09 Março 2018
Historiadora que há décadas estuda a realidade feminina em relação com a tradição cristã (e diretora de "mulheres igreja mundo", o suplemento mensal do Osservatore Romano, de que é editora e consultora editorial), Lucetta Scaraffia explica nessa entrevista na última edição do "Le Monde de la Bíble", como no curso dos séculos, a Igreja tenha gradualmente substituído o papel de apóstola de Maria Madalena pelo seu perfil de pecadora arrependida.
A entrevista é de Nicolas Senèze, publicada no L'Osservatore Romano, 7/8-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para você que tem estudado a relação entre as mulheres e a Igreja, Maria Madalena é mais a pecadora ou a apóstola?
Gostaria de começar com uma lembrança pessoal. Quando eu era jovem, em Milão, depois de maio de 1968, muitas mulheres nos círculos feministas italianos chamavam a própria filha de Madalena. Para elas era claramente em antítese a Maria: tratava-se de contrapor à figura da mulher obediente aquela da mulher livre e pecadora. Foi nessa época que comecei a me interessar por Maria Madalena, que considero tenha sido uma das figuras mais manipuladas da história. Tanto por parte da Igreja como das feministas, inclusive.
Por que, em sua opinião, esse duplo olhar sobre Maria Madalena?
Maria Madalena é uma figura forte desde o início do cristianismo. Mas, em uma sociedade patriarcal, em que o Jesus ressuscitado apareceu a uma mulher em primeiro lugar, confiando a ela a missão de anunciar aos apóstolos a sua ressurreição - a mais alta missão possível! - foi um problema para os homens de seu tempo.
Isso se traduziu de várias formas. Por exemplo, no gnosticismo, a primeira heresia cristã, que dispensava um grande interesse em Madalena: os gnósticos acreditavam que Cristo tivesse transmitido um ensinamento secreto, reunido na Pistis sophia. Madalena aparece ali como um apóstolo propriamente dito, que chega a se opor a Pedro, a ponto de vencê-lo depois de ter-se tornado um homem, ou melhor, uma espécie de ser andrógino.
Com Maria Madalena surge, aliás, a questão sobre a sexualidade de Jesus, um verdadeiro filão de uma série de escritores da moda, começando com Dan Brown.
Se Jesus tivesse tido relações sexuais com mulheres isso teria sido sabido! Nos evangelhos aparecem críticas dos fariseus, porque ele comia e bebia "junto com os publicanos e os pecadores" [Mateus 9, 11], de modo que é fácil imaginar que se ele tivesse uma esposa isso se saberia. No entanto, eu não acho que para ele a ausência de uma esposa expresse principalmente uma rejeição radical da sexualidade. Mas havia o risco de uma família hereditária. Se tivesse tido um filho, a identidade de Filho de Deus teria sido ameaçada e isso teria marcado o fim do cristianismo. Também são bem conhecidas as dificuldades, dentro da igreja primitiva, entre aqueles que vinham do paganismo e os judeu-cristãos agrupados em torno da família natural de Jesus. Não, realmente, se Jesus tivesse tido filhos, isso seria conhecido!
A questão das relações familiares é importante, porque o fato de que Jesus, depois de sua ressurreição, tenha escolhido aparecer para Madalena em primeiro lugar, e não para a sua mãe, é contrário às tradições familiares da época. A partir disso nasceu uma série de lendas segundo as quais Jesus teria apareceu primeiro a Maria em segredo e só mais tarde para Madalena; era uma maneira de salvaguardar as relações familiares tradicionais. Mas tais histórias não são relatadas nos textos canônicos. Então eu acredito que, se os evangelhos, escritos por homens - e por homens daquela época em que a mulher era considerada portadora de uma dignidade inferior - preservaram a tradição da aparição de Jesus a Maria Madalena em primeiro lugar, é realmente porque não puderam fazer de outra forma!
Por que então se impôs a imagem de Maria Madalena como pecadora?
A figura de Maria Madalena começou a ser assimilada com outras duas Marias presentes no Evangelho: a irmã de Marta [cf. Lucas 10, 38-41] e a prostituta que lavou seus pés com as suas lágrimas [cf. Lucas 7: 36-50]. Maria de Betânia, irmã de Marta, é também a irmã de Lázaro, amigo de Jesus [cf. João 11:1-45], portanto é quase uma pessoa da família, o que permite tornar menos perigosa e menos perturbadora a sua proximidade com Jesus. Quanto à prostituta, é fácil jogar sobre ela uma sombra de suspeita e, assim permitir a Maria Madalena estar menos em competição com a figura de Maria.
Também deve ser salientado que as tradições do oriente e do ocidente sobre esse ponto entram em oposição: o oriente cristão celebra separadamente Maria de Betânia e Maria de Magdala, enquanto o ocidente, a partir do IV século assimilou-as como prostituta na figura de Maria Madalena. Essa manobra transformou Maria Madalena em uma mulher arrependida que chora por seus pecados e, dessa forma, deixa de ser a missionária encarregada de anunciar a notícia da ressurreição.
Por que essa manobra?
Escolher a imagem da pecadora arrependida permite esconder a proximidade de Jesus com as mulheres, que ao contrário ele tanto amava. Mesmo aquelas de vida "irregular" são sempre muito importantes em todos os evangelhos. Jesus vê que as mulheres amam mais que os homens, que entendem melhor do que os homens o amor. Assim é a mulher samaritana, a primeira pessoa à qual anuncia ser o Messias [cf. João 4, 26]. Embora ela tenha tido uma vida desregrada - o evangelho nos relata que teve cinco maridos, e "o que você tem agora não é seu marido", como Jesus diz para ela - é uma mulher que procura o amor e para Jesus isso é o mais importante.
Dizer que Maria Madalena é uma prostituta é, portanto, uma forma de diminuí-la, mas também mostra a proximidade de Jesus com essas mulheres à procura do amor, mulheres que ele tanto amou e que muitas vezes são suprimidas do evangelho, o que significa o quanto então não fosse entendido o lugar que Jesus lhes reservava. Além disso, não pode ser excluído que Jesus tivesse tido relações com outras mulheres não mencionadas nos evangelhos. Mas teria sido realmente impossível esconder Maria Madalena, pois era uma figura central na vida de Jesus. Então, transformá-la em pecadora permitiu suprimir seu papel como apóstola por dois mil anos e bloquear o papel das mulheres na Igreja.
Essa supressão foi completo na Igreja?
Sim. Uma possível exceção talvez seja a França, onde uma tradição popular apossou-se da figura de Maria Madalena, talvez a confundindo com a figura de Maria do Egito, a santa da Palestina que viveu na luxúria antes de se isolar em uma caverna no deserto. Uma tradição relata que Maria Madalena teria chegado às costas da Gália e começado a evangelizá-la, antes de terminar seus dias em uma caverna no deserto, a Sainte-Baume. A transformação de Maria Madalena na evangelizadora da Gália permitia à Igreja na França reivindicar uma origem apostólica semelhante à de Roma (Pedro), de Bizâncio (André) ou da Espanha (Santiago), embora aqui se trate de uma mulher. Assim, a tradição popular a acolheu como apóstola, enquanto a Igreja a obrigava ao papel de pecadora.
Na prática, como se expressou esse papel?
Um exemplo é o de muitas instituições criadas ao longo da história e destinadas para as pecadoras, prostitutas, jovens que tinham "pecado" e que, de forma mais ou menos forçada, escolhiam arrepender-se seguindo uma vida religiosa. Quase todas as casas que as convertiam para vida de família, estavam sob a égide de Maria Madalena, incluindo aquelas para as viúvas, elas também dignas de suspeitas por terem conhecido o sexo. As virgens, ao contrário, eram encaminhadas para outras instituições, a maioria sob o patrocínio de Maria.
De fato, vem à memória o filme "Em nome de Deus" [2001] sobre as terríveis condições das jovens nessas instituições no século XX na Irlanda.
Felizmente não foi tudo assim! Havia também muitos conventos em que as coisas corriam bem. Na Itália, em muitos deles, era ensinada uma profissão às mulheres ou até recebiam um dote para que se casassem. Havia apenas a preocupação de oferecer-lhes uma vida familiar honesta e regular.
Outro exemplo do desenvolvimento da figura de Maria Madalena como pecadora é representado pela pintura. Embora a maioria das modelos dos pintores fosse de prostitutas, em Roma era proibido retratá-las. Não se podia absolutamente admitir que houvesse prostitutas na cidade do papa! Então eram pintadas prostitutas "venezianas" ou Maria Madalena como pecadora arrependida. Também era uma maneira para que os artistas passassem conteúdos eróticos, com decotes avantajados e cabelos vermelhos, sinais da paixão sexual.
Por que a figura de Maria Madalena como apóstola voltou ao primeiro plano?
Nos últimos anos, muitas mulheres exegetas releram os evangelhos e começaram a protestar. O seu trabalho permitiu compreender melhor a relação entre Jesus e as mulheres, ver melhor o lugar dos vários personagens que compõem a figura atual de Maria Madalena e redescobrir o seu papel como uma apóstola. Para restabelecer a verdade.
Mas o mesmo vale para Maria: se fez dela um exemplo de obediência e humildade que todas as mulheres deveriam seguir. Maria, porém, é acima de tudo um exemplo de coragem! Essa jovem concordou ficar grávida antes mesmo de se casar, sabendo que corria o risco de apedrejamento. Foi preciso uma coragem incrível. Mas, durante séculos, ninguém ressaltou esse aspecto.
Em 10 de junho de 2016 o Vaticano elevou a memória litúrgica de Santa Maria Madalena ao posto de festa litúrgica e publicou um novo prefácio para aquela que é agora "a apóstola dos apóstolos". Por qual motivo uma decisão tão importante?
Trata-se justamente de uma decisão do Papa Francisco. O fato de ter dado a Maria Madalena o título de "apóstola dos apóstolos" é fundamental! Para mim, colocar Madalena no mesmo patamar dos apóstolos é ainda mais importante que ordenar as mulheres sacerdote, porque atribui às mulheres uma igualdade ainda mais profunda no âmbito da evangelização. Considero que seja uma decisão tão importante como a de Paulo VI que, em 1970, atribuiu a Teresa de Ávila e Catarina de Siena o título de Doutor da Igreja. Acredito que seja uma decisão litúrgica e teológica que não será possível suprimir e a partir da qual poderemos alcançar a plena igualdade em todas as áreas.
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As mil manipulações de Madalena. Entrevista com Lucetta Scaraffia no "Le Monde et la Bible" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU