busca de uma extensão da ideologia da libertação da classe trabalhadora ao conjunto de classes e setores sociais oprimidos. No entanto, para Laclau e Mouffe a hegemonia resulta em um exercício discursivo de unificação de classes e grupos sociais em si mesmo, sem se importar com quais são os interesses dominantes nesta aliança. O conceito de significante vazio, que agrupa as demandas democráticas de diferentes grupos sociais, não busca a extensão de uma proposta ideológica de libertação global do sistema capitalista ao conjunto das e dos oprimidos, mas meramente a constituição de um sujeito político forte, com capacidade de impulsionar seus líderes a assumir o controle do aparato estatal capitalista. Já falamos de que isto, na prática, supõe uma unificação contraditória de diferentes interesses de classe que paralisa a ação e as conquistas sociais após o apoio eleitoral.
Frente à aliança de classe pelo mero fato da aliança, Gramsci desenvolve o conceito – já utilizado em experiências revolucionárias anteriores – de frente única. Esta consiste na aliança na luta – não no eleitoral – entre os setores com aspirações de transformação profunda da sociedade – que sempre mantêm sua independência – e setores mais moderados da classe trabalhadora e da classe média. Através do processo de mobilização por demandas comuns, a frente única deve servir para ampliar a influência dos setores combativos minoritários aos mais moderados e, assim, aumentar a base social de mobilização por uma transformação profunda da sociedade.
Gramsci era muito consciente de que a solidez ideológica do capitalismo - a hegemonia – no ocidente era muito superior a de outros países com sistemas capitalistas menos desenvolvidos (como a Rússia de 1917). Por isso, concebe que a tomada do poder por parte da classe trabalhadora deve seguir um itinerário muito mais complexo e arrevesado do que nos países capitalistas atrasados. Procedente do campo militar, extrapola o conceito de guerra de posições à política. Este vem a explicar que, ao invés de realizar um assalto direto ao poder do Estado, para destitui-lo (“guerra de manobra”, como havia ocorrido no processo revolucionário russo e havia sido tentado na Alemanha, a partir de 1918), era necessário ir vencendo batalhas no âmbito político, cultural e econômico, que erodissem a hegemonia ideológica do sistema capitalista e levantassem uma contra-hegemonia de caráter socialista. A construção de frentes únicas tinha este propósito, mas sempre com o objetivo de criar uma conjuntura favorável para a tomada revolucionária do poder (21). Laclau e Mouffe simplesmente descartam a possibilidade da guerra de manobra. Libertam a guerra de posições de seu objetivo de tomada do poder real, e pretendem, uma vez alcançado o poder político – o governo – continuar fazendo uma guerra de posições, a partir do Estado, para abrir perspectivas de democratização (no sentido liberal, não socialista). Porém, este projeto não tem nada a ver com o de Gramsci.
O último conceito, que não é reinterpretado por Laclau e Mouffe, mas simplesmente negado, é o de consciência contraditória. A separação da esfera econômica e ideológica da sociedade conduz inevitavelmente a esta negação. Para Gramsci, o sistema capitalista, fundamentado na extração da mais-valia da classe trabalhadora, por parte da classe dirigente, só pode funcionar criando uma consciência “falsa” entre a própria classe trabalhadora. Esta consciência é que permite que as pessoas assumam um regime injusto de exploração como normal ou invencível.
A criação de uma falsa consciência está diretamente relacionada com o conceito de hegemonia do sistema capitalista. Para desarticular esta falsa consciência é necessário contrapor a realidade material à ideologia dominante. E este processo de contraposição só pode ser assegurado por meio da luta, em diferentes âmbitos, e da aprendizagem coletiva de seus resultados. Colocando a ênfase na importância da luta política para fragilizar a hegemonia ideológica do capitalismo, Gramsci considerava, no entanto, que a luta no ponto de produção – nos centros de trabalho – era um lugar privilegiado para “destampar” a realidade do regime de exploração capitalista, pois nele constantemente são produzidos conflitos que contrapõem o que a ideologia oficial e a realidade ditam. Esta visão foi desenvolvida por sua experiência participativa e de liderança na ocupação de fábricas em Turim, em 1920.
Além disso, partia do fato de que era a classe trabalhadora, com seu trabalho cotidiano, a que permitia o funcionamento da ordem capitalista e o florescimento de todo seu aparato de geração de consensos ideológicos. Por isso, a classe trabalhadora poderia usar sua posição privilegiada na ordem capitalista para construir um sistema diferente. Porém, isto requereria a “descoberta” deste horizonte por parte dos próprios trabalhadores e trabalhadoras: sem as lutas não haveria vitórias; sem elas não haveria reconhecimento de seu poder coletivo; e sem o reconhecimento deste poder coletivo não poderia existir uma proposta para organizar a sociedade de um modo diferente do capitalista. Isto significa romper com a falsa consciência e adquirir uma própria que reconheça seu verdadeiro lugar e poder dentro do sistema.
Laclau e Mouffe assumem que o capitalismo contemporâneo conseguiu diversificar a situação dos trabalhadores até tal extremo que é impossível gerar uma consciência coletiva global de si mesma. Na realidade, esta premissa parte da imbatibilidade do sistema capitalista e por isso resulta tão consentida por todas aquelas pessoas que concordam com o objetivo de transformação do sistema a partir de dentro, ao invés de sua substituição global por outro diferente. É especialmente adequada para as pessoas que tem a esperança de transformar a realidade através dos processos eleitorais e da conquista de posições institucionais.
Laclau e Mouffe não oferecem nenhum mecanismo efetivo para a transformação da consciência coletiva. Oferecem o mecanismo para a identificação simbólica de grupos sociais que convergem em um assalto eleitoral. A tradição marxista original concebe a luta, em diferentes níveis, como ferramenta para a ruptura com a ideologia dominante e a aquisição de consciência, processo que vimos em numerosas ocasiões, desde o impacto das mobilizações do 15M às revoluções do século XX e XXI. Por isso, é imprescindível recuperar o Gramsci original, hoje em dia, frente ao Gramsci do pós-marxismo: para contrapor uma alternativa revolucionária a um projeto, o do reformismo de esquerda, que já falhou muitas vezes ao longo da história.
Notas
1. Acha, O., 2015: “El marxismo del joven Laclau (1960-1973): una antesala del postmarxismo”, em herramienta.com.ar, http://bit.ly/1JxjWQ5.
2. Para um relato em primeira pessoa sobre o contexto ideológico no qual se inscreve Hegemonia..., ver a entrevista com Pablo Iglesias em Otra vuelta de tuerka, http://bit.ly/1yLcg5w
3. Acha, O., op. cit.
4. Althusser teve uma enorme influência no pensamento de Laclau. De fato, as concepções estruturalistas do pensador argelino-francês foram a porta de entrada para uma profunda revisão das concepções marxistas.
5. Harman, C., 1983, “Philosophy and Revolution” em International Socialism nº 21. Londres.
6. Laclau, E. y Mouffe, C., 2005, Hegemonía y Estrategia Socialista, p. 294, Argentina.
7. Laclau, E., 2005, La Razón Populista, p. 27, Argentina.
8. Meiksins Wood, E., 1986, The Retreat from Class: A New ‘True’ Socialism, p. 6, Londres.
9. Stalin, J., 1950, El marxismo en la lingüística. Pequim.
10. Para uma análise sobre a rebelião contra o mecanicismo e o debate base/superestrutura ver Harman, C., 1998: Marxism and History, Londres.
11. Smith, S., 1994: “Mistaken identity: can identity politics liberate the oppressed?” em International Socialism nº 62, http://bit.ly/1PSncJA.
12. Laclau, E., op. cit., p. 130.
13. “Podemos elogia a los Botín por su contribución al bienestar social”, em eldiario.es, 28/01/2015.
14. “Bescansa a los críticos: ‘Hay un Podemos para ganar y otro para protestar’”, em infolibre.es, 19/01/2015.
15. Laclau, E., op. cit., p. 166.
16. Por exemplo, na entrevista da nota 1 ao falar sobre a Frente Nacional francesa ou no jornal El País: http://bit.ly/1Eb0KqY.
17. Serve como exemplo a entrevista ao El País, citada anteriormente, nos meios de comunicação argentinos: http://bit.ly/1baavtY.
18. Ver por exemplo as ponderações de Molyneux, J., 2013: “Understanding Left Reformism”, en Irish Marxist Review, nº 6.
19. O exército, a polícia, os serviços secretos e de segurança. Ver o debate entre Alex Callinicos e Stathis Kouvelakis sobre a atual situação na Grécia em http://bit.ly/1J6p7pN. Sobre as possibilidades de transformação estando no estado ver Barker, C., 1979: “A critique of Nicos Poulantzas” en International Socialism nº 4, http://bit.ly/1OzDNVi.
20. Laclau, E., op. cit., p. 160.
21. Até os últimos anos de sua vida no cárcere, Gramsci tinha esta opção. Ver http://bit.ly/1IjuqnE.
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A influência de Laclau e Mouffe no Podemos: hegemonia sem revolução - Instituto Humanitas Unisinos - IHU