31 Mai 2017
“Pode-se realmente dizer que a contribuição árabe é o coração do Ocidente assim como, digamos, o logos grego e o direito romano? Ou que a teologia islâmica pesou na Europa tanto quanto a judaica e cristã? É claro, em Dante, há um poderoso elemento averroístico. Mas seria, talvez, a tônica da Comédia? Permitimo-nos duvidar.”
O artigo foi coescrito pelo filósofo italiano Roberto Esposito, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, e pelo historiador e jornalista italiano Ernesto Galli Della Loggia, professor do Instituto Italiano de Ciências Humanas de Florença (SUM), e publicado por Corriere della Sera, 30-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As questões levantadas por Caterina Resta representam, de forma exemplar, uma posição bastante generalizada na cultura assim como no senso comum italianos (e não só). Que se assinala, acima de tudo, por um fato curioso. Isto é, que, muitas vezes, justamente aqueles que teorizam uma cultura da diferença ou da alteridade não levam em conta o princípio lógico inevitável segundo o qual não pode existir nenhuma noção de diferença ou de alteridade sem uma noção correspondente de identidade.
Somente se eu sou algo é que eu posso me relacionar com o outro, distinguindo-me dele. Para pensar o Dois ou os Muitos, não seria, talvez, necessário que eles sejam entendidos como tais? E, portanto, definidos com base na diferença do que, senão das suas respectivas identidades?
Isso vale sobretudo para a Europa, porque, desde sempre – desde que tem sentido falar dela como de um conjunto unitário –, ela se constitui em torno do princípio de distinção em relação à sua unidade original com a Ásia: o “nó de Górdio”, como definiu Ernst Jünger, que, a partir de Ionia, continuou por séculos ligando Oriente e Ocidente.
É claro, que jamais poderia subestimar as contribuições da tradição árabe na matemática, na arte, na ciência, na filosofia ocidental? Platonismo e aristotelismo são literalmente inconcebíveis fora das contribuições, dos enxertos, das contaminações com a filosofia árabe. O nosso conhecimento de Platão e Aristóteles também vem dali, assim como a obra e a própria vida de Averróis constituem o primeiro anúncio daquela que seria, cinco séculos depois, a batalha do Iluminismo.
Mas a historiografia tem o dever de não perder a medida: na quantidade e na qualidade. E, então, também devemos recordar, por exemplo, que o nosso conhecimento do humano, da sua irredutível ambiguidade, dos misteriosos labirintos de cada sentimento e de cada consciência, isto é, uma parte da identidade europeia, tem uma dívida essencial com um lado da cultura grega – a tragédia e a poesia – da qual nem mesmo uma linha, porém, a cultura islâmica se dignou jamais a transmitir ou a elaborar, julgando-as evidentemente como beldades insignificantes.
E ainda: pode-se realmente dizer que a contribuição árabe é o coração do Ocidente assim como, digamos, o logos grego e o direito romano? Ou que a teologia islâmica pesou na Europa tanto quanto a judaica e cristã? É claro, em Dante, há um poderoso elemento averroístico. Mas seria, talvez, a tônica da Comédia? Permitimo-nos duvidar. Como é possível, portanto, colocar no mesmo plano medidas e intensidades tão diversas?
O princípio da coexistência dos distintos é o próprio significado da Trindade cristã, do qual, no pensamento corânico, não há nenhum rastro. E, não por acaso, toda a cultura ocidental – de Hölderlin a Nietzsche – trabalha sobre a copresença dos opostos. Do cosmos e do caos, da forma e do informe, do limite do ilimitado.
A história, a filosofia, a política da Europa nascem justamente a partir do senso do limite, do desprendimento, do ilimitado, da consciência de que só a partir da determinação é que nasce o sentido. E também a possibilidade da vida civil: o limite é principalmente o princípio do político. Não necessariamente no sentido do conflito – muito menos do “choque de civilizações”. Mas no da distinção.
De Maquiavel a Montesquieu, a grande cultura política europeia reconheceu a necessidade da distinção entre poder, saber e lei, entre teologia, moral e política. Isso – que, aliás, nada mais é do que a criação do Estado laico e a ideia de democracia política – é aquilo que continua nos separando da teocracia islâmica. E não só daquela, como se diz, “radical”, mas também da “moderada”.
Na tese de que, para a identidade da Europa, teria sido “fundamental” a raiz islâmica, como a nossa interlocutora escreve, há uma forçação ideológica extrema, que não se beneficia nem da história nem da filosofia. Uma forçação – o que não é menos importante – que se afasta da realidade verdadeira das coisas, uma vez que se fundamenta em uma exagerada – e, de certa forma, permitimo-nos dizer ingênua – sobreavaliação da incidência dos materiais “nobres”, intelectualmente “altos”, na formação daquela coisa bastante complexa que é a identidade histórico-cultural. Que, em vez disso, constrói-se por mil trâmites e, portanto, também utilizando materiais “baixos”: em primeiro lugar, a memória. Isto é, precisamente a história. Que quase sempre escapa de visões tranquilizadoras de idílica convivência.
A ocupação árabe por meio milênio de boa parte da Península Ibérica; o longo e sangrento confronto de Veneza com o Turco no Levante mediterrâneo; os ataques sarracenos e bárbaros que duraram até o início do século XIX nas costas italianas à caça de mulheres, homens e butins; a ocupação otomana, também esta semimilenar, de boa parte dos Bálcãs, com a dura opressão das populações cristãs obrigadas, a cada ano, a verem uma parte dos seus próprios filhos serem levados embora, destinados a serem convertidos ao Islã e educados em Istambul, como guardas do sultão: somos tentados a crer que, talvez, tudo isso importou alguma coisa. E projeta as suas longas sombras até hoje.
Somos tentados a crer que a epopeia do Cid Campeador, ou aquilo que aconteceu há muito tempo na Planície dos Melros e em Otranto, ou a chegada dos poloneses em socorro de Viena sitiada, somos tentados a crer que esse conjunto de memórias antigas tiveram um peso nada pequeno ao plasmar o modo de ser e de pensar de muitos povos europeus. Que elas são capazes de suscitar, ainda hoje, ecos profundos na sua alma.
A identidade é, precisamente, isso também. E que a nossa interlocutora se tranquilize: ninguém pretende apagar os testemunhos da presença árabe na sua Sicília, assim como não está escrito em nenhum lugar que a identidade e as memórias que a alimentam devem necessariamente desembocar em alguma “guerra de civilizações”. Justamente, dando a cada um a sua parte, a história pacifica; e, no mínimo, é precisamente quando se tenta esquecê-la, mesmo com as melhores intenções, que, ao contrário, a reivindicação distorcida e agressiva se favorece com isso.
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Europa e Islã: a lacuna entre o Estado e a lei corânica. Artigo de Roberto Esposito e Ernesto Galli Della Loggia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU