Quinta-feira da Semana Santa. Comentário de Adroaldo Palaoro

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16 Abril 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Quinta-Feira Santa, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 13,1-15.

Eis o texto.

Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos” (Jo 13,5)

Jesus, durante sua vida pública, revelou uma grande liberdade ao transitar por diferentes mesas; mesas escandalosas que o faziam próximo dos pecadores, pobres e excluídos... Ele não só participou de muitas refeições, mas instituiu a grande Mesa da festa, da intimidade, da memória: a “mesa do Lava-pés e da Última Ceia”.

Ali, Ele “despojou-se do manto” (sinal de dignidade de “senhor”), pegou o avental (toalha, “ferramenta” do servo); “derramou água numa bacia...” (água derramada com extrema delicadeza, com atenção e amor); “...e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha” (Jesus inclinou-se aos pés dos seus discípulos, até o chão, com reverência, cuidado, acolhida, sem fazer distinção de ninguém; lavou os pés de todos igualmente).

Jesus está no meio das pessoas como Aquele que serve. Ele é o Senhor que assume, em tudo, a condição de servo, para servir. Troca o manto pela toalha-avental: este parece ser o distintivo fundamental, divisor de águas para seus seguidores. Não há serviço sem se despir de todas as aparências de poder, de força, de prestígio.

No lava-pés, Jesus deixa transparecer um amor que escandaliza, porque rompe todos os cânones estabelecidos. Um amor subversivo, porque subverte os critérios sociais e religiosos de seu tempo, desloca advérbios, adjetivos, nomes: acima-abaixo, dentro-fora, mais-menos, primeiros-últimos, poder-serviço, sábios-néscios, cegos-videntes, justos-pecadores, sãos-enfermos... Com sua atitude, Jesus subverte as crenças religiosas de seu tempo (centradas na lei) para reivindicar os atributos próprios de Deus em quem Ele acreditava; Ele deixa transparecer o rosto amoroso e cuidadoso do Pai.

Um amor inclusivo: não discrimina a ninguém, constitui uma comunidade de iguais, unindo em torno a si homens e mulheres, crianças e idosos... Um amor universal e preferencial: todas as pessoas cabem em seu coração, mas de um modo especial as pessoas excluídas por qualquer razão: os pobres, os enfermos, os marginalizados, os considerados pecadores, judeus e pagãos...

Um amor que se faz estremecimento das entranhas e que gera uma atitude de compaixão operativa. Um amor que, como a água pura, se “derrama” e se expande no cuidado simples, despojado, acolhedor...

Para revelar seu extremo amor, Jesus toma em suas mãos o elemento da natureza mais universal: a água. Ele “derrama água numa bacia”: gesto simples, mas carregado de significados; é símbolo de vida derramada, doada, entregue. A água dá vida, regenera, purifica, é disponível a todos; não vive para si mesma, senão para quantos dela necessitam; adapta-se a todos os tempos, recipientes e lugares. Sabe estar em jarras de barro e em vasilhas de ouro. Sabe manchar-se para que os outros estejam limpos.

Não faz distinção das criaturas: a todas molha, lava, põe frescor e beleza. A água é canção, alegria, paisagem, espelho de sonhos e poesia. Ela transforma, regenera e põe vida em toda a Criação. Ela abre os povos à comunicação, à cultura e ao encontro. Ela está sempre disponível e aberta a todos os campos, terra, plantas, animais e pessoas que dela precisam.

Na cultura hebraica, a hospitalidade exige que se ofereça água fresca ao visitante, para que lavem seus pés, a fim de assegurar a paz de seu descanso.

A Campanha da Fraternidade deste ano vem nos lembrar que no princípio eram as águas; águas que criam e re-criam o universo. Elas tomam as mais diferentes formas. Na natureza, contornam todos os obstáculos, esculpem as pedras dos rios e o fundo dos mares; elas se manifestam tranquilas nos lagos, rebeldes nas cachoeiras, abençoadas nas chuvas, sempre em movimento. “A água nunca descobrirá o que ela é. Mas, precisamente por ser água, continuará a brotar, a cantar e a lavar a terra e a buscar o mar”.

Apesar de tomarem as mais variadas formas, nem perdem sua identidade, são sempre flexíveis, maleáveis, por vezes teimosas a percorrerem seus caminhos ao encontro do mar.

Águas, dádivas divinas. Águas que matam nossa sede e nos curam; águas que nos purificam e refrescam; águas que nos descansam e nos reanimam. Águas que envolvem e acolhem a todos sem distinção; águas sem preconceitos; águas que não se recusam em umedecer territórios ressequidos, nem se espalhar em lugares sujos.

Deus cria a partir das águas. Só podemos ser co-criadores a partir das águas. Quem não cuida, não respeita e não tem uma relação de veneração e de encantamento para com as águas, não pode ser criativo.

Urge recomeçar, re-criar a partir da água, antes que seja tarde demais. No princípio era a água, mas ela também poderá chegar ao fim. O clamor das águas contaminadas de nosso tempo chega aos céus. Como profetizas, as águas consolam os cansados, saciam os sedentos, lavam os suados pelo trabalho, revigoram as forças dos desanimados, mas também as águas clamam por respeito e por justiça.

Os rios fervem o sangue de indignação contra cidades desgovernadas, empresas e pessoas poluidoras que tratam o “sangue da terra” como se fosse receptor de resíduos tóxicos. Ai de quem mata as nascentes, asfixia os mananciais e envenena os rios!

A trajetória do Povo de Deus foi marcada pela experiência com a água. Ela está relacionada com os principais eventos fundantes do povo da Bíblia: na criação, no dilúvio, na saída do Egito, na entrada da Terra Prometida, etc. Qualquer projeto bíblico só se sustenta perto de fontes de água, de rios ou cisternas.

Segundo o relato bíblico de Gen. 2,1-10.15, a terra é vocacionada para ser um jardim de Deus e o ser humano, um jardineiro. As águas foram feitas para irrigar o jardim da vida. Para os povos de regiões áridas, a primeira obra de Deus foi viabilizar a chuva sobre a terra e irrigar uma região quase desértica.

A Bíblia testemunha um mistério em torno dos poços de água. “Todo deserto contém um poço escondido” (Saint-Exupèry). Em uma região árida, cada fonte, cada olho d´água, cada poço é quase um milagre. Toda fonte é sinal forte da benção divina, um presente de seu amor.

As fontes fazem parte da promessa de Deus para o seu povo (Deut. 8,7-8).

E a Água se fez “carne” e habitou em todas as criaturas do universo. Não somos apenas filhos e filhas da água. Somos mais: somos água que sente, que canta, que pensa, que ama, que deseja, que cria... Estamos vinculados à Criação toda através da água.

Devemos nos espelhar na gestualidade de Jesus que derrama água para lavar os pés de seus discípulos.

O desafio de viver uma “ecologia integral” convoca todas as tradições humanistas e religiosas a salvarem o planeta Terra. Se a água nos trouxe à vida, o dia que ela acaba não restará nenhum ser vivente. É através da água que é possível estabelecer uma profunda unidade entre todos os seres vivos e não vivos.

Pertencemos todos à água e ela nos pertence; ela é o sangue que circula pelas veias da Criação inteira, possibilitando e recriando a vida; é ela que alimenta a interdependência entre os seres. Assim como os minerais combinam e intercambiam moléculas e cores, a água é a mediação através da qual os seres vivos compartilham suas vidas.

“Tal qual poça d´água deixemos o céu refletir em nós” (D. Hélder)

Para meditar na oração:

É preciso compreender que o gesto do “lava-pés” constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade d’aqueles que seguem Jesus e exercem algum serviço em sua comunidade. Gesto que é revelação e ensinamento, amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...

Na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”: vestir o coração com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço gratuito...

Lava-pés não é teatro, mas modo habitual de proceder e de estar no mundo.

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