20 Outubro 2017
A teóloga francesa Anne-Marie Pelletier, vencedora do Prêmio Ratzinger 2014, proferiu uma conferência em um encontro realizado no Centro Sèvres, em Paris, no dia 10 de outubro passado, sobre o tema Les femmes, avenir de l’Eglise? [As mulheres, futuro da Igreja?].
No debate, intervieram os jesuítas François Euvé, diretor da revista Études, e Rémi de Maindreville, que fundou a revista Christus, a historiadora Lucetta Scaraffia, que dirige o caderno mensal “Donne Chiesa Mondo” do jornal L’Osservatore Romano, e a filósofa Agata Zielinski.
A iniciativa foi promovida pelas revistas jesuítas Études e Christus, por ocasião da publicação de duas edições especiais dedicadas à questão da mulher na Igreja, sobre os temas, respectivamente, Quelle place pour les femmes? [Que lugar para as mulheres?] e Une spiritualité au féminin [Uma espiritualidade no feminino].
O jornal L’Osservatore Romano, 19-10-2017, publicou trechos da conferência de Pelletier. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na sua sabedoria, as escrituras bíblicas ensinam que, para se abrir à inteligência do futuro, é necessário passar novamente pela origem. Por isso, ainda e sempre, devemos reabrir o livro do Gênesis para tomar contato novamente com o original – fora da cronologia – que ilumina a condição humana, identifica as controvérsias que ela deve enfrentar e indica os meios para superá-las.
Portanto, devemos nos deter sobre um detalhe do segundo relato da criação, no capítulo dois do Gênesis. Pois bem, no instante em que nasce a mulher, aparece também o homem, que, como tal, não existia antes. E, naquele mesmo instante, o relato é atravessado pelo advento da palavra ou, de todos os modos, da linguagem.
No versículo 23, de fato, o homem que acaba de ver a vida, abre a boca: “Desta vez, esta é carne da minha carne e osso dos meus ossos”.
Confesso que, por muito tempo, fui sensível ao fato de que as primeiras dimensões da linguagem são aqui palavras de celebração de uma mulher por parte de um homem. Uma feliz interpretação do texto que, porém, me escondeu a evidência para a qual o exegeta André Wénin, finalmente, me fez abrir os olhos: essa palavra é menos edificante do que possa parecer!
O homem, cujos lábios se abrem sob a pressão de um estupor repleto de admiração, fala, porém, em seu nome. Recorre ao “eu”, mas para indicar a mulher na terceira pessoa, aquela “não pessoa” que é o objeto do discurso, como a identifica a teoria linguística. Em outras palavras, a linguagem que se descerra aqui não estabelece ainda uma relação. As palavras ressoam em um espaço vazio da presença autêntica do outro.
O homem que nasce aqui à palavra, por enquanto, perde a oportunidade de entrar na plena experiência da diferença: a sua admiração, aliás, se esgota na constatação de que a mulher é como ele! Consequentemente, aqui estamos apenas no limiar da palavra. Há ainda muito caminho a se percorrer para que o espaço da linguagem seja investido pela presença daquele “ela” metamorfoseado em atitude de “tu” e para que, entre os dois, ocorra algo semelhante a uma “conversa”.
Mas há mais: em um colóquio com o psicanalista Jean-Pierre Lebrun, André Wénin analisa mais a fundo as palavras do texto. Ele ressalta, então, outra evidência: a mulher, nessa cena, não fala. Não toma nenhuma iniciativa para romper o círculo da objetivação em que a palavra do homem a inscreve. Ela se contenta em ser dita pelo homem, como se o seu contentamento consistisse no fato de se esquivar do risco de se dizer pessoalmente.
No horizonte dessa análise, ganha forma a ideia de que, talvez, haja uma cumplicidade das mulheres com o discurso dos homens que as falam. Um discurso dos homens que, querendo que elas fiquem em silêncio, as dispensa de se confrontarem com a sua identidade…
Sublinhamos que essa leitura das palavras do Gênesis permite avaliar a profundidade das realidades envolvidas naquela que é chamada de “a questão feminina”. Se, de fato, é preciso falar do “lugar” das mulheres na Igreja, interrogar a instituição eclesial sobre práticas que, muitas vezes, continuam a marginalizá-las, a tratá-las com condescendência, senão com desprezo, também é preciso perceber que o problema de fundo é precisamente o da relação entre homens e mulheres. A questão das “mulheres na Igreja”, portanto, está estreitamente ligada à do futuro dessa relação, caracterizada pela marca da bondade, como cantam todas as canções de amor do mundo, mas também motivo de dor, de sofrimento, como atesta a experiência das sociedades humanas, até mesmo lá onde se entrou na novidade cristã...
E o futuro da Igreja certamente está ligado ao futuro dessa relação: a Igreja entrará na sua verdade, aceitando levar em conta que é constituída em igual medida por homens e mulheres, aquele duelo que faz a humanidade à imagem e semelhança de Deus? Fará dessa relação um banco de testes do seu futuro, enfrentando dificuldades que se cristalizam – não exclusivamente, mas singularmente – justamente no modo de gerir a palavra entre homens e mulheres? A instituição eclesial se interrogará sobre o modo de fazer circular essa palavra ou contê-la, suscitá-la para além dos âmbitos permitidos hoje, permitir que ela declare uma experiência própria ou, ao contrário, fazê-la se calar, no pressentimento de um perigo, de um perigo para o outro…?
À luz da história das últimas décadas, essas questões nos pressionam cada vez mais. Porque, de fato – digamos, a partir dos anos pré-conciliares –, a questão das mulheres abriu uma lacuna cada vez maior no discurso eclesial. A homenagem prestada às mulheres e as perorações em favor da sua dignidade e dos seus direitos se tornaram um tema recorrente e insistente no discurso magisterial.
Porém, o compromisso foi amplamente cancelado, como mostrou, com uma franqueza chocante, o artigo do padre Joseph Moingt publicado na revista Études em 2011. Além disso, as práticas mudaram tão pouco que o Papa Francisco, recém-eleito, quase teve que pedir para abrir um canteiro de obras a esse respeito...
Como entender isso? “Depois de tudo o que se fez pelas mulheres...”, admiram-se alguns. De fato, seria preciso retificar o discurso e reformá-lo assim: “Depois de tudo o que se disse sobre as mulheres...”, porque esse dizer é justamente a realidade que deve ser interrogada.
Com efeito, foram pronunciadas muitas palavras. E isso é uma novidade incontestável. É por isso que, talvez sem querer – mas sabemos exatamente o que queremos ou não? –, muitas vezes, voltamos, nestes tempos, à cena de Gênesis 2, 23. As mulheres certamente entraram no campo da palavra magisterial, mas, mais de uma vez, na temibilíssima posição da terceira pessoa. O que é evidente quando se trata da relação com o corpo delas, com a vida, com o outro, com a procriação.
Na realidade, é uma velha tradição apresentada com tintas atualizadas. O que também é evidente quando se trata de celebrar a feminilidade da Igreja, o seu caráter mariano, o fato de ser esposa. Ou até de argumentar uma complementaridade reconciliadora, em uma eclesiologia que indica dois polos – petrino e mariano –, pretendendo, assim, dar um lugar privilegiado ao feminino – a parte melhor, diz-se –, mas em uma modalidade que continua sendo especulativa e abstrata.
Então, sejamos justos: as mulheres também entraram no discurso magisterial sob a forma de discursos pessoais, interpretando-as em uma modalidade vibrante. Foi assim em inúmeras intervenções do Papa João Paulo II. E já, de modo exemplar, de Paulo VI, na sua mensagem às mulheres no encerramento do Vaticano II.
No entanto, ousamos dizer que muitos desses discursos, inserindo-se justamente no registro do sublime, recaíram inexoravelmente no esquema das “mulheres faladas”...
Vocês falam de um modo diferente, mas sempre no horizonte de uma identidade mais ou menos imaginária e, no fim, com o mesmo efeito. Porque uma mulher celebrada demais em uma singularidade excepcional é, novamente, uma mulher mantida à distância. Na realidade, descartada do espaço em que se tratam os assuntos sérios, aqueles que dizem respeito à decisão e à efetividade do poder…
Assim, esses novos discursos de celebração do feminino se curvaram sobre si mesmos. Levaram as mulheres novamente ao mundo das representações masculinas que sustentam, de um modo ou de outro, as estruturas de autoridade e de governo.
Por outro lado, não é preciso se admirar, porque tais discursos não incluem uma escuta da mulher, que liberta sozinha o espaço da sua palavra. Realmente, eles não correm o risco de um encontro com o outro, assim como esse outro pode se dizer, com o imprevisto da sua experiência, com a sua diferença que é preciso deixar que ele formule e não absorver em novos discursos de domínio masculino.
O que está em jogo é que as mulheres na Igreja participem da palavra/Palavra. Devemos ser precisos sobre esse ponto: não se trata de fazer com que elas tomem a palavra “assim como se tomou a Bastilha”, para citar uma frase célebre. Nem mesmo de lhes dar a palavra, como uma concessão condescendente.
Trata-se de fazer com que elas entrem na interlocução com os homens. Ou seja, que apareça uma palavra da Igreja em que o “eu-tu” implique a cooperação dos dois sexos. Em poucas palavras, trata-se de superar o impasse de Gênesis 2, 23 e a preclusão da linguagem na exclusiva palavra masculina.
Trata-se de fazer com que a palavra das mulheres exista na Igreja hoje. Como, aliás – contestando André Wénin um pouco –, ela existiu ontem, mas afetada por aquela impotência que lhe vem do fato de ser posta às margens, de ser encerrada em uma singularidade que pôde se expressar, por exemplo, através da rotulagem de “mística”. Uma palavra que permite manter à distância aquilo que não se quer escutar demais, mesmo que não se trate mais das práticas antigas, que silenciaram essa palavra, aniquilando os seus corpos...
A esse propósito, é particularmente interessante o artigo do padre François Marxer relatado no número da Études intitulado Ces femmes qu’on dit mystiques [Essas mulheres que são chamadas de místicas]. Mulheres cujas vozes pontilham o século XX, como o próprio autor mostrou em um livro recente que lhes dá a palavra, para dizer a fé no feminino, a fé “au péril de la nuit”, ou seja, a fé em si mesma, e não arranjada a partir de seguranças sonhadas, de tranquilizações infantis. Aquela palavra feminina que continua se expressando hoje, com uma energia tônica, como atestam a italiana Luisa Muraro, a francesa Marion Muller-Collard, a espanhola Dolores Aleixandre e muitas outras ainda.
Mas, justamente, não se trata apenas de fazer com que as mulheres digam a sua verdade, mas também que a sua palavra possa deixar o cercado a que foi designada, possa entrar no campo da escuta e da troca. De fato, devemos concentrar a nossa atenção não só no conteúdo dos discursos, mas também na sua enunciação: onde a linguagem vale não só pelo que diz, mas também pelo que constrói de relação no nível dos seus interlocutores. Trata-se, portanto, acolhendo a palavra das mulheres como a de interlocutoras, de fazer com que as identidades mudem profundamente. Uma mulher que diz “eu” constitui o homem em “tu” e, assim redefine, a identidade de cada um. Assim como salva a linguagem do desvio que Gênesis 2, 23 põe em cena.
Uma palavra poderia fornecer um bom modelo dessa enunciação transformadora das identidades. É “conversa”. Independentemente das suas fortes ressonâncias inacianas, na sua modéstia, designa uma modalidade preciosa da palavra e da relação que ela instaura. O encontro entre o rei Salomão e a rainha de Sabá no Primeiro Livro dos Reis é um belo exemplo disso.
Recordemos a cena: uma mulher, ainda por cima estrangeira, vem pôr à prova – a provar – a sabedoria de Salomão. Entre os dois interlocutores, portanto, começa uma conversa. Nós conhecemos os seus efeitos finais: o reconhecimento mútuo da sabedoria do outro, que confirma a prosperidade que cada um faz ver através da magnificência dos dons que oferece ao outro (1Re 10, 1-13).
Temos aqui o esquema de um verdadeiro encontro entre um homem e uma mulher. E no mais alto nível, já que o tema da conversa é nada menos do que a Sabedoria! Pois bem, é a essa altura que, provavelmente, homens e mulheres são esperados hoje na Igreja. É a altura da “diaconia da Palavra”. Sabemos muito bem que, dessa diaconia, as mulheres ainda são atentamente excluídas hoje. Nós celebramos Maria Madalena, chamamo-la de “apóstola dos apóstolos”, mas, na prática, não é assim. Ou, para sermos mais exato, as mulheres estão na vanguarda dessa diaconia na vida da Igreja, mas ainda estão longe do seu reconhecimento institucional. A injunção: “Que a mulher aprenda o silêncio” (1Tm 2, 12) continua permeando as mentes, associada ao privilégio sacerdotal ligado a essa forma de diaconia.
Um fato que, na realidade, nos leva àquilo que, provavelmente, constitui o ponto nevrálgico da nossa eclesiologia: referimo-nos ao batismo, a realidade do seu sacerdócio batismal, com tudo aquilo que implica de dignidade insuperável e tudo aquilo que autoriza de parrésia, ou seja, de garantia e autoridade, sem arrogância.
De acordo com São Paulo, esse sacerdócio batismal qualifica inegavelmente a diaconia da Palavra. Portanto, qualifica também as mulheres. Ainda mais que, em uma religião da Palavra encarnada, estas últimas teriam várias qualificações para fazer valer para esse serviço...: em particular, uma familiaridade com a encarnação que as torna capazes de se moverem na densidade carnal das Escrituras, lá onde a revelação ganha forma. Um título que elas deveriam fazer valer pelo bem de todos, em uma Igreja que supera o diálogo fracassado de Gênesis 2, 23 e entra plenamente no cumprimento da linguagem e da relação, que se realiza com um júbilo tão claro no “eu-tu” do Cântico dos Cânticos!
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As mulheres, futuro da Igreja? A pergunta de duas revistas jesuítas francesas pela voz de uma mulher - Instituto Humanitas Unisinos - IHU