07 Abril 2018
"Haverá Europa somente enquanto a ambição humana se acender no fogo da ambição divina".
O alerta é de Rémi Brague, professor, filósofo francês, ganhador do prêmio Ratzinger 2012 e autor, entre outros, de Le règne de l’homme. Gênese et échec du projet moderne (“O reino do homem. Gênese e malogro do projeto moderno”, Paris, Gallimard, 2015), em artigo publicado por Il Foglio, 27-03-2018. A tradução é de Ramiro Mincato.
No Ocidente, que esqueceu suas raízes, o anúncio cristão não pretende trazer novos conteúdos à cultura, mas fornecer nova e maior perspectiva.
O que a Europa pode fazer com o cristianismo? (...). É conhecido o pequeno ensaio de Novalis "La Cristianità, ovvero l’Europa”, que o poeta romântico alemão escreveu em outubro de 1799, e publicado apenas em 1826. O texto não é ingênuo e voltado para o passado, como se poderia imaginar, depois de uma leitura rápida. De qualquer modo, no momento do seu aparecimento, foi entendido como tentativa de identificar Europa e cristianismo. Agora, a situação se inverteu. Há alguns anos surgiu uma controvérsia sobre o Preâmbulo do Tratado Constitucional da União Europeia. O primeiro esboço do texto mencionava expressamente a herança cristã da Europa. Foi sancionado, infelizmente, por muitos dos meus compatriotas, que a afirmação prejudicava nossa vaca sagrada: a laicidade. A fórmula foi cancelada e substituída por uma vaga alusão à tradição religiosa. Em vez de chamar as coisas pelo nome, preferimos referi-las de maneira nebulosa. Como se a Europa não quisesse - ou melhor, certos europeus não quisessem – ter alguma coisa a ver com o passado cristão do continente.
Como podemos avaliar esse fenômeno? Meus sentimentos são contrastantes com relação a isso. Por um lado, acho que é um mau sinal. E, não falo apenas "pro domo mea", como defensor do cristianismo, mas como simples cidadão. A vontade de negar a realidade é um sinal claro e facilmente reconhecível da ideologia. Mas, neste momento, não tenho a mínima vontade de ser governado por ideólogos. A França já fez esta experiência em 1793. E nem precisamos mencionar as tentativas soviéticas, e em seguida as nazistas, maoístas, cambojanas sob Pol Pot.
Sejamos claros: Os ideólogos de hoje não tem a menor intenção de cometer os mesmos crimes de seus antecessores. Mas a ideologia possui sua lógica intrínseca. Há também a "astúcia da irracionalidade". Se quisermos, malgrado tudo, tirar algo positivo de um fenômeno negativo, esta atitude demonstra, no pior dos casos, que ainda há pessoas a quem o cristianismo assusta, e isso é algo que, pensando bem, é muito encorajador.
Se os cristãos devessem perder totalmente essa dimensão espectral ameaçadora, então o sal da terra teria irremediavelmente perdido seu sabor... Grande admirador de Chesterton, particularmente gostei, em seu romance, "O homem que foi Quinta-feira", do personagem Domingo. Esse personagem misterioso claramente simboliza Deus, ao mesmo tempo em que é chefe da polícia, é o líder de uma conspiração anarquista presente por toda parte, semeando desordens em todos os lados.
A atitude a que me referi acima representa uma espécie de ponto médio entre duas versões do mesmo ponto de vista negativo, em relação ao cristianismo. Eu os ilustro brevemente. Uma versão extremada rejeita atribuir ao cristianismo qualquer papel no desenvolvimento da Europa. O espírito europeu seria filho do Iluminismo, reduzido à sua expressão mais radical. A contribuição cristã limitar-se-ia à Idade Média, e , por isso, superada. A Idade Média não seria mais que um parêntese entre dois vértices radiantes: a antiguidade pagã e a terra abundante da Razão, que marcha progressivamente em direção a nós, mas que ainda não chegou. Consequentemente, a Europa seria destinada a substituir a velha "cristandade". As duas - Europa e Cristandade - não seriam apenas diferentes, mas opostas.
Do ponto de vista da história das ideias, nessa visão, há um grão de verdade: é verdade que o iluminismo usou a palavra "Europa" em oposição a "Cristandade", usada anteriormente, e isso exatamente com o objetivo de rejeitá-la. Da mesma forma, procurou-se substituir as noções cristãs por um sistema de conceitos de origem iluminista. Por exemplo, o amor ao próximo, parte da virtude teológica da caridade, foi substituído por "beneficência". Mas, no final, essa tentativa mostrou-se confusa demais para convencer.
Há uma versão mais moderada desse tipo de atitude. Ela reconhece, na história intelectual da Europa, o lugar ao cristianismo, e até um lugar honroso, mas pertencente a um passado irrevogavelmente superado. O cristianismo certamente teria cumprido sua missão na história da Europa, mas de tal forma, que agora, pode ser dispensado. O conteúdo da mensagem cristã estaria tão profundamente enraizado na cultura europeia que, agora, a concha que a continha, poderia ser jogada fora.
Nós temos, sem dúvida, uma mentalidade cristã. Podemos, com segurança, "anular" (aufheben) o cristianismo, no sentido em que Hegel o definia. Encontrar-nos-emos diante de uma nova versão do protestantismo liberal, ou melhor, da caricatura que lhe fizeram seus adversários. E ainda: não é difícil interpretar, nesse sentido, o famoso ensaio que Benedetto Croce escreveu em 1943: "Porque não podemos não nos dizer cristãos".
A longo prazo, esta atitude é, provavelmente, mais perigosa para o cristianismo do que a primeira. Por isso, devo de reformular a questão inicial: o que a Europa tem a ver com o cristianismo? A pergunta pode ser lida de dois modos. Em primeiro lugar: que relação há entre a cultura europeia e a religião cristã? Mas, tomando cada uma das palavras, pode também significar: o que a Europa pode fazer com o cristianismo, em que pode ser-lhe ainda útil? Vou tentar seguir os dois caminhos diferentes, um após o outro.
Até que ponto o cristianismo foi um fator cultural para a Europa no passado? Alguém poderia responder fazendo uma lista das influências cristãs na cultura europeia. Assim, empreenderíamos uma análise espectral da Europa, no espírito do conde Hermann Keyserling. O aristocrático proprietário de terras da Pomerania publicou em 1929 um livro intitulado "O Espectro da Europa". Na minha opinião, tal compromisso seria inadequado por duas razões.
Por um lado, a importância do elemento cristão na fórmula europeia deveria ser medida com precisão, o que é muito difícil. O que, além disso, convidaria a comparar o elemento cristão com outros componentes: aquela antiga, nas suas duas metades, a grega e a romana, mas também a germânica, eslava, céltica, húngara, etc., cada uma das quais, obviamente, reivindicando seu lugar tão grande quanto possível, e fazendo valer seus méritos, minimizando os dos outros. Seria uma espécie de guerra civil historiográfica, que não levaria a nada de bom.
Por outro lado, e mais profundamente, não se faria outra coisa senão rever o que realmente aconteceu. Ora, sabe-se que, a partir da constatação de um fato, não se tem o direito de deduzir uma norma válida para o futuro. Do ser não se pode derivar nenhum dever ser. Além do mais, esse passado, no fundo, não era mais do que uma possibilidade, entre tantas outras, que poderiam ter se realizado, mas que, no entanto, não se tornaram realidade. Pode-se também afirmar que, o que ocorreu, impediu que aquilo que não ocorreu ocorresse, isto é, reprimiu-o violentamente. O que não aconteceu, tornou-se um sonho. Ora, se sabe, os sonhos são mais bonitos do que a realidade, porque neles nos movemos mais livremente do que no mundo dos fatos.
Consequentemente, não é difícil imaginar que uma história onde o cristianismo não tivesse existido fosse mais bela. Isto é o que, por exemplo, Nietzsche fez, em um longo parágrafo do "Anticristo". Limito-me aqui ao que pode ser estabelecido através da ciência histórica e, nesse sentido, explicarei brevemente qual é a contribuição do cristianismo para a Europa. Para fazer isso, não descreverei o que de cristão a Europa tem, mas o que o cristianismo fez pela Europa.
Apresentarei, em primeiro lugar, a contribuição do cristianismo como religião em geral. Em seguida, aprofundarei a pergunta: o que o cristianismo fez pela Europa, considerado, desta vez, não tanto, como religião em geral, mas como uma religião muito particular que é.
Como uma religião entre tantas, o cristianismo tornou possível o nascimento das diferentes nações da Europa. A fusão dos habitantes romanizados do Império e dos povos imigrantes "bárbaros" ocorreu através da participação na mesma fé. No entanto, é provável que esse papel poderia ter sido ocupado por outra religião. O elemento decisivo foi que os recém-chegados adotaram a religião dos povos conquistados. E isso poderia ter acontecido igualmente com a religião de Mitra, se ela tivesse tido hegemonia, ou mesmo com o maniqueísmo, chegado depois. O Islã também fez algo semelhante nas regiões que conquistou. Na origem, talvez, fosse a religião dos cavaleiros árabes conquistadores do Oriente Médio. Sob a dinastia Abássida, a partir de 751, consolidou-se como a religião da maioria dos povos conquistados, fato este, pelo qual, a diferença entre dominadores e dominados gradualmente se dissolveu.
Falemos agora sobre a contribuição do cristianismo como tal. Em virtude de sua especificidade, o cristianismo deu origem a dois movimentos que a longo prazo foram constitutivos da Europa.
A) O cristianismo, acima de tudo, possibilitou a separação entre ‘nacional’ e ‘religioso’, o que influenciou diretamente à constituição da Europa como coro político, em que cada nação tem sua própria voz, porque, muito concretamente, fala sua própria língua. A Bíblia foi traduzida para numerosas línguas, porque o objeto revelado no cristianismo não é uma "mensagem", e muito menos um "livro sagrado", ditado em uma linguagem específica, mas uma pessoa. Como consequência, cada cultura se vê reconhecida como tendo a mesma dignidade. Cada povo está à mesma distância de Deus. Na prática, isto é, no nível da lei e da política, essa separação se materializou por volta do ano mil. O batismo da Polônia, em 966, ocorreu no momento em que o país tentava escapar da influência germânica. Esse movimento atingiu o seu apogeu quando, no início do século XI, Papa Silvestre II fez coroar os reis da Hungria e Bohemia, sem pedir-lhes para fazerem parte do Sacro Império Romano.
B) Em seguida o cristianismo tornou possível a apropriação da herança antiga, ou mais precisamente, um certo estilo de apropriação. Ao contrário da maneira usual de se apropriar pela incorporação e digestão, a Europa se apropriou do legado do pensamento antigo, de modo tal que, a alteridade dessa herança foi respeitada, o estranho foi admitido em sua estranheza. Isso só foi possível porque o cristianismo aplicou o mesmo modelo que aplicara à sua relação com o Antigo Testamento, ao campo da cultura secular. Ao fazer isso, tornou possível a longa série de Renascimentos, que imprimiram seu selo sobre a história cultural europeia.
Voltemos à segunda pergunta, ou melhor, à segunda acentuação da pergunta: para que serve o Europa e cristianismo? Mas, o que importa aqui, é o tempo presente. A questão então é esta: o que o cristianismo pode fazer pela Europa de hoje? Para que serve o cristianismo?
Esta questão poderia ser considerada desdenhosa, humilhante. Porém, nunca nos perguntamos para que serve a arte? Para que serve a filosofia? Não é nesse sentido que eu a faço.
O cristianismo concebe-se como servidor, isto é, o servidor do seu Senhor. Mas, este Senhor se comportou não como um patrão comum, pois humilhou-se, para tornar-se escravo", “assumiu a forma de um escravo" (Filipenses 2,7). Na imitação de Cristo há também, obrigatoriamente, um serviço prestado ao homem. Isso não significa, no entanto, que os cristãos devam ajudar o mundo a alcançar o objetivo que o mundo almeja, com base na imagem que tem de si mesmo. Significa ainda menos que devam ir a reboque de qualquer absurdo do momento. O serviço não é servilismo. De qualquer modo, isso não ajudaria a igreja a tornar-se mais popular. Pior: para um "mundo" sempre pronto a deixar-se arrastar por comportamentos suicidas, isso equivaleria a oferecer, em última instância, um péssimo serviço. O cristianismo deve, antes, discutir com o "mundo", de modo a mostrar-lhe os pontos delicados, os pontos dolorosos.
Chego, assim, à minha tese central: o cristianismo não pretende propiciar novos conteúdos à cultura, mas fornecer-lhe nova perspectiva. A revolução cristã é, por assim dizer, uma revolução fenomenológica. Consiste em tornar visível o que até então era invisível. Uma nova luz se espalha, e é por isso que, de certo modo, nada acontece. Quando acendo a luz no meu escritório, em certo sentido, nada realmente acontece: não aparece mais mobília, não há mais livros, nenhuma folha a mais esvoaça pelo chão. Mas, em outro sentido, acontece algo mais importante: a totalidade do que já estava presente torna-se visível. A declaração de que o cristianismo não traz nada de novo pode parecer paradoxal, e até perturbadora. Na verdade, não estou fazendo outra coisa, senão, expressando uma ideia muito antiga com a ajuda de uma imagem nova. Esta antiga sabedoria, de fato, já encontra-se em um dos primeiros padres da Igreja Grega, Santo Irineu de Lyon. Ele escreve que, com formulação ousada, Cristo nada trouxe de novo. E acrescenta: mas renovou todas as coisas entregando-se a si mesmo (omnem novitatem attulit semetipsum afferens).
Para ilustrar esta tese, começaria com um exemplo que, à primeira vista, parece marginal. Trata-se da arte e, mais precisamente, das artes, cuja finalidade é tornar as coisas visíveis; para dizer com Schopenhauer, são "artes da representação". O cristianismo favoreceu a ascensão das artes plásticas, mas, não viabilizou uma arte nova. Uma comparação com o Islã pode ajudar a esclarecer. O Islã proibiu a representação de seres vivos - uma proibição, que felizmente, nem sempre foi seguida: pense nas miniaturas persas. Por outro lado, essa proibição islâmica promoveu uma arte que a compensa: a caligrafia e, mais precisamente, a aplicação da caligrafia à escrita alfabética. Até os chineses conhecem uma caligrafia embelezadora dos ideogramas. O nome deste tipo de arte preservou um traço da sua origem: o arabesco. Além disso, o cristianismo aviou certo estilo.
Tomo emprestado, aqui, a ideia de Erich Auerbach. O grande filólogo alemão formulou sua tese, pela primeira vez, em seu livro sobre Dante, graças ao qual, ocupou a cadeira de filologia românica em Marburg, em 1929. Depois, desenvolveu-a em sua obra-prima Mimesis. Seu tema é o realismo, como traço fundamental da literatura europeia. O realismo, isto é, a representação da realidade, tornou-se para nós uma evidência que não precisa ser dita. Não podemos imaginar que um escritor sério possa ter outro objetivo. Mas, no entanto, o realismo nem sempre existiu. Na literatura antiga havia, de fato, uma clara separação entre dois níveis de estilo, cada um correspondendo a um nível da realidade social.
O estilo alto (sublimis), empregado para o destino dos heróis e nobres no épico e na tragédia. O estilo humilde (remissus), da comédia, bom para as aventuras do povo simples e também para o submundo, como no Satyricon de Petronius. O realismo supõe uma transgressão: o cotidiano pode ser expresso com os meios do estilo sublime. O que corresponderia a cancelar a fronteira entre os estilos. Segundo Auerbach, essa revolução estilística seria uma consequência direta dos relatos da Paixão de Cristo nos Evangelhos. Nestes, há o que existe de mais baixo – torturas, terminando com dolorosa execução da pena capital - narrada no mais alto estilo. Não escolhi este exemplo para homenagear qualquer esteticismo. O que quero expressar é o modo pelo qual o cristianismo abre nossos olhos. Infelizmente, houve muitas vítimas de crucifixão. Crucifixos perfeitamente inocentes já eram uma exceção muito rara. Dos crucifixos ressuscitados, nunca houve nenhum. Aqui também é interessante destacar o modo pelo qual o cristianismo opera: não com a pregação e, menos ainda, com publicidade. Ele procede através da descrição, por meio de uma história, sobre a vida, obras e morte de uma pessoa. O decisivo é o evento, não o relato sobre ele.
Isso me leva a considerar mais amplamente a ação humana. O cristianismo não introduz uma nova moralidade. Mais precisamente: não inventa nenhum novo mandamento. Com o cristianismo, os dez mandamentos permaneceram. Além do mais, seu conteúdo é encontrado em épocas anteriores e em outros lugares que no campo de origem da religião de Israel. Talvez eles não estejam listados de maneira tão clara como na Bíblia. Mas, sempre atestados em todas as culturas. As proibições do incesto, do assassinato, podem ser encontradas em toda parte. Nada de estranho, se se supõe que estejam gravados na consciência humana. Poder-se-ia dizer igualmente, de maneira mais sóbria, que sem essas regras, a sociedade humana seria absolutamente impossível. O problema não é o conhecimento da lei moral, mas sua aplicação: para quem é o Decálogo? Para vê-lo é preciso ter olhos. O cristianismo, praticamente, não faz outra coisa que abrir os olhos. Não é suficiente saber que devo amar o próximo. O problema do doutor da lei está perfeitamente justificado: quem é meu próximo? (Lucas 10,29) Quem é homem? Quem deve ser considerado homem e quem não? Para os judeus da época, um samaritano era apenas um homem, não se devia frequentá-lo (Jo 4,9). Por isso Jesus, de propósito, faz do samaritano o herói da parábola, e responde à pergunta. Nos tempos antigos, muitos homens eram considerados sub-humanos, ou não completamente humanos. Como homens, eram invisíveis. Mais tarde, foi o caso dos negros nos Estados Unidos, como já dizia Ralph Ellison no título de seu livro Invisible Man. O cristianismo tornou visíveis certas categorias de homens em sua humanidade. Alguns exemplos:
A) A exposição de recém-nascidos, indesejados ou indesejáveis, devido a alguma má formação ou qualquer outra razão, era algo desagradável para os antigos, mas de modo nenhum um crime que devesse ser evitado por todos os meios. Era uma prática corrente. Os filósofos não viam nada a criticar. Quando Platão delineia a cidade ideal, no diálogo da República, retrata Sócrates aprovando essa prática sem remorso de consciência. O cristianismo, que neste ponto está completamente na esteira do judaísmo, se levantou contra esse costume e gradualmente o eliminou.
B) O aborto também era uma prática comum na antiguidade. Claro, era considerado uma coisa desagradável, como um mau hábito, mas não um assassinato. O cristianismo, por sua vez, acredita que o fruto do amor de dois seres humanos também é humano.
C) Nos tempos antigos, os escravos eram considerados não inteiramente humanos. O cristianismo não tentou libertá-los - uma sociedade sem escravos, então, era impensável. Além disso, mesmo na cidade de escravos em revolta, fundada por Espártaco, havia escravos. O cristianismo, no entanto, privou a legitimidade dos argumentos em favor da escravidão, em nome da criação do homem à imagem de Deus.
D) O casamento de jovens senhoras, na maioria dos casos, era decidido pelos pais. A Igreja conseguiu garantir-lhes a escolha do cônjuge. Lutou por séculos pelo direito de se casar sem o consentimento dos pais.
Pode-se dizer que o cristianismo combateu a exposição de recém-nascidos, aborto, escravidão, casamentos forçados, etc., os proibiu ou algo parecido. Mas seria interessante dizer isso de modo mais positivo: o cristianismo nos mostrou que a criança, o feto, o escravo, a mulher, eram seres humanos plenos.
Para ver sub-humanos afirmados como autenticamente humanos, nenhum microscópio pode nos ajudar. Basta olhar a contra-experiência que vivemos nos dias de hoje: sabemos muito mais do que nos tempos antigos que o embrião se desenvolve sem interrupção desde o momento da fertilização até o parto. Mas isso não é mais suficiente para considerá-lo um ser humano. Cerca de trinta anos atrás, ouvia-se em círculos feministas, barulhentos mas felizmente restritos, que o feto era apenas um abscesso do corpo feminino. Sem apelar a esses extremismos, a prática de nossas sociedades supõe algo parecido. Nossas sociedades estão constituídas como clubes privados, em que a admissão de novos membros depende dos membros já registrados, que se reservam o direito de rejeitar candidatos indesejáveis. Isso já é uma prática infelizmente "normal". Em uma cultura "normal" distingue a humanidade dos que fazem parte dela, em relação à natureza que se supõe fundamentalmente animal dos outros povos. Em algumas populações não há outro nome para designar seus membros que o de "homens" e, consequentemente, os outros passam, implicitamente, por animais.
Os teólogos falam de oculata fides, de "olhos da fé". Toda fé tem olhos, toda fé permite ver. Isso não quer dizer que a fé mostra algo diferente da realidade: o objeto da fé não é outra coisa que a verdade. O cristianismo considera a realização suprema do ser humano na culminante presença de
Deus em Cristo, e em Cristo crucificado. No corpo de Jesus, suspenso na cruz, e também no seu corpo morto, a presença de Deus no humano atinge seu ápice - não por causa do sofrimento, mas por causa do amor com que o sofrimento foi aceito. Isso significa que toda vida humana possui uma dignidade intrínseca: independentemente de poder expressar-se por meio de atos, ou de não poder expressar-se ainda, ou de não o poder mais.
Ora, depois desta longa digressão, posso fazer novamente a pergunta: o que o cristianismo tem a dizer à Europa? Bem, de certo modo, nada. Nada de novo. Nada que o homem já não conheça há muito tempo, ou que devia conhecer. Há apenas uma coisa que o cristianismo tem a possibilidade e o dever de ensinar os europeus de hoje: a ver o humano lá onde os outros veem apenas o biológico a ser selecionado, o econômico a ser explorado, o político a ser manipulado, e assim por diante.
Comecei falando de arte, permitam-me terminar a exposição evocando uma obra de arte. Na Basílica de Vézelay, em Borgonha, na França, 40 km a leste da pequena vila onde meu pai nasceu, no narthex, há um tímpano esculpido representando Pentecostes, ou seja, a descida do Espírito Santo sobre os Doze. Em torno da cena, o escultor desconhecido representou a missão dos Apóstolos nos diferentes povos da Terra. Entre esses povos há muitos que nunca existiram, exceto na imaginação dos geógrafos da antiguidade. Assim, por exemplo, vemos um gigante que se inclina para acariciar a cabeça de um cavalo, como se faz com um cachorrinho, enquanto um anão precisa de uma escada para subir no mesmo cavalo. E vemos figuras ainda mais confusas: de homens cujas orelhas são tão grandes que poderiam ser tomadas como escudos, homens cujo nariz lembra o focinho de porcos, e assim por diante. Esta é uma obra tipicamente europeia, precisamente porque faz lembrar o que é absolutamente extra-europeu.
A lição que pessoalmente extraio é a seguinte: Deus faz do homem uma estampa muito mais ampla do que os homens fazem de si mesmos. A antropologia divina é mais criativa que a humana. Deus dá ao homem uma visão mais positiva e otimista da que o homem tem sobre si mesmo. Consequentemente, Deus tem mais ambição para o homem do que o homem tem para si mesmo. Haverá Europa somente enquanto a ambição humana se acender no fogo da ambição divina.
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Europa e cristianismo. Artigo de Rémi Brague - Instituto Humanitas Unisinos - IHU