14 Dezembro 2017
“Deus não nos induz à tentação. Nem se limita a não nos deixar cair nela. Deus se esforça com o seu amor, fiel, compassivo e incansável, a nos ajudar para que não caiamos nela.”
A opinião é do teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, ex-professor do Instituto Teológico Compostelano e da Universidade de Santiago de Compostela. O artigo foi publicado por Settimana News, 13-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Corajoso Papa Francisco, como sempre. Como papa, ele pensa e vive a partir do Evangelho. Papa pastor, com uma teologia viva que fala ao coração e esclarece a inteligência. Ele demonstra isso com a versão do Pai-Nosso na liturgia [em italiano], que, como se sabe, é feita sobre a versão latina: “Não nos induzais à tentação” [em português, a tradução diz: “Não nos deixeis cair em tentação”].
Desta vez, a versão espanhola (a galega e a catalã) é a que ele defende e quer generalizar. Porque, seja qual for o sentido que, no contexto cultural do seu tempo, podia ter a palavra aramaica pronunciada por Jesus, o Papa Francisco expõe a sua verdade teológica segura. Porque o significado real, interpretado a partir de Deus anunciado por Jesus como Abbá (Pai, com a conotação de infinita ternura expressada pelo mesmo som de invocação infantil: “papai”), não pode envolver, de sua parte, nenhum tipo de negatividade em relação a nós.
Não é possível pensar que Deus nos induz à tentação ou nos introduz nela (deixamos de lado o complexo significado original dessa palavra: prova, tentação, ameaça... Ela também precisa de interpretação teológica não vinculada à letra), porque Deus é a única e exclusiva salvação. Porque Deus é amor, porque todo o seu ser consiste em nos amar, nos apoiar e nos promover ao bem. Até a plena realização, simbolizada pelo seu “Reino” de amor, justiça e felicidade.
As vicissitudes, os perigos ou os sofrimentos inevitáveis que a vida nos obriga a atravessar se opõem à sua intenção e ao seu projeto, pela mesma e idêntica razão que se opõem ao nosso bem. Na finitude da vida e no conflitante decurso do mundo, é lá que se deve buscar a “tentação” de que fala o Pai-Nosso. Nunca em Deus, porque justamente o Pai “trabalha desde o princípio” (Jo 5, 17). Deus é o Antimal.
Se cheguei a escrever essas linhas, é, acima de tudo, porque esse corajoso passo do papa – teólogo como pastor e pastor como teólogo – sugere um segundo passo próximo e urgente. A lógica da nova sensibilidade cultural e a nossa necessidade de sermos “honestos com o Deus de Jesus” pedem isso.
Se Deus é essencialmente amor e se “muito mais” do que qualquer pai ou mãe humanos, com gratuidade e dedicação infinitas, ele dá tudo o que é bom às suas filhas e filhos (Mt 7, 11; Lc 11, 13); se ele já sabe do que precisamos mesmo antes de sentirmos a necessidade de lhe pedir (Mt 6, 7); então é necessário tirar as consequências disso: não é a Deus que devemos pedir e que devemos convencer, porque ele já dá tudo sem preço e sem reservas. Somos nós que precisamos escutar o seu chamado, acolher o seu pedido e deixar-nos convencer pela sua contínua preocupação com o nosso bem e com o do nosso próximo.
A Bíblia – quando a lemos com uma hermenêutica que assume como central a preocupação salvífica de Deus – não nos diz outra coisa: escolher a vida diante daquilo que nos humilha ou nos destrói e colaborar com ele contra a fome do pobre, o abandono da viúva e o ímpio descarte de todos os marginalizados. Continuar a pedir significa confessar que Deus é bom e compassivo e, ao mesmo tempo, evidencia o reconhecimento da nossa impotência. São valores certos e verdadeiros, que é necessário conservar.
Porém, expressados na forma de petição que nós fazemos a Deus, eles invertem a relação e podem perverter esses mesmos valores. De fato, pedir e suplicar a Deus faz parecer que a iniciativa é nossa e põe Deus em uma atitude passiva, ocultando, assim, a iniciativa absoluta do seu amor.
Não ver os danos terríveis que essa inversão produz na imagem de Deus e na credibilidade da fé é ignorar a enorme força que a linguagem tem sobre o espírito e a cultura. Todas as vezes que pedimos, que suplicamos a Deus e que ousamos lhe dizer que ele tenha compaixão das crianças que morrem de fome e dos imigrantes que se afogam nos barcos, o nosso inconsciente recebe uma mensagem terrível: se as crianças continuam tendo fome e os migrantes se afogando, é porque Deus não escuta nem tem piedade.
Tal modo de rezar, usado de modo privado todos os dias e repetido em público todos os domingos por milhares de pessoas, mina a imagem de Deus, obscurecendo a ternura infinita do seu rosto e gerando o fantasma de um deus indiferente, quando não cruel e alheio.
O costume e o hábito impedem de vê-lo assim, mas se trata de um envenenamento progressivo do imaginário cultural, de um autêntico “desangelho” – uma “má notícia” – que oculta o Deus pai e mãe anunciado por Jesus e ameaça substituí-lo por um deus que, sem querer, anunciamos como menos compassivos para conosco e menos interessado no bem e na salvação do mundo. Ninguém quer tal perversão.
Confesso que, todos os dias, me espanta cada vez mais que essa evidência não penetra na consciência crente e, acima de tudo, que os teólogos e os pastores continuam não se preocupando com esse gravíssimo alerta. Os processos culturais são lentos, mas implacáveis.
Nas condições de uma cultura secularizada e muito ativa na crítica antirreligiosa, tal atitude acabará manifestando os seus efeitos devastadores para a fé. Não é exagero advertir que continuar nessa rota equivale a semear ateísmo.
O nosso papa está mostrando uma profunda coragem evangélica. A referência à oração central ensinada por Jesus supõe um importante passo à frente.
Não sei se esse passo à frente será possível entre as tantas urgências que ocupam o pontífice e os tantos impedimentos injustos e incríveis que lhe são opostos por aqueles que deveriam ajudá-lo. Porém, pelo menos eu desejo de coração que a coragem evangélica do Papa Francisco e a sua incrível capacidade de encontrar formas de expressão compreensível e de anúncio eficaz abram a porta.
Deus não nos induz à tentação. Nem se limita a não nos deixar cair nela. Deus se esforça com o seu amor, fiel, compassivo e incansável, a nos ajudar para que não caiamos nela.
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O papa, o Pai-Nosso e a oração de petição. Artigo de Andrés Torres Queiruga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU