17 Julho 2017
"Nós expressamos nossa opinião sobre um fenômeno", o de "uma forma estranha de ecumenismo", que une "grupos marginais de integralistas católicos e alguns grupos de fundamentalistas evangélicos" no campo político. É isso que Antonio Spadaro, S.J., um dos co-autores de "Fundamentalismo Evangélico e Integralismo Católico", um artigo que provocou muita discussão nos Estados Unidos e em outros lugares, disse à América em uma entrevista exclusiva em Roma, um dia após sua publicação.
A entrevista é de Gerard O'Connell, publicada por América, 14-07-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O artigo, que descreve "um ecumenismo do ódio", foi publicado em 13 de julho em La Civiltà Cattolica, uma revista jesuíta e italiana, de publicação bimestral, após sua aprovação pelo Vaticano. O artigo ganhou um significado especial porque foi escrito por duas pessoas próximas ao papa Francisco: o padre Spadaro, editor-chefe da La Civiltà Cattolica, e Marcelo Figueroa, leigo presbiteriano e editor da edição argentina de L'Osservatore Romano, o jornal do Vaticano.
Para entender melhor o contexto e o objetivo do artigo, e como ele deve ser interpretado, a América entrevistou o padre Spadaro em Roma.
Por que você e o seu colega, Marcelo Figueroa, coautor do artigo, decidiram focar nesse assunto? Qual o contexto que os levou a escrever sobre isso?
Eu encontro Marcelo Figueroa às vezes quando ele vem para Roma e, em geral, falamos sobre vários assuntos e trocamos opiniões sobre a situação da Igreja e a situação política no mundo. Em nosso último encontro, discutimos a situação que está sendo criada entre alguns grupos católicos integralistas com uma espécie de fundamentalismo evangélico, e percebemos que concordávamos considerando o seu ponto de vista como protestante e o meu como católico. Ele é presbiteriano, e alguns pastores presbiterianos desenvolveram essa abordagem fundamentalista.
Nós discutimos esta questão e decidimos escrever o artigo em conjunto, ele a partir da perspectiva protestante e eu, da católica.
Que questão central vocês queriam levantar com este artigo?
A questão central é a manipulação mútua entre política e religião, que é um risco que não é exclusivo dos Estados Unidos, é um risco constante. Muitas vezes, este fundamentalismo nasce ao perceber uma ameaça, de um mundo ameaçado, de um mundo que está em colapso e, por isso, responde com uma religião a partir da leitura da Bíblia transformada em uma mensagem ideológica de medo. É uma manipulação da ansiedade e da insegurança. E a Igreja, portanto, é transformada em uma espécie de seita, uma seita do puro, a opção do puro, mesmo que pequena em quantidade, que busca impor sua visão sobre a sociedade, prescindindo de qualquer forma de diálogo. É uma maneira de abandonar o que se percebe como uma cultura dominante "bárbara". Alguns chamam isso de "cristianismo autêntico". A intolerância torna-se, assim, a marca do purismo, enquanto valores evangélicos como a misericórdia não fazem parte dessa visão - que é muito conflitiva, beligerante [e] procura se impor politicamente.
Hoje, infelizmente, uma abordagem de guerra e militante parece mais atraente para determinados grupos da sociedade. Vemos o risco de uma convergência de abordagem entre grupos marginais de integralistas católicos e alguns grupos de fundamentalistas evangélicos em uma forma estranha de ecumenismo que tende a se impor até mesmo em sua maneira de se comunicar na esfera pública.
É correto dizer que sua análise da situação da Igreja Católica nos Estados Unidos é a de uma Igreja em perigo por uma abordagem fundamentalista da fé? Em que você estava baseando suas reflexões?
Como eu disse antes, existe esse risco tanto no ambiente católico como no protestante. Baseamos nossa análise desse risco no que lemos e observamos.
Você acha que sua análise refere-se principalmente aos comentaristas católicos - ou seja, à mídia -, à hierarquia ou aos fiéis?
Nossa análise é transversal. Não se refere a uma categoria específica do Povo de Deus. Mas, certamente, vemos a multiplicação de sítios, blogues e contas de Twitter que tendem a influenciar a opinião pública e reagir de forma vívida e, muitas vezes, violenta e fundamentalista. Essas realidades criam uma bolha. Claramente, não estamos nos referindo globalmente à hierarquia ou aos observadores, mas sim a algo que atravessa o povo de Deus de forma transversal. Está em todos os lugares. Não digo que seja a maioria, mas é um fenômeno que está presente na vida do povo de Deus hoje.
Esse tipo de fundamentalismo católico-evangélico é algo que permeia a Igreja e a política em outros países?
Sim. É uma ameaça que não se limita apenas aos Estados Unidos, acontece também em outros países.... É uma maneira quase nostálgica de olhar para os estados teocráticos ou, de qualquer forma, que olha a religião para consolidá-la e provoca muros e deportações que ferem. O plano teopolítico fundamental é criar um reino da divindade aqui e agora. E essa divindade é, obviamente, a projeção do poder que foi construído. Na Europa, essa ameaça é conhecida como Constantinismo, pela qual a Igreja encontra apoio na política e, vice-versa, a política encontra sua justificativa em uma teoria religiosa. É uma ameaça que está presente em vários lugares do mundo. Hoje, mais do que nunca, o poder precisa ser retirado de seu traje confessional desbotado.
Curiosamente, a partir das respostas que já recebemos ao nosso artigo, observo que as pessoas aplicaram essa teoria em outros países. Alguns mencionaram países europeus; outros, latino-americanos. Percebo que as pessoas que leram o artigo aplicaram a teoria às suas próprias situações.
A Civiltà Cattolica tem o hábito de expressar sua opinião sobre a Igreja Católica em um determinado país nessa medida?
Em fevereiro, a Civiltà Cattolica tornou-se uma revista de análise internacional publicada em cinco idiomas. É necessário, portanto, ter uma visão internacional nos níveis religioso e político. Não expressamos nossa opinião sobre a Igreja Católica em geral. Expressamos nossa opinião sobre um fenômeno e procuramos contribuir para a sua compreensão.
Então seu foco é o fenômeno e não o país?
Exatamente! Mas devo acrescentar que é tradição da Civiltà Cattolica refletir sobre fenômenos eclesiais que podem dizer respeito a vários países do mundo. Normalmente, há um artigo em cada edição sobre os vários países do mundo, do ponto de vista da política internacional e da política da Igreja em nível internacional. Faz parte da nossa tradição desde a fundação da revista, em 1850. Nesta edição, queríamos destacar um fenômeno e tentamos compreendê-lo, não enfocar um país.
Devo acrescentar que também encontramos esse risco de colusão entre Igreja e Estado na Itália. É importante reconhecer que somos todos cidadãos e não dividimos os cidadãos em crentes ou não crentes, católicos ou protestantes. O que realmente importa na vida política é reconhecer que somos todos cidadãos deste país.
Houve parcerias ou alianças de liberdade religiosa sancionadas pela Igreja entre bispos católicos e líderes evangélicos nos Estados Unidos. Você está questionando tais esforços?
Nós preferimos não nos referir a situações específicas em nosso artigo. Consideramos que as parcerias positivas entre católicos e protestantes sempre valem a pena ao unirem esforços em prol dos pobres, do cuidado com o meio ambiente, da promoção do desenvolvimento humano integral, do cuidado com imigrantes e refugiados, do cuidado da família e sua missão e da proteção e apoio à vida humana. É claro que os católicos e protestantes evangélicos são chamados a colaborar e trabalhar juntos. Nossa atenção voltou-se aos fenômenos que causaram degeneração e se baseiam em valores que parecem ser evangélicos, mas na verdade são ideológicos. Nos referimos àqueles que formam o que denominamos "o ecumenismo do ódio" em suas várias expressões.
É verdade que este artigo, como outros da Civiltà Cattolica, foi aprovado pelo Vaticano?
Sim. A revista Civiltà Cattolica é revisada por pares. Seus artigos são sempre lidos e aprovados pela Secretaria de Estado antes de serem publicados. O mesmo aconteceu com este artigo.
Algumas respostas iniciais ao artigo sugeriram que ele associa as principais alianças conservadoras políticas/religiosas (sobre questões como o aborto, a liberdade religiosa e o casamento entre pessoas do mesmo sexo) com as posições marginais extremas que descreve. Outros sugeriram que demoniza quem possa ter relação com essas posições, até por exigir um espírito de diálogo mais amplo. Como você responderia a essas críticas?
Não era nossa intenção demonizar ninguém. Destacamos o risco em determinadas situações. Não queremos demonizar os conservadores ou os progressistas nas situações que destacamos. Destacamos como alguns valores religiosos são manipulados para fins políticos. Considero essa manipulação muito arriscada, independentemente de advir dos progressistas ou dos conservadores. É problemático. Hoje vemos a manipulação da religião por setores das forças políticas ultraconservadoras em vários países. Mas afirmamos que, no campo político, as diferenças de posição não apenas são legítimas, mas também necessárias.
Ao longo de sua história, os Estados Unidos eram os únicos a aderir à doutrina da "separação da Igreja e do Estado". Nas últimas décadas, a tendência visivelmente caminhou no sentido oposto, com a religião e a política tornando-se cada vez mais entrelaçadas.
Para alguns - embora não para todos -, as opiniões religiosas é que conferem aptidão para cargos políticos. Como a Igreja vê essa tendência vexatória na vida pública? E como mantém um equilíbrio adequado ao envolver-se com o mundo e a política?
O cristianismo é chamado a ser o fermento da sociedade e, portanto, a trazer os valores cristãos na vida civil da sociedade junto com suas demais forças ativas. Os cristãos são chamados, juntamente com outras pessoas, inclusive aqueles que pensam diferente deles, a construir uma sociedade melhor. Portanto, as igrejas não são chamadas a ser instrumento da política, que não deve manipulá-las para poderem se impor no campo das políticas sociais. A Igreja pede aos políticos que se comprometam com a construção de um mundo melhor através do diálogo, trazendo seus próprios valores a este projeto e respeitando a separação fundamental entre Igreja e Estado. Portanto, ela deve procurar garantir que Deus e a religião não sejam manipulados para fins políticos.
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"O ecumenismo do ódio" nos EUA. Entrevista com Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU