14 Janeiro 2012
Filósofos e estudiosos se encontraram em 1946 para tentar reconstruir a identidade continental da Europa depois da guerra. Pondo-se problemas muito semelhantes aos de hoje.
A análise é do filósofo italiano Roberto Esposito, em artigo para o jornal La Repubblica, 11-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A primeira sensação que proporciona a leitura da brilhantíssima reportagem jornalística, escrita por um jovem Gianfranco Contini, do encontro internacional entre intelectuais europeus realizado em Genebra, em 1946 – agora editado pela Quodlibet com o título Dove va la cultura europea?, organizado por Luca Baranelli e com uma introdução de Daniele Giglioli - é a de um nítido contraste entre o marcado afastamento do horizonte pós-bélico, e também dos protagonistas, e a singular atualidade de algumas anotações do "crítico sob as vestes do cronista", como ele mesmo se apresenta. Anotações profundas, com relação a um evento certamente nada anódino, como poderia ser o primeiro debate europeu depois da derrota não só do nazismo, mas, segundo alguns, também de toda a Europa; mas ao mesmo tempo cáusticas, expressas ao pé da letra e sem hesitações diplomáticas, por parte de um "enviado" do calibre de Contini, que recém retornava da luta partidária e também de uma experiência pessoal de governo na breve temporada republicana de Ossola, como lembrado no livro em forma de entrevista Diligenza e voluttà. Ludovica Ripa di Meana interroga Gianfranco Contini (Ed. Mondadori, 1989).
Para quase possível de se ver, no cenário suíço reconstruído com incomparável verve narrativa do autor, "os românticos cabelos brancos" do "simpático e muito erudito" Francesco Flora, "entre as tantas cabeças penteadas (como, muito afetada, a perdurante franja asceta de Benda)" ou o contraste, não só de ideias, entre Karl Jaspers, "cavalheiro altíssimo, magro, pálido e grisalho, figurino impecável em preto e cinza" e "o pequeno Lukács, com o seu rosto de asceta magro e duro, com a boca muito grande e plana, óculos amplos, a cabeleira centro-europeia mal e mal contida e um vestidinho cor de mostarda".
Tudo isso não sem notar, por parte do crítico-cronista, a vistosa carência de italianos, representados apenas por Flora, já que Croce, com a notícia de uma provável "queda de Sartre", tinha exclamado: "E, então, o que vamos fazer lá?".
Por outro lado, não surpreendia que os franceses, verdadeiros anfitriões, não tivessem feito pontes de ouro para aqueles que, com Hitler quase a Paris, haviam-lhes agredido pelas costas. O que não isenta o fato de que Contini pudesse legitimamente lamentar a ausência não só dos Moravia, dos Alvaro ou dos Bacchelli, mas também dos "jovens filósofos" Calogero e Capitini, Antoni e Bobbio, Luporini e Del Noce – todos, exceto os dois últimos, da sua própria proveniência azionista [referente ao Partito d'Azione].
Diante dos escombros ainda fumegantes da guerra, a um ano da descoberta de Auschwitz e da explosão de Hiroshima, a questão em torno da qual giram os dias de Genebra não é, depois, tão diferente das do primeiro Congresso dos Escritores Antifascistas, realizado na Mutualité de Paris em junho de 1935 (sobre o qual pode-se ver Per la difesa della cultura. Scrittori a Parigi nel 1935, organizado por Sandra Theron, Ed. Carocci, 2002).
Além disso, o motivo da décadence europeia havia sido entoado há muito tempo, antes ainda dos vários Husserl, Heidegger, Spengler, de um inspirado Valéry, ao epílogo da outra guerra, quando, à pergunta "O que é, portanto, esta Europa?", podia já responder que ela "é uma espécie de cabeça do velho continente, um apêndice ocidental da Ásia", em La Crise de l'esprit. Note (ou L'Européen). Certamente, com relação àquela época, uma horda de bárbaros havia cruzado o Reno ameaçando submergir uma civilização bimilenar. E já se entrevia, entre os vencedores norte-americanos e russos, um choque de hegemonias, prenúncio, se desencadeado, de uma catástrofe ainda pior.
É nesse quadro incandescente e incerto que Contini exerce a sua crítica afiada, tomando a devida distância sobretudo do propósito, naquela ocasião um pouco estranho, antes mesmo que reacionário, de manter a cultura europeia protegida do vento da política.
Daí, dessa opção explícita em favor de um compromisso sóbrio mas firme, descendem todos os seus juízos. Daquele, impiedoso, pelo "bode-cervo de absurdos, de lógica e fineza vitor-huguianas" de Bernanos, "palhaço perfeito" com a sua "oratória catastrófica de cassandra ouvida", àquele, respeitoso, contra o marxista Lukács, apesar da clara distância ideológica que os separava; passando por aquele, aberto mas perplexo, sobre Jaspers, rico em pathos existencial, mas sem coerência interior e de necessidade especulativa.
Aquilo que, contra as hipóteses totalizantes de direita e de esquerda, Contini parece adiar na hora da reconstrução é o senso do limite e do equilíbrio entre as polaridades opostas que, na sua dialética, constituíram a fonte profunda da história europeia – a oscilação contínua entre razão e fé, autoridade e livre pesquisa, ordem e revolução. A própria Resistência, muito fresca na memória do autor, se configura como um episódio feito de ingredientes diferentes, mas não isento, na sua vocação ao sacrifício, de um impulso religioso.
Mas para que a Europa ainda possa alcançar essa fonte, aparentemente ressequida – esta me parece ser a conclusão que podemos tirar das límpidas páginas de Contini –, ela deve renovar radicalmente, antes ainda que a relação com as potências que a rodeiam, a relação consigo mesma. Não só vencer o demônio nacionalista, que por muito tempo ela trouxe dentro de si, correndo o risco de se deixar estrangular, mas também repensar a fundo a fatal categoria da soberania, ampliando-a progressivamente a partir das fronteiras dos Estados individuais para as de toda a comunidade europeia.
Na palestra de abertura do encontro de Genebra (hoje inteiramente legível na rede), Julien Benda pronuncia palavras que, a 65 anos de distância, não perderam nada do seu significado: "Hoje, a ideia de nação parece ter terminado a sua carreira, em favor da ideia de Europa. Mas não criemos ilusões: não acreditemos que tal ideia triunfará naturalmente. Saibamos que ela encontrará, por parte daquela que pretende destronar, uma oposição forte e uma resistência tenaz. A verdade é que as nações, para realmente fazer a Europa, deverão abandonar, nem tudo certamente, mas algo da sua particularidade em favor de uma entidade mais geral".
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Para onde vai a cultura europeia? Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU