Por: João Vitor Santos | Tradução: Mariana Szájbély | 31 Março 2018
Para o teólogo Andrés Torres Queiruga, pensar no que significa a ideia de “ressurreição da carne” nas narrativas acerca da ressurreição de Jesus Cristo representa que “Jesus não foi aniquilado pela morte”. “Senão que segue sendo ele mesmo na sua identidade pessoal, não diminuída, mas potenciada enquanto glorificada em Deus. A ressurreição da carne – eu prefiro dizer a ressurreição dos mortos – confessa Jesus já plenamente realizado como Jesus Cristo”, analisa. Ou seja, o ator da ressurreição sintetiza, para ele, “o Deus de vivos e não o Deus de mortos. O que ressuscita os mortos, todos os mortos e todas as mortas, desde o começo do mundo”.
Entretanto, compreender a ressurreição no nosso tempo suscita questões que podem levar a pensar nela como uma narrativa mítica ou, ainda, puramente inventiva. Queiruga, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, reconhece: “o sepulcro vazio pertence ao gênero das narrações em estilo intervencionista. Mas não parece imaginável tomado ao pé da letra. De fato, não é demonstrável historicamente, ainda que alguns o pretendam”. Porém, ressalva que a busca por uma comprovação empírica acaba reduzindo o próprio sentido da mensagem do Cristo. “O Ressuscitado estaria limitado pelas leis espaço-temporais. Não poderia, portanto, estar presente em todos os lugares da igreja e do mundo. O falso realismo levaria à irrealidade”, avalia.
Assim, refletir sobre a completude do Cristo ressuscitado, de maneira que vá além de um conhecimento tutelado pela fé cega e que não reduza tudo a uma busca cientificista vazia, passa, segundo Queiruga, a ser o grande desafio da teologia atual. “É preciso repensar tudo:
a) desde a fidelidade ao Deus de Jesus, revelado como amor e misericórdia infinita, e como perdão incondicional, que nos convida a segui-lo e colaborar com Ele, como filhos e filhas; e
b) dentro de nossa cultura, cuja autonomia o Vaticano II proclamou que devemos respeitar, estudar e aproveitar”, aponta.
Queiruga | Foto: La Voz del Galicia
Andrés Torres Queiruga é teólogo e escritor galego. Foi professor de Teologia no Instituto Teolóxico Compostelá e de Filosofia da Religião na Universidade de Santiago de Compostela. É membro da Real Academia Galega e do Consello da Cultura Galega, e foi um dos fundadores e diretor da revista Encrucillada. Entre suas publicações mais recentes, destacamos Fin del cristianismo premoderno. Retos hacia un nuevo horizonte (Santander, 2000), Repensar a resurrección. A diferencia cristiá na continuidade das relixións e da cultura (Vigo, 2002) e Para unha filosofía da saudade (Ourense, 2003).
IHU On-Line – Hoje, somos atravessados pelo cientificismo da Modernidade. Considerando isso, é preciso repensar a ressurreição no nosso tempo?
Andrés Torres Queiruga – O cientificismo afeta a interpretação de todos os grandes problemas da teologia. Mais ainda aqueles em que a relação entre empiria e interpretação se apresenta de modo mais agudo. É evidente que a ressurreição está neste caso.
IHU On-Line – Que tensões a razão moderna imprime à ideia de ressurreição? E como superar essas tensões?
Andrés Torres Queiruga – Está sobretudo na nova consciência da autonomia da criatura, que não vê a ação divina como um intervencionismo que interfere nas relações empíricas das criaturas. A ressurreição aparece transmitida em textos da cultura anterior, nenhum deles da parte de uma testemunha ocular. Se tomados ao pé da letra como narrações de fatos observáveis, são impossíveis de conciliar entre si. Precisam, por isso, de uma interpretação teológica que recupere o seu sentido originário: a revelação de que Jesus não ficou preso nem aniquilado pela morte, mas que ele – em pessoa – está vivo e glorificado em Deus, e desde Deus presente na história.
IHU On-Line – Em que medida podemos afirmar que a doutrina imprime uma visão essencialmente mítica da ressurreição? Quais os limites e potencialidades dessas perspectivas míticas?
Andrés Torres Queiruga – Corre-se esse risco quando se toma ao pé da letra. Não quando, mediante uma hermenêutica que vai ao fundo dos símbolos narrativos, recupera o seu significado real.
IHU On-Line – A ressurreição deve ser entendida como fato histórico? Em que medida essa perspectiva reduz o caráter transcendente da ressurreição?
Andrés Torres Queiruga – Hoje é convicção comum na teologia atualizada que não se trata de um fato histórico, se com isso se entende que seria acessível aos métodos da ciência histórica como a entendemos atualmente. Mas isso seria falso se por não histórico se entende não real. Isto compreende-se bem, pensando que o mesmo podemos e devemos afirmar acerca da realidade de Deus: afirmamos que não é histórica no primeiro sentido, mas sim no segundo.
IHU On-Line – Como compreender o significado do sepulcro vazio na narrativa da ressurreição? E o que está implícito quando o Cristo, na narrativa de João 20:17, diz à Madalena: “Não me detenhas”?
Andrés Torres Queiruga – O sepulcro vazio pertence ao gênero das narrações em estilo intervencionista. Mas não parece imaginável tomado ao pé da letra. De fato, não é demonstrável historicamente, ainda que alguns o pretendam. Mas também não se vê sentido na expressão “três dias” cronológicos durante os quais haveria um cadáver que depois desapareceria: como? Transformado, aniquilado...? Com o resultado, em qualquer caso, de que não seria empírico, visível ou palpável fisicamente, porque isso equivaleria justamente a negar a ressurreição, convertendo-a na revivificação de um cadáver. E sobretudo, neste caso, sendo físico, o Ressuscitado estaria limitado pelas leis espaço-temporais. Não poderia, portanto, estar presente em todos os lugares da igreja e do mundo. O falso realismo levaria à irrealidade.
IHU On-Line – Teologicamente, o que significa crer na “ressurreição da carne”?
Andrés Torres Queiruga – Significa que Jesus não foi aniquilado pela morte, senão que segue sendo ele mesmo na sua identidade pessoal, não diminuída, mas potenciada enquanto glorificada em Deus. A ressurreição da carne – eu prefiro dizer a ressurreição dos mortos – confessa Jesus já plenamente realizado como Jesus Cristo.
IHU On-Line – Que Deus é esse que se revela na ressurreição do Cristo?
Andrés Torres Queiruga – Já o diz Jesus: o Deus de vivos e não o Deus de mortos. O que ressuscita os mortos, todos os mortos e todas as mortas, desde o começo do mundo.
IHU On-Line – Que relação podemos estabelecer entre o Deus de Abraão, que salva o filho do crente, e o Deus do Novo Testamento, que entrega seu próprio filho em sacrifício?
Andrés Torres Queiruga – Primeiro, advertir que a narração de Abraão e Isaac é simbólica, pois, como mostrei no meu livro “Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus” [1], não foi um acontecimento real, mas um símbolo maravilhoso – se não for tomado ao pé da letra – da confiança plena em Deus, cuja fidelidade é maior e mais firme do que todas as possíveis crises e tentações.
Em segundo lugar, que Deus nunca entregou Jesus à morte, no sentido normal que as palavras têm, pois pensar assim seria atribuir-lhe um crime horrível. Jesus foi entregue à morte pela injustiça e pela maldade dos homens. Deus, assim como Jesus, teve que “suportar” esse crime: Jesus, para permanecer fiel à verdade salvadora que anunciava; Deus, por respeito à liberdade humana. Isto necessitaria de explicações mais detalhadas. Mas é suficiente pensar no caso dos mártires de ontem e de hoje. Alguém pensa que Deus entregou D. Romero [2] à morte? Ou que D. Romero queria ser assassinado?
IHU On-Line – Quais os desafios para repensar os conceitos da teologia, a partir do reconhecimento da autonomia das criaturas?
Andrés Torres Queiruga – Essa é a grande tarefa da teologia atual. É preciso repensar tudo:
a) desde a fidelidade ao Deus de Jesus, revelado como amor e misericórdia infinita, e como perdão incondicional, que nos convida a segui-lo e colaborar com Ele, como filhos e filhas; e
b) dentro de nossa cultura, cuja autonomia o Vaticano II [3] proclamou que devemos respeitar, estudar e aproveitar.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Andrés Torres Queiruga – Que novas pessoas decidam entrar a fundo numa teologia incansavelmente fiel a Deus, profundamente inculturada e fraternalmente comprometida com a humanidade atual.
Notas:
[1] Del Terror de Isaac al Abbá de Jesús: Hacia una nueva imagen de Dios. (Editorial Verbo Divino, 2000). (Nota da IHU On-Line)
[2] Dom Oscar Romero (1917-1980): arcebispo católico romano, foi assassinado enquanto celebrava uma missa, na tarde de 24 de março de 1980. Sua dedicação aos pobres, numa época de efervescência social e guerra, converteu-o em mártir. Em fevereiro de 2015, foi beatificado pelo Papa Francisco. Confira nas Notícias do Dia, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a entrevista especial com Anne Marie Crosville, Dom Oscar Romero ajudou a fortalecer meu compromisso com os mais pobres. Leia também as notícias publicadas em 9-11-2009, El Salvador reconhece responsabilidade no assassinato de Dom Romero e em 20-5-2007, Pedida a canonização de Oscar Romero na V Conferência. Dom Oscar Romero foi beatificado no dia 23 de maio de 2015, em San Salvador. (Nota da IHU On-Line)
[3] Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962 pelo papa João XXIII. Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerramento deu-se a 8-12-1965, pelo papa Paulo VI. A revisão proposta por este Concílio estava centrada na visão da Igreja como uma congregação de fé, substituindo a concepção hierárquica do Concílio anterior, que declarara a infalibilidade papal. As transformações que introduziu foram no sentido da democratização dos ritos, como a missa rezada em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos diferentes países. Este Concílio encontrou resistência dos setores conservadores da Igreja, defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja à estrutura rígida preconizada pelo Concílio Vaticano I. A revista do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, publicou na edição 297 o tema de capa Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, bem como a edição 401, de 3-9-2012, intitulada Concílio Vaticano II. 50 anos depois e a edição 425, de 1-7-2013, intitulada O Concílio Vaticano II como evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo. Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promoveu o colóquio O Concílio Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade. As repercussões do evento podem ser conferidas na IHU On-Line 466, de 1-6-2015. (Nota da IHU On-Line)
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A Ressurreição revela o Deus dos vivos, que supera a morte. Entrevista especial com Andrés Queiruga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU