17 Março 2018
"Em protesto contra o assassinato da vereadora e de seu motorista, manifestações ocorreram em diversas partes do país. E imprensa internacional repercutiu de modo bastante negativo a notícia. Como sempre, a direita e a bancada da bala - seu braço político-parlamentar - reagiu, acusando e debochando dos que “defendem bandidos”.
Certamente, o fato há de abalar a já pouca credibilidade de Temer e seu governo. Mas o problema não é só esse. Isso aumentará ainda mais a instabilidade política do país. Os conflitos tendem a se acirrar ainda mais, ganhando contornos e traços mais explosivos, violentos"
A opinião é de Israel Souza, cientista social e mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre (UFAC).
E nós, que tanto falávamos de “judicialização da política”, agora assistimos, absortos, a outro fenômeno, um fenômeno de dupla face: a política da militarização e a militarização da política.
A bem da verdade, o fenômeno não é novo. Com efeito, muitos são os autores, das mais diversas orientações teóricas, que ressaltam a relação entre política e força. Para não ir muito longe, pensemos em Nicolau Maquiavel, Thomas Hobbes, Karl Marx, Friedrich Engels, Lenin, Max Weber, Carl Schmitt, Giorgio Agamben. E por aí vai. A lista é enorme.
Apenas para dar apenas dois exemplos. Refletindo conjuntamente sobre política, Estado e força/violência, Weber argumenta que “somente se pode, afinal, definir sociologicamente o Estado moderno por um meio específico que lhe é próprio como também a toda associação política: o da coação física”. E continua: “o Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território (...), reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima (...)”. E para efeitos de sínteses, lembremos a célebre frase de Carl von Clausewitz: "A guerra é a continuação da política por outros meios".
Baseando-se nos ensinamentos de Maquiavel e Marx, Gramsci forja uma teoria política mais refinada. Sem descuidar do elemento da coação, indispensável em qualquer forma de domínio, o autor ressalta a importância do consenso. Tratando do Estado moderno e das relações políticas sob o capitalismo, ressalta que o domínio é exercido através dessas duas estratégias (ou meios) que, numa relação dialética, formam um par a um só tempo complementar e tenso: hegemonia e ditadura.
A hegemonia diz respeito à construção e à manutenção do domínio pela via do consenso, do convencimento, das ideias, dos valores, da cultura e etc. Trata-se da dimensão ideológica do domínio ou, para dizer com Bourdieu, da “dominação simbólica”. Através dela, a classe dominante visa à “domesticação dos espíritos” da classe dominada.
Assim, condicionam-se as formas de a classe dominada perceber, interpretar e se posicionar diante da realidade social e dos que nela prevalecem.
Além de dar a aparência de legitimidade ao domínio da classe dominante, a hegemonia é o meio ordinário de seu domínio, isto é, o mais usado na maior parte do tempo. Por meio dele, a classe dominante “engendra” na classe dominada a indiferença e a resignação. Pode até conseguir o apoio ativo dela para seus projetos e interesses. Dessa forma, o domínio a que está submetida a classe dominada é menos sentido ou mesmo não é sentido como tal, pois a hegemonia tende a “naturalizá-lo”, dando a ele a aparência de inexorável.
Ocorre que, sozinha, a hegemonia é insuficiente para garantir os interesses da classe dominante. Por uma questão de garantia, então, esta pode recorrer à ditadura. Como aqui entendida, esta diz respeito ao uso da coação, da força, da violência, e não necessariamente a uma forma de governo. Sua base material (seu sujeito) é o Estado, também conhecido como sociedade política ou governo. Este exerce poder de força através de seus aparelhos como burocracia, judiciário, polícia, exército, a fim de garantir a manutenção da ordem nos moldes mais favoráveis à classe dominante.
O uso de tal recurso serve tanto para reprimir como para desestimular atos de insubordinação e insurgência por parte da classe dominada, dando certa solidez ao domínio “dos de cima” sobre “os de baixo”. Por isso, a classe dominante recorre sempre a ele, variando, segundo as circunstâncias, somente as formas e a intensidade de seu uso.
Nisso assentamos a afirmação de que a “política da militarização” é uma das formas que o uso da violência assume nas relações de domínio e cuja intensidade varia segundo as circunstâncias. Importa melhor explicar essa parte última.
A política da militarização é uma constante nas relações de domínio. Como um dos recursos da ditadura, ela coexiste com os elementos da hegemonia, pois, como dissemos alhures, ditadura e hegemonia formam um par tenso e complementar. Mas, em tempos ordinários, é usada em baixa intensidade, pontualmente, para reprimir uma greve ou manifestação, para desestimular revoltosos ou coisa que o valha.
Apenas em tempos de instabilidade ela é usada em grande intensidade, desabridamente. Em momentos assim, dependendo da força que ameaça o domínio dos de cima, a política da militarização pode ceder espaço à “militarização da política”. É quando a ditadura pode deixar de ser um apenas um meio de domínio e se tornar uma forma de governo.
Por paradoxal que possa parecer, nesse caso, o uso da força é sinal de fraqueza. Para dizer com o grande poeta do Rock Rural, nessas circunstâncias, “Toda força bruta representa nada mais do que um sintoma de fraqueza” (Zé Geraldo).
Em condição assim, em que os elementos hegemônicos (consenso, convencimento etc.) perdem espaço para os elementos coativos (coerção, violência etc.), a classe dominante só consegue manter a ordem - ou pelo menos se lança em tal empresa, pois não é certo que ela o consiga - desprezando as aparências democráticas em que se oculta seu domínio, agora desnudo por força das circunstâncias.
Isto posto, voltemos à realidade brasileira. Desde 2013, ficou clara a intenção de a classe dominante tomar do PT a função de representar e efetivar seus interesses. Em 2016, deu um golpe. Tomou a presidência de Dilma. Passou a implementar por si mesma, em doses cavalares, aquilo que o PT administrava com relativa moderação.
Todavia, por desgastadas que estivessem as forças petistas, aquelas que as sucederam na condução da política não conseguiram apoio popular, mesmo contando com o apoio massivo da grande imprensa e do judiciário que, quando não as apoia ativamente, pelo menos, não lhes cria obstáculo.
Ante a insuficiência dos meios hegemônicos, resta-lhes recorrer aos ditatoriais. Eis que, assim, chegamos ao decreto de intervenção militar no Rio de Janeiro. Eis que, assim, uns personagens citados naquele célebre áudio de Jucá, enfim, aparecem na cena do golpe (“grande acordo”, era como Jucá dizia no áudio). O congresso já havia aparecido. O judiciário também. Agora foi a vez dos militares. E veio a intervenção no Rio de Janeiro.
É óbvio que para entender a intervenção no Rio é preciso considerar outros fatores. Entre eles, destaco: o desastre dos governos local e municipal dali (Rio); a criminalidade, a violência e a insegurança reinantes, ali como noutras partes do país; a inabilidade política e a irresponsabilidade de Temer e consortes; a tentativa de minar a força eleitoral de Bolsonaro (que vem figurando em segundo lugar em diversas pesquisas de intenção de voto para presidente), “roubando seu discurso”, ocupando seu reduto eleitoral (Rio), jogando com o reacionarismo de seus eleitores.
Mostrando os interesses políticos por trás da intervenção, Temer disse que ela foi “uma jogada de mestre”. Como era de esperar, ele não tem ideia do que faz. Em verdade, a intervenção pode ter sido um passo bastante perigoso, marcando a transição da política da militarização para a militarização da política. Não é fácil dar um passo desses e voltar atrás depois, como se nada tivesse acontecido.
Os militares aceitarão perder, sem mais nem menos, os espaços e a visibilidade que ganharam? Difícil. Em caso de suspenderem a intervenção, aceitarão que coloquem em suas costas a culpa pelo fracasso? Impossível.
Ademais, cumpre considerar os efeitos disso para a população. Um representante dos militares já disse que precisam atuar sem medo de uma nova Comissão da verdade. Isso explicita seus intentos. Pretendem - pelo menos, uns setores deles - atuar livremente, sem medo de investigação. Isso coloca em risco bandidos e não-bandidos.
Agora, recentemente, ocorreu a execução de Marielle Franco (vereadora do Psol) e de Anderson Gomes seu motorista. Ela era uma voz forte e combativa na denúncia da desregrada atuação policial no Rio. Não são poucos os que têm levantado a hipótese de que há envolvimento da polícia em sua execução.
Em protesto contra o assassinato da vereadora e de seu motorista, manifestações ocorreram em diversas partes do país. E imprensa internacional repercutiu de modo bastante negativo a notícia. Como sempre, a direita e a bancada da bala - seu braço político-parlamentar - reagiu, acusando e debochando dos que “defendem bandidos”.
Certamente, o fato há de abalar a já pouca credibilidade de Temer e seu governo. Mas o problema não é só esse. Isso aumentará ainda mais a instabilidade política do país. Os conflitos tendem a se acirrar ainda mais, ganhando contornos e traços mais explosivos, violentos.
Num país em que a repressão a grevistas e manifestantes está se tornando comum, em que o assassinato de ativistas políticos e defensores de direitos é rotina e é até comemorado em redes sociais, isso não pode ser coisa boa. Carente de legitimidade suficiente para fazer seus interesses prevalecerem consensualmente, a classe dominante recorre destrambelhadamente à violência.
A cidadania ativa dos que questionam é transformada em crime. A repressão - e até as execuções - deixa de ser pontual e passa a ser ostensiva, desabrida. Já não há preocupação sequer com os elementos formais da democracia. Da violência nas ruas à tomada da presidência de Dilma é o que vemos.
A “judicialização da política”, que já representava, por si só, um golpe em nossa frágil democracia, já não bastava. Era preciso mais. A simples política da militarização também já não era suficiente. Era preciso mais. Insegura de seu domínio, a classe dominante, atabalhoada, recorre ao uso da violência e o faz de modo cada vez mais intensivo e extensivo.
A nosso ver, os sinais de que estamos transitando da política da militarização para a militarização da política são mais que claros. Resta saber até onde iremos. Em cenário como esse, aquilo que Temer chamou “jogada de mestre” pode se transformar num suicídio político. O perigo de os homens de farda sucederem os homens de terno não é remoto.
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A política da militarização e a militarização da política: horizonte de inseguranças e incertezas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU