03 Março 2017
"Ir embora para o espaço - pensa Rodríguez, flutuando sem gravidade alguma, em uma Catalunha com exovocação - talvez seja a coisa mais próxima de ir longe na vida. Se não, haverá sempre, ao final da viagem, esse exo definitivo e sem voltas, conhecido como Mais Além", escreve Rodrigo Fresán, jornalista e escritor argentino, em artigo publicado por Página/12, 01-03-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Eis o artigo.
Atenção: o que está a seguir terá uma abundância de siglas e números difíceis de memorizar, complexas hipóteses cósmicas e insondáveis mistérios poético-científicos. Dessa forma, - decide Rodríguez - talvez o melhor seja, para aquecer os motores, começar pelas formas de vida primitivas e não muito intelectualmente sofisticadas. Então, na tela do noticiário, surgem os flashes de abertura típicos destes programas. Em um deles, um homem é apresentado em uma bicicleta no valor de 12 mil euros, trajando uma mochila a la Dora, a Aventureira, pedalando à toda velocidade pelas ruas de Genebra, enquanto uma câmera nervosa e um microfone gritante perseguem-no como podem e lhe disparam perguntas do tipo "Algo mudaria caso você olhasse para trás?" e "Você está preocupado com o seu futuro?" como se fossem os meteoritos que extinguiram os dinossauros ou que acabarão com as civilizações. Em outro, um homem de cabelo loiro, penteado, que parece desafiar qualquer lei física repetindo com a dicção lenta de um robô "America... First... America… First..." e, à continuação, assinando com letras garrafais algumas páginas em uma pasta que mais se parece com um menu de restaurante trash-food, algum decreto que, por exemplo, revogue uma ordem que diz respeito aos alunos transexuais poderem escolher livremente o banheiro e o vestiário que coincida com a identidade de gênero escolhida, em escolas públicas.
O da bicicleta é Iñaki Urdangarin: marido da desonrada Infanta que (após alguns anos de investigação, processos e meses de deliberações nos quais, até a semana passada com a melhor condenação contraída, não parava de repetir que a justiça é igual para todos e que iria agora mesmo para uma temporadinha em um buraco negro de luxo, mas ainda assim, na escuridão), finalmente ou por enquanto, por possuir uma coroazinha, livra-se da prisão porque "não há risco de fuga". Ainda que, é claro, resida há tempos em outro país e esteja permanentemente vigiado por guarda-costas que são pagos com o mesmo dinheiro público que o conde cônjuge pagava aulas de cha-cha-cha, safáris africanos e agora, sem ao menos pagar fiança, distancia-se para poder seguir andando de bicicleta, fazer-se de desentendido e sem a obrigação de regressar a Espanha para bater ponto todos os meses na delegacia, até que sejam completados os seis anos e meio da sentença. Ou não.
O de penteado estranho, e não tão jovem assim, já sabe quem ele é e não está preocupado pelo seu futuro, mas sim, tem o dom incomum de conseguir que todos aqueles que o rodeiam (absolutamente todos, destaca Rodríguez) se preocupem com o destino dele.
Mas, uma vez superadas as idas e vindas desses dois filhos amados de sua era (a inoportuna pós-verdade) é anunciada a transcendente e revolucionária notícia de última hora, no modelo "Parem as máquinas!", "Modifiquem as manchetes!", Livin 'la Vida Exo. Teclar EXO, clicar em pesquisar, e a primeira coisa que surge são muitas entradas dedicadas a uma boy-band sul-coreana, cujos membros têm o look dos amigos íntimos de Derek Zoolander ou agentes secretos envenenadores de Kim-Jong-um, com álbuns intitulados Exodus e turnês chamadas de EXO FROM. EXOPLANET ?2 - The EXO’luXion. O que se segue no ranking é a marca de uma barra de proteína, sem glúten. E, à continuação, os exoplanetas. Os planetas que estão fora do nosso bairro. E a notícia (Extra, Extra!) consiste na NASA comunicando a descoberta - a aproximadamente distantes 39 anos luz e 300 mil anos escuros daqui - de um sistema de sete exoplanetas "semelhantes ao da Terra" (três deles seriam seus "gêmeos" virtuais com possibilidades de conterem água) orbitando ao redor da estrela anã TRAPPIST-1 (denominação oficial 2MASS J23062928-0502285, com 11% do diâmetro e 8% da massa do nosso sol), na constelação de Aquário. O Google não demorou para dedicar um doodle ao assunto (há tempos Rodríguez leu que há toda uma divisão da empresa dedicada "a um dos trabalhos mais invejados do mundo": a seleção de efemérides e o desenho destes rabiscos animados) e, mais uma vez, surgiu o mesmo de sempre: todos juntos agora fantasiando um amanhã com naves colossais, como se fossemos os protagonistas da mudança mais épica desde aquela da Arca de Noé, e todos em busca de novas paisagens para arrasar. Rodríguez gosta muito dessa ideia. Ele leu toda a ficção do gênero conhecido como generation starship (as primeiras foram o conto "Rescue Party", de Arthur C. Clarke, e o romance Orphans of the Sky, de Robert A. Henlein, e há pouco tempo o gênero foi mais longe com Aurora, de Kim Stanley Robinson, e Seveneves, de Neal Stephenson; e se tornou muito divertido com o filme Passengers, com a sempre acelerada Jennifer Lawrence, que a qualquer momento, com certeza, veremos cantar e dançar em musicais), porque eles contêm dois de seus desejos mais fervorosamente desejados: o longo sonho da animação suspensa, tocando Pink Floyd nas músicas de elevador e, após a contagem regressiva para poder ascender, a possibilidade de começar novamente do zero.
A questão dos exoplanetas surgiu a cerca de duas décadas atrás. O primeiro foi "descoberto" em 1995 e batizado como Belerofonte. Desde então, mais de dois mil têm sido nomeados. E até mesmo se observou o "nascimento" de um deles - o LkCa, na constelação Taurus - e, supõe Rodríguez, que na Nasa, patentear planetas seja equivalente aos doodles no Google. Vejamos se eles começam a trabalhar nisso, porque conhecemos os novos membros da família apenas como Trappist-1 b, c, d, e, f, g. E foi nas últimas noites, mais chocantes do que estreladas, do milênio passado, quando começamos a perceber que, se não estávamos sozinhos no universo, pelo menos ninguém tinha vontade de nos conhecer; então tivemos de pensar um pouco mais em ir para as montanhas do que aguardar a chegada de Klaatu, Ziggy Stardust e E.T. Não deram em nada os "estranhos objetos" que orbitam ao redor de KIC 8462852 ou os "estranhos sinais" emitidos de HD 164595. Alarmes falsos. Nem monólitos messiânicos, nem mensagens de salvadores. E Rodríguez leu semanas atrás sobre o achado de um ensaio de Winston Churchill - redigido em 1939, meses antes de se iniciarem as Blitz e os bombardeios alienazis- sobre a possibilidade de vida extraterrestre em exoplanetas.
Sangue, suor e lágrimas na chuva, sim. "Não sou tão vaidoso a ponto de pensar que o meu sol é o único, com a sua família de planetas", escreveu Churchill no documento. E Rodríguez gosta cada vez mais das súbitas manifestações físicas dessas relíquias imprevistas (sobre o romance de Walt Whitman, perdido e encontrado, as filmagens de Proust descendo as escadas de um casamento), em tempos em que tudo parece acontecer virtual/digitalmente/on-line e Roger Waters continua insistindo que sua música The Wall é um apelo político/protesto multi-erigível em Berlim/Israel/El Paso, ao invés de um dos mais gloriosos, burgueses e solipsistas manifestos em toda a história da humanidade. E, claro, Churchill concluía o seu ponto de vista - enquanto o pai de Waters se preparava para voar pelos ares praianos de Anzio - entre incertezas, mas com segurança absoluta de que "é impossível que sejamos o tipo de desenvolvimento físico e mental mais elevado que já tenha aparecido na vasta esfera do espaço e do tempo".
Ainda que pareça que estamos sós, ao menos na vizinhança, assim o é. O que sobram mesmo são exodeportados, exobrexit, exonerados, exorcizados, exóticos, exopresidentes e exoprimeras damas que preferem governar em resorts intitulados Mar-a-Lago ou recepcionar pessoas nas alturas de torres douradas.
Ir embora para o espaço - pensa Rodríguez, flutuando sem gravidade alguma, em uma Catalunha com exovocação - talvez seja a coisa mais próxima de ir longe na vida. Se não, haverá sempre, ao final da viagem, esse exo definitivo e sem voltas, conhecido como Mais Além.
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