28 Novembro 2018
A frustração com o neoliberalismo alimenta o encanto por um período imaginário da história humana, mais intolerante que a real.
Outrora, ver um cavaleiro cruzado – se não o próprio papa Urbano II – em Trump seria caso de sanatório. Se lesse o artigo “Trump e o Ocidente”, de Ernesto Araújo, nos Cadernos de Política Exterior do IPRI de dezembro de 2017, o Agente Laranja rolaria de rir pelo chão da Casa Branca.
A reportagem é de Antonio Luiz M. C. Costa, publicada por CartaCapital, 27-11-2018.
Escreve o futuro chanceler: “Donald Trump propõe uma visão do Ocidente não baseada no capitalismo e na democracia liberal, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais. A visão de Trump tem lastro em uma longa tradição intelectual e sentimental, que vai de Ésquilo a Oswald Spengler, e mostra o nacionalismo como indissociável da essência do Ocidente. Em seu centro está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus.”
Ver anseios por Deus, a negação do capitalismo e lastro intelectual no velho playboy e especulador bilionário que paga modelos e atrizes pornô para acompanhá-lo na cama, só entra em igrejas para atos de campanha e perguntaria se Ésquilo e Spengler são rappers se ouvisse mencionar seus nomes seria, em outros tempos, caso de diagnóstico psiquiátrico.
Mas é o pensamento, por assim dizer, do homem indicado para a chancelaria da maior nação do Hemisfério Sul por outro napoleão de sanatório, Olavo de Carvalho, ao presidente eleito.
O ideário vai do Antigo Regime – “não terá sido a Revolução Francesa o laboratório onde se criaram os vírus de todos os despotismos?” – ao medieval – “o Ocidente sofre, sofre de um mal misterioso como o Rei Pescador na saga do Santo Graal.
Alguém precisa procurar o cálice que contém o sangue capaz de curá-lo”. O ex-chanceler Celso Amorim dizer à revista Brasil de Fato que “estamos voltando à Idade Média, ele é uma espécie do Direito Internacional pré-Grócio”, não foi exagero retórico, e sim rigor analítico. Araújo confirmou-o pelo Twitter: “Amorim diz que represento um retorno à Idade Média. Não entendi se é crítica ou elogio”.
Esse relato bizarro saiu de bueiros infectos e contaminou as ruas quando as redes sociais permitiram a pequenos círculos de ultradireita alcançar fracassados, frustrados e desiludidos deixados para trás pelas traquinagens do capitalismo neoliberal, mascará-lo na delirante conspiração do “globalismo, a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural”, conforme o desatinado diplomata – e dirigir seu ódio contra os bodes expiatórios de sua conveniência sem os escrúpulos de rigor intelectual, valores democráticos, civilidade ou mera racionalidade antes respeitados pelo discurso público.
A resposta de intelectuais e jornalistas foi o silêncio. Criticar, denunciar ou refutar esses propagandistas apenas lhes daria publicidade e prestígio, argumentou-se em academias e redações que, iludidas por concepções ultrapassadas pela internet, continuaram a acreditar que aquilo que não passava por seus canais era irrelevante.
Supervalorizaram articulações políticas, artigos e debates na tevê e ignoraram os desvarios espalhados para milhões por meio do Facebook e do WhatsApp durante as campanhas do Brexit no Reino Unido, de Trump nos EUA e de Bolsonaro no Brasil. Quem se informou por jornais e tevê e ouviu analistas e cientistas políticos não viu as verdadeiras campanhas acontecerem, ficou abismado com o resultado e ainda mais ao ver os vitoriosos atuarem no poder conforme o discurso brutal, tacanho e mentiroso de suas campanhas nas redes sociais.
É hora de admitir que o neofascismo não desaparece quando fechamos nossos olhos e ouvidos, entender como essas seduzem e pensar na maneira de desconstruí-las. Não se derrota o inimigo com a recusa a admitir sua existência.
O fascínio pela Idade Média pode ser um ponto de partida. Mídia e analistas políticos começaram a qualificar ideias como “medievais” a sério (e não como hipérbole irônica) após os atentados de 11 de setembro de 2001, referindo-se aos fundamentalistas islâmicos.
Isso era perigosamente impreciso: o fundamentalismo não é a negação da modernidade e da tecnologia, mas um protesto contra as condições criadas no mundo muçulmano pós-colonial pelo neoliberalismo com uma linguagem acessível aos destituídos da região e que os une sob uma mesma bandeira contra os imperialistas ocidentais e as elites locais laicas pelos quais se sentem explorados, oprimidos e traídos.
Ninguém quer o fim de computadores, antibióticos e geladeiras. Quando seus líderes “restauram costumes medievais”, como a escravidão pelo Estado Islâmico, são práticas escolhidas a dedo para motivar e recompensar militantes. Nada tem a ver o EI com a real Idade Média árabe, na qual minorias religiosas eram toleradas, a cultura e a filosofia eram valorizadas e as mulheres não cobriam seus rostos.
Talvez isso fique mais fácil de entender hoje, pois um movimento análogo empolga parte do próprio Ocidente com bandeiras pseudomedievais contra o mesmo mal-estar. O abre-alas dessa tendência e do neofascismo ocidental foi a Frente Nacional francesa, ao promover Joana d’Arc como símbolo de uma nação étnica e cristã em oposição a Marianne, símbolo da Revolução e da República. Para Jean-Marie Le Pen, a “verdadeira” identidade francesa só é válida se traçar suas origens desde Clóvis, rei dos francos do século V. Não por acaso, citado como “origem da França” pelo artigo indigitado, apesar de o império franco não ter mais a ver com a França do que com a Bélgica onde nasceu ou com a Holanda, a Alemanha, a Suíça, a Áustria e a Itália, às quais também deu origem.
E Araújo absurdamente afirma que a Revolução Francesa “contestou a nação”, quando foi exatamente com ela que surgiu o conceito moderno de “nação” como povo conscientemente unido pela cidadania, respeito a leis comuns e senso de comunidade (liberdade, igualdade e fraternidade, se preferirem).
Que isso não é romantismo inofensivo ficou caro desde o massacre de 77 noruegueses social-democratas, quase todos adolescentes, em julho de 2011.
O terrorista Anders Breivik divulgara minutos antes um manifesto de 1,5 mil páginas, no qual denunciou o tal “marxismo cultural” e exortou os europeus a aniquilar o multiculturalismo, restaurar o patriarcado, preservar a “Europa Cristã” e retomar as cruzadas medievais contra o Islã.
No julgamento, durante o qual o réu cumprimentava o tribunal com a saudação nazista, viu-se que Breivik não é clinicamente louco nem sinceramente religioso. Desde a adolescência não pisava uma igreja. Seu “cristianismo” é apenas “identitário” ou, para falar com clareza, é racismo e machismo.
Em um clima de estagnação econômica, direitos perdidos, orgulho nacional ferido e privilégios de raça e gênero ameaçados, o uso nostálgico de um passado muito mais imaginário que real disfarça ideologias extremistas em restauração de uma ordem natural das coisas e purificação de uma herança cultural pela exclusão e expulsão dos “corpos estranhos”.
Isso fica fácil demais com a internet, onde qualquer um empolga um público com ideias estapafúrdias – da Terra Plana à conspiração judaica – sem evidências, referências ou argumentação racional.
A Europa medieval real era tão diferente do imaginário dos neofascistas que se imaginam vikings e cruzados quanto o Califado de Córdoba do Estado Islâmico. No auge da Idade Média, “França” e “Itália” eram abstrações tanto quanto “América Latina” ou “mundo árabe” hoje.
O povo era leal à aldeia ou burgo, a nobreza a seus suseranos, mesmo de “nações” diferentes, e o clero católico, supranacional e “globalista”, só respondia ao papa. Impelidos por invasões, guerras, fomes e perseguições, povos migravam e se misturavam de uma parte para outra da Europa e entre esse continente, a Ásia e a África.
“Multiculturalismo” era a realidade. Nos reinos ibéricos e na Sicília normanda, cristãos, judeus e muçulmanos trabalhavam lado a lado e em todos os grandes reinos coexistiam povos, línguas e culturas variadas.
A ideia de nação como “origem (racial ou cultural) comum”, fantasia paranoide na Europa, é sintoma ainda mais grave nas Américas. O mais delirante trecho de Araújo é a viagem sobre a “origem profunda e sagrada” do Brasil: “Por que o destino nos deu primeiramente esse nome (terra da Santa Cruz) e o trocou pelo nome de uma árvore? A árvore, o lenho, a cruz.
Em que sentido podemos voltar a ser aquela cruz verdadeira? Axis mundi de tantas culturas, Ygdrasil dos nórdicos, árvore da vida da cabala hebraica... E o que dizer da ilha mítica chamada Brasil que os celtas acreditavam existir a oeste da Irlanda? Por que não aprendemos nada disso?”
Essa noção é também problemática para a Rússia: ou é um Estado multiétnico, ou é um nada. E mais problemática ainda para o sonho do Kremlin de restaurar a hegemonia no espaço da antiga União Soviética. Daí o tradicionalismo multipolar da “quarta teoria política” do ideólogo Alexandr Dugin.
Esse notório aliado de Matteo Salvini e outros líderes da ultradireita na Europa manifestou seu desprezo pelo padrinho político de Araújo após o segundo turno de 2018 e deu apoio no Brasil, por óbvias razões geopolíticas, à “esquerda antiliberal e antiglobalista” contra a ultradireita, marionete de Washington.
Esse antagonismo não tão sutil escapou ao potencial encarregado do Itamaraty, que sonha com “a aliança dos Estados Unidos e da Rússia como as duas grandes potências cristãs” e se entusiasma igualmente por Dugin, Trump, Steve Bannon, o tradicionalista René Guénon, o filonazista Martin Heidegger e o ultrafascista Julius Evola.
O discurso da pós-verdade confunde os próprios autores, mas nem por isso perde o encanto entre os admiradores, enquanto não se puder despertar neles o amor pela crítica racional com o qual humanistas e iluministas puseram fim à primeira Idade Média.
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O fascínio da extrema direita pela Idade Média - Instituto Humanitas Unisinos - IHU