17 Fevereiro 2018
"A violência estrutural se manifesta de muitas maneiras e tem diversos rostos na sociedade e também nas igrejas. Na sociedade: violência contra os pobres, violência contra os moradores de rua, violência racial, violência contra os jovens negros, violência contra as mulheres, violência contra os trabalhadores rurais e urbanos, violência contra os povos tradicionais (indígenas, quilombolas), criminalização dos movimentos populares, corrupção, machismo, exploração sexual, tráfico humano, narcotráfico e muitos outros", escreve Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia (UFG).
A Campanha da Fraternidade 2018 tem como tema “Fraternidade e superação da violência” e como lema “Vocês são todos e todas irmãos e irmãs” (Mt 23,8).
Começo o meu escrito fazendo um esclarecimento sobre a diferença que existe entre a pessoa idealista e a pessoa realista. A pessoa idealista - por ter uma consciência ingênua - aponta a utopia (o ideal), mas não indica o caminho a ser seguido para que essa utopia se torne uma realidade histórica. A pessoa realista - por ter uma consciência crítica - aponta a utopia, mas indica também o caminho a ser seguido e os passos concretos a serem dados para que essa utopia se torne, cada vez mais, uma realidade história.
Ora - mesmo sabendo que a vida é dinâmica e as pessoas mudam - a respeito do tema da Campanha da Fraternidade, podemos ter uma consciência ingênua, que leva a uma visão idealista da questão da violência ou uma consciência crítica, que leva - com todas as nuances possíveis - a uma visão realista, da mesma questão.
Falando de visão idealista, quantas vezes, por exemplo, nas nossas reuniões e encontros - sobretudo em ambientes religiosos - ficamos satisfeitos com a apresentação de uma longa lista de “boas intenções”, sem fazer uma análise mais crítica e mais profunda do tema tratado. Não seria o caso de lembrar o ditado “de boas intenções o inferno está cheio”?
Sobre o tema da Campanha “Fraternidade e superação da violência”, precisamos ter claro o que é a violência e como ela se manifesta hoje em nossa sociedade e em nossas Igrejas ou Instituições Religiosas (que são parte integrante da sociedade).
Fundamentalmente, temos dois tipos de violência: a violência estrutural (institucionalizada e legalizada, às vezes, em nome de Deus) e a violência pessoal (interpessoal, familiar e grupal).
Para intendermos o que é a violência estrutural, basta citar um dado da nossa realidade. “Estudos apontam que apenas 62 pessoas detém o mesmo dinheiro que a metade mais pobre da humanidade. Essa desigualdade se torna ainda mais impressionante quando se considera que os mais ricos correspondem a 1% da humanidade, mas detêm 99% das riquezas” (CF 2018. Texto-Base, 71).
Ora, a desigualdade não gera a violência (como se costuma dizer), ela é a violência, a maior e a mais brutal violência; é a violência estrutural; é - em linguagem teológica - o pecado social (sócio- econômico-político-ecológico-cultural) ou estrutural, o reino do mal, o anti-Reino de Deus.
“As transnacionais, sujeitos principais da acumulação capitalista mundial, não só produzem mercadorias e prestam serviços, mediante a exploração da força de trabalho, como também desigualdade, pobreza, desemprego, precariedade, exclusão, destruição da natureza, fome e morte. Por conseguinte, o capitalismo é um sistema criminoso para a maior parte da população mundial”.
Os que, mesmo na Igreja - consciente ou inconscientemente, ingênua ou hipocritamente - acham que a questão da desigualdade pode ser resolvida ou, ao menos, amenizada, multiplicando as obras sociais - que, muitas vezes, consideram os pobres como meros “objetos de caridade” para que “as pessoas de bem” (do alto de suas mansões ou palacetes, civis ou eclesiásticos) possam “ganhar o céu” - deveriam lembrar o que diz o Documento de Aparecida: “A misericórdia sempre será necessária, mas não deve contribuir para criar círculos viciosos que sejam funcionais a um sistema econômico iníquo (repito: sistema econômico iníquo”). Requer-se que as obras de misericórdia estejam acompanhadas pela busca de uma verdadeira justiça social” (385).
Na teologia moral da libertação, o pecado social ou estrutural era um tema central. Infelizmente, hoje a maioria dos teólogos da moral - e também dos agentes de pastoral - não falam mais sobre isso. Suas preocupações são outras. É esse um dos graves pecados de omissão da Igreja.
Para superar - em nome de nossa cidadania e de nossa fé - a violência estrutural, precisamos lutar, de maneira organizada, unidos e unidas a todas as forças sociais populares (movimentos, sindicatos, partidos e outras instituições) e abrir caminhos novos que levem à mudança do sistema. Querer superar a violência sem mudar o sistema, é ingenuidade ou hipocrisia.
“Pergunto-me - diz o Papa Francisco - se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social e nem na destruição da natureza? Se é assim, digamo-lo sem medo: Queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as comunidades, não o suportam os povos... E nem sequer o suporta a Terra, a Irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco”.
Com palavras muito claras, o Papa afirma: “Os seres humanos e a natureza não devem estar a serviço do dinheiro. Digamos não a uma economia de exclusão e desigualdade, na qual o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a Mãe Terra” (Discurso aos Movimentos Populares. Bolívia , 9 de julho de 2015)
Diante de situações de injustiça legalizadas, Jesus de Nazaré se posicionou claramente a favor dos excluídos e excluídas, e praticou a desobediência civil e religiosa. Entre os muitos exemplos, que poderíamos citar, lembro a cura de um leproso, narrada pelo Evangelista Marcos (cf. Mc 1,40-45). E nós, os seguidores e seguidoras de Jesus, temos a coragem de fazer o que Ele fez? Pensemos!
A violência estrutural se manifesta de muitas maneiras e tem diversos rostos na sociedade e também nas igrejas. Na sociedade: violência contra os pobres, violência contra os moradores de rua, violência racial, violência contra os jovens negros, violência contra as mulheres, violência contra os trabalhadores rurais e urbanos, violência contra os povos tradicionais (indígenas, quilombolas), criminalização dos movimentos populares, corrupção, machismo, exploração sexual, tráfico humano, narcotráfico e muitos outros.
Nas Igrejas: clericalismo (que o Papa Francisco definiu como “uma peste na Igreja” e “o pior mal da Igreja na América Latina”), triunfalismo, funcionalismo sagrado, busca de poder, celebrações pomposas e teatrais, pouca atenção à Igreja dos Pobres e seu descarte silencioso (exemplo recente: Igrejas que não falaram nada ou quase nada do 14º Intereclesial das CEBs em Londrina e nem publicar a Carta final do Encontro e a Mensagem do Papa Francisco) e muitos outros.
Temos também muitas formas de violência pessoal (interpessoal, familiar e grupal). Não nego a responsabilidade humana e ética - embora sempre “situada e datada” - das pessoas (famílias e grupos), mas essas formas de violência, na maioria das vezes, são consequência da violência estrutural.
Lembremos: sem justiça, a fraternidade é mentira, é hipocrisia. Estamos na Quaresma, que é tempo de conversão e mudança de vida. Nossa missão de cidadãos e cidadãs, cristãos e cristãs é: construir, desde já, espaços de superação da violência estrutural e pessoal, espaços de justiça e paz, espaços de partilha e fraternidade, e espaços de uma nova educação e cultura, certos de que “outro mundo é possível e necessário”
“Vocês são todos e todas irmãos e irmãs” (Mt 23,8). É a utopia (o projeto) de Jesus de Nazaré. É a nossa utopia, que é, ao mesmo tempo, histórica e meta-histórica.
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Campanha da Fraternidade 2018 A utopia de Jesus: “vocês são todos e todas irmãos e irmãs” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU