08 Agosto 2018
A fantasia humana imagina Marte de muitos modos diferentes. O pontinho de luz vermelha brilhante é visível no céu noturno. Se, na semana passada, vocês observaram o eclipse lunar, provavelmente também notaram Marte perto da Lua. Depois, há o planeta das nossas histórias de ficção-científica, cuja superfície, antigamente, se pensava que era coberta por canais e por marcianos fantasiosos. Por fim, há o próprio planeta, que lentamente nos é revelado por uma frota de veículos espaciais e módulos de pouso.
O comentário é do irmão jesuíta estadunidense Guy Consolmagno, diretor do Observatório do Vaticano, em artigo publicado por L’Osservatore Romano, 04-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Às vezes é difícil lembrar que todas as três imagens se referem ao mesmo lugar. Mais ou menos a cada dois anos – 778 dias, para ser preciso – Marte e a Terra se alinham em suas órbitas ao redor do Sol. É então que Marte está mais perto de nós e parece mais luminoso.
Além disso, a órbita de Marte não é um círculo perfeito, mas sim uma elipse; quando esse alinhamento ocorre no momento em que o planeta se encontra na parte da sua órbita que está mais próxima do Sol (e, portanto, da Terra), Marte parece particularmente luminoso. Isso acontece em intervalos de 15 a 17 anos. O verão [europeu] de 2018 marca uma dessas aproximações favoráveis.
Nesses momentos, os amadores dotados de pequenos telescópios buscam, com entusiasmo, identificar as calotas luminosas de gelo polares ou se esforçam para entrever as manchas escuras ao longo do equador de Marte.
Foi durante um desses momentos favoráveis à observação, perto do fim dos anos 1850, que o padre Angelo Secchi, astrônomo jesuíta do Colégio Romano (que neste ano celebra seu bicentenário), notou pela primeira vez linhas escuras na superfície, que ele chamou de “canais”. Mais tarde, no mesmo século, Giovanni Schiaparelli, observando-o de Milão, pensou ter identificado linhas finas que conectavam as regiões mais escuras; ele também utilizou a palavra “canais” para descrevê-las.
O astrônomo estadunidense Percival Lowell, pensando ver essas mesmas linhas, as confundiu erroneamente com canais artificiais, escavados talvez por marcianos desesperados na tentativa de buscar água das calotas de gelo polar. Três anos depois da primeira publicação de Lowell, H. G. Wells já havia transformado essa ideia no seu clássico de ficção-científica “Guerra dos mundos”.
Tanto Lowell quanto Schiaparelli, porém, infelizmente, foram enganados por uma ilusão de ótica; como demonstraram os nossos veículos espaciais, as regiões escuras vistas por Secchi são reais, mas os canais artificiais, não. Até agora, a nossa observação de Marte, nesta estação do ano, tem sido prejudicada pelo mau tempo: em Marte, não na Terra. Os veículos espaciais que orbitam ao redor de Marte nos dizem que, desde meados de junho, uma grande tempestade de poeira está obscurecendo a sua superfície, embora haja sinais de que ela talvez esteja diminuindo lentamente.
Enquanto isso, porém, os resultados recentes de uma experiência realizada pela sonda Mars Express da ESA reacenderam a hipótese da presença de água líquida e, portanto, a possibilidade de vida em Marte. Mais uma vez, quem fez essa descoberta foi, nos passos de Schiaparelli e de Secchi, um grupo de astrônomos italianos liderados por Roberto Orosei, da Universidade de Bolonha.
Seu experimento, Mars Radar Advanced for Subsurface and Ionosphere Sounding (Marsis), consiste no envio de ondas de radar para penetrar e mapear a estrutura das camadas superiores da superfície marciana. Sondando a área sob a calota polar do sul (constituída tanto de água quanto de gelo de dióxido de carbono), eles encontraram predominantemente rocha vulcânica, como era de se esperar.
Mas uma pequena região plana de cerca de 20 quilômetros de diâmetro e a 1.500 metros abaixo da superfície devolveu as ondas do radar de maneira muito forte, precisamente como havia sido observado para as camadas de água líquida na Terra.
O que surpreende não é que haja água em Marte; na sua superfície, podemos ver leitos de rios secos e encontramos gelo sob uma camada de areia perto dos polos. Mas hoje a superfície de Marte é fria e seca demais para suportar rios que correm. A verdadeira notícia é que a água vista pelo Marsis ainda está líquida e não congelada.
De fato, o gelo não consegue refletir as ondas de radar como as vistas pelo Marsis. Por isso, deve haver água líquida e, em particular, um líquido salgado rico em sais dissolvidos.
Acredita-se que a região dessa camada abaixo do polo marciano seja muito fria, talvez de até -60 graus Celsius. A essa temperatura, o sal marinho normal (cloreto de sódio) não conseguiria manter a água líquida, mas os percloratos (compostos de átomos de cloro e oxigênio), sim. Para quem sonha com micróbios marcianos, os líquidos salgados de perclorato não são, infelizmente, lugares particularmente favoráveis à sobrevivência da vida. No entanto, já encontramos algumas formas de vida na Terra capazes de sobreviver em condições extremas; não está excluído que Marte possa hospedar uma forma de bactérias capazes de sobreviver naquele líquido salgado.
Para dar sustentação a essa hipótese de vida em Marte, há outra pesquisa recente de um grupo de cientistas liderados por Jennifer Eigenbrode, biogeoquímica do Goddard Space Flight Center da NASA, realizada utilizando instrumentos que se encontram no rover Curiosity da NASA.
Esse rover está equipado com um aparelho chamado de Sample Analysis for Mars (Sam), que serve para procurar substâncias químicas orgânicas – compostos de carbono complexos formados, ou não, através de processos biológicos – nas amostras marcianas recolhidas em diversos lugares da superfície do planeta.
Um dos locais escolhidos é rico em argilitos formados há cerca de três bilhões de anos, quando Marte era mais quente e mais úmido. Enquanto o instrumento Sam aquecia as amostras, os fragmentos de substâncias químicas orgânicas complexas eram destacados e medidos. Eles se assemelham aos tipos de fragmentos provenientes dos “querogênios”, cadeias complexas de anéis de hidrocarbonetos como as produzidas por seres vivos... mas que também se encontram nos meteoritos e na lava de fogo. Portanto, eles também estão presentes em Marte, formados em condições em que a vida não poderia existir.
Existe vida em Marte, então? Certamente não há canais nem marcianos que os escavam. Mas agora sabemos que há água líquida e temos provas que talvez não demonstrem que existe vida, mas que certamente são coerentes com alguns tipos de formas de vida. É interessante que as amostras que contêm o material orgânico podem ser datadas do tempo em que a vida estava apenas começando no planeta Terra. Certamente seria interessante ver como a vida pode ter se desenvolvido em outro planeta. Ou, se no fim se confirmar que a vida não se desenvolveu em Marte, seria bom saber o que impediu que isso acontecesse.
O trabalho científico continua. O lander da Mars 2020 tem como objetivo coletar amostras para outro lander, mais tarde na mesma década, que possa trazê-las de volta aos nossos laboratórios na Terra.
Enquanto isso, quem puder desfrutar de um céu claro neste mês pode sair para ver o planeta vermelho com seus próprios olhos... e sonhar com marcianos, grandes ou pequenos.
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O planeta vermelho, entre fantasia, ciência e marcianos. Artigo de Guy Consolmagno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU