03 Outubro 2017
O governo Temer e a bancada ruralista do Congresso estão empenhados em transformar a maior floresta tropical do mundo em propriedade privada de poucos.
A reportagem é de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, publicada por El País, 02-10-2017.
A mobilização que levou Michel Temer (PMDB) a reverter a decisão de abrir a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca) para a exploração de mineradoras mostra que a Amazônia segue com forte poder simbólico no imaginário dos brasileiros. É também pelo desmatamento da Amazônia que Temer tem apanhado no exterior e tropeçado nos números, cometendo uma gafe atrás da outra. É bastante significativo que as principais derrotas simbólicas do grupo que hoje ocupa o poder executivo e domina o legislativo no Brasil estejam relacionadas à Amazônia. Mas é fundamental perceber que nenhum destes constrangimentos, dentro ou fora do país, estancou o processo concreto e acelerado de privatização das terras públicas na maior floresta tropical do planeta nem freou a crescente violência contra camponeses e povos tradicionais. Para compreender o que acontece na Amazônia hoje é necessário não apenas o famoso “follow the money” (“siga o dinheiro”), mas também outro movimento: siga o sangue.
Desde que Dilma Rousseff (PT) foi tirada da presidência por um impeachment sem base legal, 76 pessoas foram assassinadas na Amazônia por conflitos de terra. A violência na região já era alta no governo de Rousseff e piorou muito e aceleradamente no governo Temer. Em 2016, houve 48 homicídios: 19 no governo Rousseff e 29 no governo Temer. No país inteiro, ocorreram 61 mortes por conflitos agrários. Em 2017, já são 47 assassinatos na Amazônia e 59 no país inteiro. Neste ano, o Pará é o líder em mortes por conflito de terra, com 18 assassinatos, seguido de perto por Rondônia, com 15. Desde que Temer assumiu o poder, há um assassinato por disputa de terras a cada seis dias na Amazônia Legal. E a tendência é de crescimento. Os números são do Atlas de Conflitos na Amazônia, que acaba de ser lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pela Rede Eclesial Pan-Amazônia (REPAM).
Para quem atua na Amazônia, a tensão é algo que quase se pode tocar. O momento se assemelha muito ao início dos anos 2000, quando várias lideranças foram executadas pelo que se chama na região de “consórcio da morte”, culminando com o assassinato da missionária Dorothy Stang, em 2005. É importante ter muito claro que, quando Brasília emite sinais de que a bancada ruralista domina o governo, o crescimento da violência é imediato na Amazônia.
Se as mortes de camponeses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos soam distantes para quem mora no centro-sul, é preciso compreender que as razões pelas quais estas pessoas são executadas estão bem perto. E o impacto tanto de sua resistência quanto de seu apagamento diz respeito à qualidade de vida de cada um. E não só no Brasil, mas no planeta. É preciso compreender como estas mortes estão diretamente ligadas a algo grave e definidor do futuro: a conversão da floresta amazônica em propriedade privada.
O processo é sofisticado, a troca de palavras é sutil. Grilagem é a apropriação fraudulenta de terras públicas por indivíduos ou empresas privadas. É crime, portanto. O que pertencia ao Brasil é tomado, em geral pela força, por um indivíduo ou um grupo de indivíduos ou uma empresa.
istoricamente, esse roubo de terras públicas era “esquentado” com títulos falsos, obtidos numa intrincada cadeia na qual estavam envolvidos donos de cartórios. Hoje, isso quase não é necessário. Como mostram os pesquisadores, as ilegalidades criam leis, que por sua vez criam novas ilegalidades. O acúmulo de crimes ambientais gerou anistias, que incentivam novos ilícitos, com a certeza de que contarão com novas anistias.
E há muito mais projetos de lei para legalizar o crime na pauta do Congresso, dominado pela chamada “bancada ruralista”. Sempre vale repetir: quando se menciona “bancada ruralista”, não se trata dos produtores rurais que botam comida na mesa da população nem do agronegócio que usa tecnologia para melhorar a produtividade, mas das velhas oligarquias que marcam a história do Brasil, aquelas que só sabem acumular riqueza expandindo-se e apropriando-se do que é público. Produtores rurais sérios, conectados com os avanços tecnológicos e preocupados com os efeitos da mudança climática sobre a produção, não fazem parte dessa turma.
Há uma conexão direta entre grilagem, desmatamento e mortes por conflitos de terra na Amazônia. Do mesmo modo, onde há grilagem e desmatamento há trabalho análogo à escravidão. É este Brasil que se expande na Amazônia neste momento. O mais atrasado, o que funciona a motosserra, bala e escravidão. Era esta a “ponte para o futuro” de que falavam os grupos que levaram o Brasil aos dias atuais.
A conversão do “ilegal” em “irregular” acentuou-se ainda no governo Lula, onde começaram a ficar claras as alianças com a bancada ruralista, que ficaram ainda mais íntimas no governo de Dilma Rousseff e se tornaram siamesas com Michel Temer. Alguns personagens do PT que hoje bradam contra a entrega da Amazônia eram bem ativos nesse processo até ontem. Mas sempre se pode contar com a amnésia coletiva no país da desmemória. Ou com aqueles que pensam que nunca é a hora certa de criticar o PT. Estes também se esquecem rapidamente de quem morre por ação ou inação. Precisam explicar por que não é a hora certa para os familiares dos mortos.
Os números ajudam a clarear os objetivos: os pequenos eram quase 90%, mas ocupavam menos de 19% do território; já os grandes eram menos de 6%, mas ocupavam 63% do território. Para os pequenos, a lei já existente era capaz de solucionar a situação e corrigir injustiças. Não era necessário criar nada novo. Assim, afirma Torres, o programa Terra Legal foi pensado para legalizar a grilagem. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor da USP e um dos principais estudiosos da questão agrária no Brasil, afirmou, referindo-se à lei: “O ano de 2009 entrará para a história da origem da propriedade privada capitalista da terra no Brasil como entrou a lei de terras de 1850”.
Como exemplo da situação naquele momento, o pesquisador Mauricio Torres relata: “Em 2009, o município de São Félix do Xingu, no Pará, que possui uma extensão de 8,4 milhões de hectares, contabilizava registros de títulos que somavam mais de 28,5 milhões de hectares de propriedades. Por essa conta, São Félix do Xingu teria três "andares". Um edifício modesto, se levarmos em conta a existência de casos bem piores, como o de Vitória do Xingu, também no Pará, onde os títulos de propriedades registrados somavam centenas de vezes a extensão do município”.
O pesquisador faz uma comparação para explicar o impacto do programa Terra Legal: “Se você tem um carro sem documentos, você está irregular, mas o carro é seu. Mas se você tem um carro roubado, é ilegal, não dá para regularizar um carro roubado”. Com a desculpa de regularizar os pequenos, os que realmente estavam irregulares, o Terra Legal teria legalizado o crime praticado pelos grandes. Se a história do Brasil é também uma sucessão de iniciativas para regularizar a grilagem, o Terra Legal inaugura uma série de legislações que tornaram esse processo muito mais sofisticado e insidioso. Basicamente, consuma uma perversão também na linguagem: o que era “ilegal” se torna “irregular”, o que muda tudo.
Dali em diante, o grileiro “vai tecendo relações legítimas a partir de algo ilegítimo”. Não é preciso cometer mais crimes, como produzir documentos falsos, para legitimar a terra pilhada. Tudo isso pode ser feito dentro da lei. Os documentos agora são “legais”. O novo e controverso Código Florestal, de 2012, cuja constitucionalidade deverá ser julgada em breve pelo Supremo Tribunal Federal, aprimorou ainda mais produção de legalidade onde antes havia crime.
O cruzamento de dados de desmatamento, Terra legal e CAR, somados a dados de campo, segundo o pesquisador, apontam a falência desses mecanismos também na questão ambiental. Na Operação Castanheira, coordenada pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal, IBAMA e Receita Federal em 2014, foi divulgado um áudio de interceptação telefônica autorizada pela justiça. No diálogo entre o grileiro e um interessado na compra de terras, o CAR aparece em resposta à demanda de documentação da terra: “E a documentação lá, como funciona? Tem escritura ou é tudo na base do contrato? A maioria ainda não é escritura. Tem uma sequência de documentos. Tem lá o CAR, que é o Cadastro Ambiental Rural, pra você poder por gado pra dentro, pra você ter guia de trânsito de animais e tal. Aí você pode pedir o título da terra. Aguarda um tempo que o documento sai”.
Para exemplificar como Terra Legal e CAR impactam a realidade cotidiana na Amazônia Legal, os pesquisadores reproduzem um anúncio de 2016, na internet, em que uma fazenda de 100 mil hectares no município paraense de Jacareacanga é oferecida. O vendedor oferta terras públicas com uma dimensão 50 vezes maior do que o limite constitucional para aquisição de terras da União sem autorização do Congresso Nacional. E o faz nos seguintes termos: “É uma área de posse mansa e pacífica e está sendo feito o Geo (georreferenciamento) para na sequência fazer o CAR, requerer o título definitivo e consequente escritura definitiva. Está sendo feito o desmembramento da área de até 1.500 hectares no projeto Terra Legal”.
O curioso é que a lei de 2009 era conhecida como “Lei da Grilagem” – e a lei de 2017 também é conhecida como “Lei da Grilagem”. O PT estava no poder na primeira – e hoje o PT contesta judicialmente a segunda. Mas o que a Lei da Grilagem número dois fez foi abrir ainda mais a porteira já aberta pela Lei da Grilagem número um: passou de 1.500 para 2.500 a quantidade de hectares passíveis de “regularização” e estendeu de 2004 para 2011 o ano de “ocupação”. Não é que o Brasil tenha problemas com a memória passada. O país está sofrendo de perda de memória recente.
Na política para a Amazônia, o que se vê após o impeachment de Dilma Rousseff é continuidade e não rompimento, ao contrário de outros setores, como saúde e educação. Continuidade com muito menos pudor e de forma muito mais acelerada, mas ainda assim continuidade. É importante perceber ainda como os projetos de lei que legalizam a grilagem correm rápido, praticamente voam, enquanto as demarcações de terras indígenas e a criação de unidades de conservação estão paralisadas ou retrocedem.
Os grileiros e o latifúndio estão sendo fortalecidos – e os povos tradicionais, justamente os que não veem a terra como propriedade, mas como reprodução da vida, estão sendo fragilizados. Isso é obviamente a escolha política de um projeto que não foi eleito, com graves consequências para todos. E não só é uma escolha política, como é principalmente um desenho de país. É um Brasil ainda mais injusto e predatório o que se desenha neste momento em traços rápidos.
Com as atividades dos mandantes passíveis de legalização, a pistolagem está em alta. É neste contexto que chacinas como a ocorrida no município de Colniza, no noroeste do Mato Grosso, acontecem: nove trabalhadores rurais foram executados em 19 de abril, após mais de uma década sofrendo a violência de grileiros, sem que nada fosse feito. E também é este o contexto da chacina de Pau D’Arco, no sudeste do Pará, em que policiais torturaram e executaram dez trabalhadores rurais, em 24 de maio. E cadê a justiça?
Grileiros e bancada ruralista estão satisfeitos com a transformação da ilegalidade em irregularidade e, logo em seguida, regularização? Claro que não. É da sua natureza querer sempre mais.
Assim, é importante compreender outro fato. Desde que foram criadas, aprovadas e sancionadas leis que legalizam o roubo de terras públicas, os grileiros só não conseguem legalizar o grilo onde há unidades de conservação, mesmo que estas estejam só no papel. Aí não há (ainda) como produzir documento. Esta é uma das razões para a pressão cada vez mais forte para reduzir as unidades de conservação ou desprotegê-las. Uma das estratégias é ocupá-las e desmatá-las e, em seguida, pressionar para que, já que estão ocupadas e desmatadas, deixem de ser unidades de conservação e se tornem abertas para a exploração legal.
O nome é bonito, mas na prática significa que 354 mil hectares de floresta amazônica se tornariam legalmente aptos a atividades como agricultura e pecuária. A medida beneficia grandes grileiros, pelo menos dois deles prefeitos de municípios da região, como mostrou reportagem de O Globo, que se apropriaram de pelo menos 44 mil hectares, uma área maior do que a do município de Curitiba. E ocuparam esta área depois que a Flona do Jamanxim foi criada: ou seja, sabendo perfeitamente que estavam cometendo crimes, mas sempre contando com os amigos no Executivo e no Congresso que, como se sabe, nunca os decepcionam. Mas o projeto de lei, obviamente, é justificado como uma ação para regularizar a situação de pequenos ocupantes de boa fé bláblábláblá.
Sempre foi dito por muitos que o problema da Amazônia era ausência do Estado. O que se identifica hoje é que não se trata apenas da ausência do Estado, mas também da forma como o Estado se faz presente – quando se faz presente. E não se trata apenas do descumprimento da lei, mas da lei que promove injustiça. O que vivemos na Amazônia, a partir de Brasília, é a descrição exata desta frase do antropólogo americano James Holston, autor de Cidadania Insurgente (Companhia das Letras): “Não apenas a lei produz ilegalidade e injustiça, mas também a ilegalidade e a injustiça produzem a lei”.
Quando o atual processo de legalização da grilagem foi iniciado no governo Lula, ele aconteceu sob o silêncio de antagonistas históricos do latifúndio e da grilagem. “As principais centrais sindicais, os principais movimentos socioterritoriais e a maioria absoluta dos intelectuais estão em silêncio, logo coniventes”, escreveu o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira ao analisar o processo. Ao tornarem-se governo, movimentos sociais e também sindicatos calaram-se, caso do próprio MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Esta é também parte da explicação de como a hidrelétrica de Belo Monte foi imposta no Xingu depois de décadas de resistência nas quais os movimentos sociais da região de Altamira tiveram um papel decisivo.
Quando Temer e sua quadrilha tomaram conta do poder encontraram um território mais do que propício: a resistência dos movimentos sociais da região estava minada pelo projeto de conciliação de Lula Dono é quem desmata”, como bem apontou Cândido Neto da Cunha, engenheiro agrônomo e perito agrário do INCRA no oeste do Pará desde 2006, na apresentação do livro, “as grandes obras de infraestrutura viriam acompanhadas de pretensas preocupações sociais e ambientais, e deveriam contar com diálogo e participação, envolvendo atores antagônicos em planos de compensação, mitigação e desenvolvimento”. Estabeleceu-se uma dinâmica que, em Belo Monte, por exemplo, se torna explícita: a de propositalmente confundir direitos com privilégios e, especialmente, confundir políticas públicas com favores do Empreendedor, neste caso, a Norte Energia, concessionária da hidrelétrica. “O ideário de que o acesso a direitos básicos e a políticas públicas estavam exclusivamente vinculados à execução dos empreendimentos permeou esse momento político, no qual se praticou, à exaustão, a conciliação de interesses até então vistos como inconciliáveis”, afirma Cunha.
Mas quem está na linha de frente, quem está na linha de morte, são os mais frágeis. Na maior parte das vezes estão lá só com o seu corpo. E acabam com ele cheio de balas. São estes que hoje defendem a maior floresta tropical do planeta em tempos de mudança climática produzida por ação humana. E a defendem quase sozinhos. E é evidente que eles não podem continuar sozinhos a defender algo que é um patrimônio de todos – e que se torna cada vez mais essencial para a sobrevivência da própria espécie humana.
O recuo de Temer e sua quadrilha com relação à Renca é uma pequena vitória, possivelmente provisória. Se os brasileiros quiserem lutar de fato pela Amazônia, precisam fazer muito mais. As lágrimas de Gisele Bündchen precisam se somar às lágrimas invisibilizadas dos familiares daqueles que perdem a vida defendendo a floresta. Os que morrem de um em um. É preciso produzir memória sobre cada um dos que morrem e tornar mais viva a sua luta para que não morram mais. Com cada um deles morre um pedaço da floresta. É menos um.
A Amazônia mobiliza todo um imaginário de Brasil. Num momento de tantas dissoluções, em que o próprio Rio de Janeiro, com todas as suas simbologias de cidade maravilhosa, tornou-se o retrato mais explícito das mazelas atuais e dos conflitos históricos do país, a Amazônia como imaginário de potência talvez seja tudo o que resta de uma ideia de Brasil que gira em falso há muito mais tempo.
Neste momento, a maior floresta tropical do mundo se converte de forma acelerada em propriedade privada de criminosos legalizados por aqueles que constituem o governo e o Congresso possivelmente mais corruptos da história recente. E quem a defende são justamente os povos para quem a floresta não é propriedade, mas vida.
E esta não é uma frase de efeito, mas uma distinção profunda. O que está em disputa nos acompanha desde a fundação do que se chama de Brasil, em que a propriedade privada é sacralizada e o grileiro é visto como “desbravador”. O que está em disputa é como olhar para a floresta: se como propriedade privada de poucos, se como vida para todos, humanos e não humanos. O sangue nos aponta qual é o lado que está perdendo. Resta saber de que lado cada um está.
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A Amazônia não é nossa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU