19 Mai 2021
"Ambos os termos oscilam nos diferentes modos de considerar mobilidade humana. Quando o sol brilha, a imagem da liberdade abre o sorriso e os braços. Mas quando o céu escurece e a tempestade se avizinha, a estátua vira as costas a quem bate à porta, interessada apenas nos 'cidadãos com raízes na terra'”, escreve o Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM.
De acordo com a filósofa italiana Donatella Di Cesare, “a hospitalidade mostra sua perturbadora conexão com a hostilidade” (Cfr. Estrangeiros residentes, uma filosofia da migração, tradução de Cézar Tridapalli, Ed, Âyiné, Belo Horizonte, Veneza, 2020, pag. 32). Duas faces da mesma moeda. Quando há expansão socioeconômica e necessidade de mão de obra, os imigrantes costumam ser bem-vindos. A autora mostra como o monumento à Liberdade, erigido em New York, por exemplo, foi chamado de “Mãe dos exilados” pela poeta judia Emma Lazarus no soneto, escrito em 1883, gravado no pedestal da estátua: “Guarda para ti, velho mundo, a tua pompa vã” – grita com lábios mudos – “Dá-me as tuas massas cansadas, pobres e oprimidas, ansiosas por respirar livres, dá o miserável refugo de tuas margens abarrotadas. Manda a mim estes sem-teto, arremessados pela tempestade, e eu levantarei o meu farol junto à porta dourada” (Idem, pág. 21). Prevalece então hospitalidade!
Ao contrário, numa eventual “crise humanitária”, quando as taxas de desemprego e subemprego se elevam, então os migrantes são em geral rechaçados. Duplamente rechaçados: na origem, pela privação ou pela violência; no destino, pela crescente discriminação. Quando muito se lhes abre a porta dos fundos, para os serviços mais sujos e pesados, perigosos e mal remunerados.
Semelhante recusa em acolher “estrangeiro” tem se agravado com a ascensão da extrema direita ao poder em várias partes do planeta, revestida sempre de um nacionalismo populista. Daí as frases bombásticas, tais como “América para os americanos”; “Europa para os europeus”; ou “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. No caso brasileiro, o nacionalismo dá as mãos à instrumentalização do sagrado. Todo fanatismo – político, ideológico ou religioso – produz montanhas de cadáveres. A hospitalidade acolhedora cede o lugar à hostilidade.
Ambos os termos oscilam nos diferentes modos de considerar mobilidade humana. Quando o sol brilha, a imagem da liberdade abre o sorriso e os braços. Mas quando o céu escurece e a tempestade se avizinha, a estátua vira as costas a quem bate à porta, interessada apenas nos “cidadãos com raízes na terra”. Ainda de acordo com a autora, o migrante na maioria das vezes entra em rota de colisão com o tipo de estado-nação ocidental. Este último, de fato, ao mesmo tempo que se fundamenta nos direitos universais de cada ser humano, incluindo o direito de ir e vir, limita sua extensão aos nascidos no território. O sangue, o berço, o solo e a herança social, política e histórica determinam o monopólio absoluto sobre o espaço geográfico.
A crítica de Donatella a esse sistema estadocêntrico torna-se contundente: “Desde quando os Estados-nações repartiram o planeta, foi se produzindo, entre um limite e outro um 'refugo da terra', que pode ser impunemente pisoteado e que, apesar disso, não para de vir à tona e crescer. O refugo é o que sobra da terra dividida, são os sem-pátria, os sem-cidade, os refugiados, presos entre as fronteiras nacionais, que aparecem como sujeitos incômodos, corpos estranhos, seres indesejáveis. Para eles não está previsto nenhum lugar na ordem mundial. Eis que emerge um novo gênero humano: os ‘supérfluos’” (Idem, pág. 62).
De forma consciente ou inconsciente, os migrantes se batem contra a Constituição desses países. Ampla e aberta no que se refere à declaração universal dos direitos humanos, mas privadamente reservada na concessão da cidadania aos que chegam de fora e de longe. Em tal perspectiva, “o migrante desmascara o Estado. Da margem externa, interroga o seu fundamento, aponta o dedo contra a discriminação, relembra o estado de sua constituição histórica, descrê de sua pureza mítica. E por isso obriga-o a repensar-se. Nesse sentido, a migração traz consigo uma carga subversiva” (Idem, pág. 28). Tende a questionar os limites arbitrariamente desenhados, ao mesmo tempo que supera o território pátrio desta ou daquela nação. Seu sonho é ultrapassar as fronteiras – com o objetivo de encontrar alhures o que lhe nega a terra natal. “Na cidade dos estrangeiros, a cidadania coincide com a hospitalidade” (Idem, pág. 16).
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Hospitalidade e hostilidade no campo das migrações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU