23 Fevereiro 2018
Mesmo quem já carregou a responsabilidade de gerir a Segurança Pública no Rio se divide de forma diametralmente oposta perante a intervenção federal no Estado.
A reportagem é de Julia Dias Carneiro, publicada por BBC Brasil, 22-02-2018.
A BBC Brasil ouviu quatro ex-secretários, que estiveram à frente da pasta estadual de 2002 para cá. Dois deles são terminantemente contra a medida, enquanto outros dois a veem como "necessária" diante da escalada de violência. Três dos quatro, entretanto, consideram que a medida não ajudará a resolver o problema de segurança no Rio no longo prazo, tendo efeitos meramente paliativos.
Os ex-secretários divergem entre ver na ação uma "oportunidade" para "reestruturar a segurança e partir para cima da criminalidade", na opinião do ex-deputado federal Marcelo Itagiba; ou em considerar a ação "inconstitucional" e "incompatível" com a garantia de direitos e a proteção à cidadania que devem ser intrínsecos a uma política de segurança pública, na perspectiva do sociólogo Luiz Eduardo Soares.
O cargo de interventor, entregue pelo governo federal ao General Walter Braga Netto, líder do Comando Militar do Leste (CML), se sobrepôs ao de secretário de Segurança Pública do Rio. Sua nomeação levou à exoneração de Roberto Sá, que ocupava a pasta desde 2016, após a saída de José Mariano Beltrame - o mais longevo no cargo, à frente da pasta entre 2007 e 2016. Procurado pela BBC Brasil, Beltrame não quis conceder entrevista.
O que representa e que mudanças podem trazer a figura de um "interventor" militar, pairando sobre o poder civil desempenhado pelo gestor da Secretaria de Estado de Segurança (Seseg), e com responsabilidade sobre as forças de polícia estaduais, federais e militares?
Para Marcelo Itagiba, delegado aposentado da Polícia Federal, a natureza do cargo lhe dá um poder maior do que tiveram os secretários - o que pode se traduzir em maior liberdade de ação.
"Acho que ele tem uma independência para poder gerir a máquina da segurança pública sem as ingerências políticas que podem prejudicar seu trabalho", diz Itagiba, que foi secretário durante parte do governo Rosinha Garotinho, entre 2004 e 2006, e deixou o cargo para se candidatar a deputado federal (na legislatura de 2007 a 2011).
Por não estar vinculado a partidos, ter sido nomeado por um decreto presidencial e estar descolado das forças políticas que compõem a base ou a oposição política ao governo estadual, o interventor seria muito menos poroso a pressões dos caciques locais por nomeações e cargos.
"Na condição de interventor, ele vai ter muito mais liberdade para agir e condições de se articular melhor com as Forças Armadas no combate à criminalidade", opina Itagiba.
Para Roberto Aguiar, entretanto, que comandou a pasta durante nove meses, no breve governo de Benedita da Silva, o interventor não tem condições de promover mudanças estruturais, sendo parte de um "espetáculo" criado pelo presidente Michel Temer.
"Ele (General Braga Netto) foi colocado nesse grande esquema e vai tentar apresentar alguns atos espetaculosos, mas não vai ter condições de implementar mudanças. Porque não há um grande processo de reflexão por trás da intervenção, buscando soluções para além das ações já corriqueiras da polícia", considera.
Para Aguiar, que foi secretário de Segurança Pública também em Brasília, além de reitor e professor da Universidade de Brasília (UNB), a intervenção é uma manobra política de Temer diante da "impossibilidade" de aprovar a Reforma da Previdência. Assim, o presidente optou por promover uma "substituição de prioridades", na qual colocou a pauta da segurança nos holofotes da agenda governamental.
"Com isso, implementaram uma medida que traz grandes indefinições. Não se sabe como vai ser aplicada, quais são os limites, quem vai aplicar", afirma Aguiar. "Comandos abstratos não funcionam. Comandos precisam ser operacionais."
Para Luiz Eduardo Soares, não há como avaliar eventuais benefícios de uma medida que já nasce "indefensável". Para ele, a intervenção tem uma série de contradições internas e foi lançada de maneira improvisada, sem um plano de ação concreto e desconsiderando experiências pregressas de ações militares que "não trouxeram resultados".
Soares foi subsecretário de Segurança Pública durante o governo Anthony Garotinho, entre 1999 e 2000, ocupando à época o cargo de Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania, e secretário nacional de segurança pública no início do governo Lula, em 2003. Ele diz que a adoção de operações urbanas com as Forças Armadas, autorizados por decretos de Garantia de Lei e da Ordem (GLOs), deixaram claro que uma "ocupação militar" não resolve os problemas de segurança do Rio.
"Sempre que as tropas se retiraram dos territórios, os problemas retornaram, até com intensidade maior", diz o sociólogo, reverberando as palavras do próprio ministro Wellington Moreira Franco (Secretaria-Geral), que em entrevista à Folha de S. Paulo nesta semana admitiu que as GLOs não tiveram resultado - defendendo, portanto, a ampliação da ação com a intervenção federal.
Para Soares, a decisão ignora a resistência de comandantes do próprio Exército às experiências com GLOs, temerosos não apenas pelo eventual desgaste da imagem das Forças Armadas no caso de ações resultarem em ferimentos ou mortes de civis, como também pela exposição dos soldados a riscos físicos e a um possível envolvimento das tropas com práticas de corrupção.
"O combate ao crime organizado exige investigações, inteligência, um longo trabalho de amadurecimento. Isso não está no horizonte da intervenção, que é federal, mas de natureza militar. Seu comandante supremo tem função definida como estritamente militar", afirma, considerando que isso gera incoerências, por exemplo, com a Polícia Civil, a quem cabem as investigações.
"O fato de que a polícia que investiga seja civil tem significado. O universo civil exige organização, hierarquia, mas pressupõe autonomia de seus membros e a possiblidade de dissenso, inclusive nos trabalhos investigativos. E isso não existe na ordem militar."
O delegado federal aposentado Roberto Precioso Júnior, sucessor de Marcelo Itagiba na secretaria no período final do governo de Rosinha Garotinho, em 2006, considera a intervenção "válida" diante da deterioração da situação de segurança no Rio.
"Acho que é um passinho. Qualquer iniciativa para melhorar e sair dessa situação que estamos vivenciando é válida. Deve melhorar alguma coisa. Mas resolver, não vai. É paliativo."
Para Precioso, diante do problema de violência "que vem se arrastando no Rio há décadas", são necessárias mudanças radicais para "transformar" o sistema de segurança no Estado e responder a uma situação que só se torna mais desafiadora. Ele insiste na necessidade de mudanças estruturais no sistema de segurança desde 2006, quando estava na secretaria.
"O que o governo não conseguiu fazer, o PCC (Primeiro Comando da Capital) está fazendo agora. Eles se coordenaram, se organizaram e conseguiram criar uma política nacional, até internacional, atuando no Brasil e na América Latina. Cresceram e assumiram o papel que o sistema de segurança não conseguiu assumir."
Como vantagem da intervenção, ele considera que o general Walter Braga Netto terá mais condições de coordenar as diferentes forças de segurança em comparação a um secretário estadual, já que centralizará o comando de todas as forças repressivas. "Isso começa a corrigir ao menos uma deficiência crônica do sistema" - a falta de integração e sinergia entre as corporações.
No ano passado, por exemplo, quando as Forças Armadas começaram a reforçar a segurança no Rio, as ações foram marcadas por desencontros na comunicação. Além disso, a estrutura policial dividida entre a Polícia Militar, responsável pelo policiamento ostensivo, e a Polícia Civil, pelas investigações, são um desafio de longa data para um sistema de segurança integrado.
A saída, no entanto, não será uma panaceia, prevê Precioso. "Temos que batalhar sistematicamente ao longo de duas ou três gerações para ver alguma melhora em termos de criminalidade. Mas, pelo menos estão procurando fazer alguma coisa, e tomaram uma medida radical, o que era necessário."
Em contraste com a reticência dos outros ex-colegas, Marcelo Itagiba considera que a intervenção federal era necessária e "foi aquém do que deveria ser", defendendo que o efeito da medida se estendesse às outras áreas da administração do Rio.
"O que levou a essa situação não foi a segurança pública em si, mas a estrutura governamental como um todo. Você tem um ex-governador preso e condenado (Sérgio Cabral), e um governador (Luiz Fernando Pezão) investigado. Essa estrutura corroída do Estado nos leva a essa necessidade de intervenção. Deveria ter sido completa. Vamos botar o Rio em ordem", diz.
Delegado federal aposentado e atualmente suplente de deputado federal pelo PSDB, Itagiba considera que a primeira providência da intervenção precisa ser dar os meios e condições de trabalho para as forças de segurança - que vêm sofrendo após um longo período de cortes de recursos, com salários atrasados, viaturas sucateadas e delegacias "abandonadas".
Itagiba afirma que a intervenção é uma "oportunidade" de adotar uma medida que sempre defendeu e buscou implementar: a criação de uma força-tarefa reunindo agentes destacados da Justiça, do Ministério Público, além das polícias Federal, Rodoviária Federal, Civil, Militar e das Forças Armadas.
Perguntado sobre o temor de que a ação de militares exponha moradores de favelas do Rio a mais violência, Itagiba afirma que as operações devem ser feitas por grupos especialmente treinados para que não haja "efeitos colaterais".
"Intervenções cirúrgicas. Vai lá, extirpa o câncer e vamos embora", descreve. "Claro que a cidade está preocupada com a vida das pessoas, eu também estou. Mas não podemos permitir que essas comunidades estejam submetidas a pessoas armadas de fuzil", diz.
"Você não faz um omelete sem quebrar os ovos. O bandido precisa sentir que existe uma mão pesada do Estado. Ele não pode acuar a sociedade e o Estado. Ele tem que temer a polícia, e não a sociedade temer sair de casa com medo de ser assaltada e morta", afirma.
A afirmação de que não se faz um omelete sem quebrar os ovos tem sido recorrente para justificar as mais diversas medidas na gestão da segurança pública do Rio ao longo das últimas décadas, diz o sociólogo Luiz Eduardo Soares. Com a intervenção federal, ele teme que a ideia volte a ganhar força ou mesmo venha a ser naturalizada.
"A ideia de que, para o fim visado, você pode instrumentalizar a vida humana, sacrificar vidas, é absolutamente inconstitucional e autoritária. Mas agora virou bandeira explícita. Por todos os cantos, há gente saindo do armário. Sabemos quem paga esse preço", diz, referindo-se aos moradores das áreas mais pobres do Rio. "Estamos normalizando o desprezo à dignidade."
Tanto Soares quanto Roberto Aguiar ressaltam que há uma incompatibilidade da missão das Forças Armadas com as atribuições de policiamento urbano.
"A missão das Forças Armadas é a defesa do país, do território nacional, e não a vigilância da cidade. A formação e o treinamento são completamente diferentes", frisa Aguiar. "Sinto que estamos vendo mais uma ilusão ser vendida. E com uma ilusão, temos uma grande chance de nos decepcionarmos."
Para Soares, a medida pode de fato trazer uma melhora ao longo dos próximos meses - ao menos perante a opinião pública de uma maneira geral. Já nas favelas, o momento é de tensão e medo diante da possibilidade de operações, especialmente após as declarações do ministro da Defesa Raul Jungmann de que poderiam ser pedidos mandados de busca e apreensão coletivos.
"Pode ser que a saturação na presença de soldados e esse maior poder de fogo provoque um deslocamento de traficantes, como vimos no início das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Por que isso não seria bom? Basta olhar para o passado. Já fizemos isso antes, e quando recuamos, o problema volta, intensificado. Intervenção não é política pública", diz Soares.
Roberto Aguiar considera ter tido sorte à frente da Secretaria de Segurança Pública, tendo permanecido no cargo por apenas nove meses e encontrado apoio de centros de pesquisa, cientistas, universidades, com os quais diz ter conseguido implementar cursos para aprimorar o treinamento de 24 mil policiais militares.
"Tínhamos esperanças de fazer um treinamento brutal em todas as forças policiais, no sentido de humanizá-las. Humanizar não significa tornar bobocas, mas sim tornar mais técnicas, introduzindo novas formas de agir e tentando estabelecer algo que parece banal, mas não é: o mínimo de gentileza", diz.
Para Aguiar, "atos espetaculosos" com expectativa de resultados imediatos não vão conter a violência.
"O pobre do interventor federal vai ter um problema. Vão querer que ele resolva as coisas imediatamente e ele não vai conseguir. É um processo."
Para Aguiar, manter ativas as pontes com instituições da sociedade civil especializadas em segurança é fundamental para buscar soluções e desenvolver ações no setor. Ele lamenta que a intervenção federal tenha vindo sem realizar essa articulação.
"Nós perdemos a capacidade de reunir as pessoas. Reunir em prol da cidadania. Precisamos dar condições para que as pessoas nos ajudem e nós ajudemos as pessoas. E não que nós sejamos uma mão de ferro tentando corrigir a sociedade."
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'Oportunidade' ou 'ação indefensável'? Intervenção federal divide ex-secretários de segurança do Rio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU