30 Novembro 2016
“Assim, depois da verdade aguarda, entocada, uma (per)versão do verdadeiro: tudo aquilo em que se quer acreditar, embora não seja certo. E querer acreditar é acreditar poder”, escreve Rodrigo Fresán, jornalista e escritor argentino, em artigo publicado por Página/12, 29-11-2016. A tradução é de André Langer.
UM. Já existe, já se sabe, anotem-no. Os especialistas na questão pediram a palavra. De acordo com os responsáveis pelo Oxford Dictionary a palavra de 2016 é pós-verdade. Os sempre “retocones” da Real Academia Espanhola não demoraram para recomendar que seja escrita como pósverdade, mas – sendo estes aqueles que ditam que blue jean é bluyín – já faz muitos anos que Rodríguez não os leva a sério. Também não é porque confie muito nos responsáveis pelo Oxford (palavra do ano já em meados de novembro? Como sabem que até 31 de dezembro não possa surgir outro vocábulo?).
Mas, em todo caso, Rodríguez resgata que, após vários anos de disparates indeformáticas (ocupando as primeiras posições selfie, hashtag, app, emoji), sobressaiu-se uma palavra que tem mais a ver com a eletricidade cerebral do que com o gadget do momento. Embora seja preciso admitir que este neologismo – palavra criada, segundo alguns, pelo escritor e roteirista Steve Tesich em 1992, ou pelo sociólogo Ralph Keyes em 2004, ou ainda pelo jornalista satírico David Roberts em 2010 (com a pós-verdade, até em sua origem há várias opções) – aumentou seu uso em 2000% em relação a 2015 a partir do influxo e da influência das complicadas e cada vez mais solipsísticas redes sociais.
Porque – explicam no Oxford – foi a propósito e por culpa do mau uso da informação em blogs e sítios e outros lugares que a pós-verdade “passou de lugar periférico no uso cotidiano a eixo dos comentários políticos”, colocando de manifesto que “a substância fundamental da pós-verdade corrompida e corruptora é justamente que a verdade já não importa” e que “denota circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”.
Assim, depois da verdade aguarda, entocada, uma (per)versão do verdadeiro: tudo aquilo em que se quer acreditar, embora não seja certo. E querer acreditar é acreditar poder.
DOIS. O Brexit, o plebiscito na Colômbia e a eleição de Trump são erigidos nestes dias como exemplos incontestáveis do pós-verdadeiro. Vírus que inquieta os sociólogos, porque demonstra que já não há pautas de comportamento confiáveis e muito menos enquetes confiáveis. As “massas silenciosas” já não fazem o que delas se espera por lógica e tradição. Age-se por reflexo e não por reflexão. Dispara-se primeiro e aponta-se depois. Coment(a)-se antes de informar. E a maneira de informar passa primeiramente não pelo verificado nem pelo autenticado, mas pelo mais pós-verdadeiro. Ou seja, pelo mais engraçado, espirituoso, louco, imprevisível. Pelo rumor, insulto, desqualificação, falso e engraçado e pesado antes que pelo preciso e autêntico.
Rodríguez tomou conhecimento de que 40% dos norte-americanos informam-se a partir de fontes pouco ou nada confiáveis. E que a partir desses postulados pantanosos e movediços toma suas decisões mais importantes, indo de ineficazes curas milagrosas para a acne até decidir quem será o próximo presidente dos Estados Unidos. E, neste contexto, Trump (ou os apologetas do Brexit que ganharam o referendo admitiram ter proporcionado informações frágeis, números falsos e planos impraticáveis) é o perfeito presidente pós-verdadeiro. Um sinal inequívoco dos tempos que afirma, nega, diz uma coisa para depois dizer outra. E que conseguiu o mais inquietante dos paradoxos: o de um governante que, cumprindo ou não cumprindo tudo o que prometeu na campanha, é igualmente preocupante. E, infelizmente, divertido.
TRÊS. E o mais “interessante” – adjetivo ambíguo e multiuso – é que a pós-verdade permite o tempo todo a manipulação e a alteração de pré-verdades que deixam de sê-lo.
Há poucos dias, na Espanha, a morte da cacique valenciana e prefeita durante quase um quarto de século María Rita Barberá Nolla (fulminada por um ataque cardíaco em um hotel a poucos metros do Congresso no dia seguinte de ter indiciada por lavagem de dinheiro) voltou a colocar de manifesto a pós-verdadeira velocidade/rapidez para reposicionar-se dos políticos em geral e do Partido Popular em particular. Ali estavam todos: elegíacos de uma figura controversa e imputada e pedindo justiça pela “caçada” e “vil linchamento” que Sata Rita sofreu por parte de meios de comunicação e da oposição. Ou algo do gênero. Acreditando nisso mais do qualquer prévia e precária condição fisiológica e parecer da autopsia. Quando – sabe-se – Barberá se alimentava e crescia com tudo o que lhe jogavam da margem contrária.
Na verdade – ou pós-verdade –, o que acabou com Barberá foi compreender que seus próprios “coleguinhas” a ejetaram dos lugares e bancadas que costumava frequentar, convertendo-se ela em uma fétida a quem negavam até a saudação (a família advertiu expressamente que nem queria vê-la no funeral; mas, ali os familiares foram fazendo caso omisso como pós-verdadeiros e plangentes necro-ibéricos de alta qualidade) e obrigando-a a ocupar um lugar no Senado dentro do brancaleônico “grupo misto”. E ficando ali a dormir, dizem, pelo influxo dos poderosos antidepressivos que tomava para contornar os últimos tempos. Daí, aquilo que se conhece como “cadáver político”; que é aquilo que costuma deixar todo “animal político” quando fica sem unhas nem dentes.
Mariano Rajoy (a quem Barberá salvou e exaltou em um congresso em Valência) seguiu seu método habitual: olhou para o outro lado, começou a referir-se a ela como “essa pessoa que você me menciona”, e deixou que fossem suas subalternas “novas gerações” que cortassem sua cabeça como sinal de “regeneração política”. Agora, post-mortem, em uma pirueta dialética assombrosa, algum porta-voz do PP assegurou que Barberá consentiu em se “afastar”, para, dessa maneira, não importunar o partido e que, a certa distância, não caísse nas fauces das “hienas que, mesmo assim, continuaram a mordê-la”. Ou que eles não queriam, mas que o fizeram obrigados pelas exigências do Cidadãos.
Em todo caso, Barberá – dizem – não entendeu o que se passava e o que estava acontecendo com ela. E, depois de tanto tempo no poder, descobriu-se impotente. E assim implodiu em um quarto de hotel de Madri. E, pensa Rodríguez, deve ser raro morrer em um hotel: em uma espécie de limbo. Algo que não é nem casa própria nem hospital alheio, mas uma zona intermediária onde o Descanse em Paz se confunde com o Do Not Disturb.
QUATRO. Em todo caso, a condenada foi pós-verdadeiramente canonizada. E, sim, não há nada como morrer para se tornar imortal e ser pós-verdadeira. E Rodríguez tem que se amarrar os dedos para não entrar na internet e buscar e encontrar pós-verdades sobre o assassinato de Rita Barberá que, despeitada, se preparava para chutar o tabuleiro e puxar o cobertor e ligar o ventilador de merda. E assim até alcançar a possibilidade de que um punhado de hackers tenha arranjado a derrota de Hillary e... Dizer a pós-verdade é como mentir gravemente e todos se apresentaram para esse jogo.
E Zuckerberg & Co. prometem que farão algo para não vomitar; mas, não será simples pendurar o iPhone de Pandora e não comunicar em um território fora da lei em nome da hiperconexão. Porque – atenção – a pós-verdade não é uma arma à disposição apenas do poder, mas também nas mãos descontroladas dos vassalos que desconfiam da figura até então pouco respeitável do “especialista” e que – segundo Roberts – escolhem a primeira quadrilha quase por instinto. E depois se lançam à caça de pós-verdades que justifiquem sua escolha sem se importar com o delírio ou a lógica. Assim, a pós-verdade, como a irmã tola e menos criativa do conspiranoico e da meta-morte de JFK, degradando-se a certidão do nascimento de Obama, enquanto todos juram dizer somente a pós-verdade, toda a pós-verdade, e nada mais que a pós-verdade, até a pós-verdadeira vitória, mais ou menos sempre.
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Homo pós-verdadeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU