"Jesus não nega os seus irmãos, tampouco sua mãe. Isso não era possível na cultura judaica. Irmão aqui quer dizer aquele que assume a causa do reino. Os irmãos de Jesus somos todos nós, seus seguidores. Maria foi a sua educadora e primeira apóstola. Ele lhe mostrou o caminho da fé, e ela o da vida, ao educá-lo", diz Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Evangelho de Mateus 12:46-50.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
O evangelho sobre o qual vamos refletir hoje é Mt 12,46-50. Trata-se da família de Jesus. O texto não fala de José, pois, segundo a tradição apócrifa do livro “História de José, o Carpinteiro” (sec. II-V E.C.), ele morreu quando Jesus completou 18 anos. A família, naquele momento, se resumia à mãe e a seus irmãos. Irmãos? Jesus teve irmãos? Podemos afirmar isso, se Maria só gerou, por obra do Espírito Santo, o primogênito Jesus? Por que Jesus agiu de forma dura com a sua família de sangue? Eles simplesmente queriam falar com ele. Qual a relação desse texto com Nossa Senhora do Carmo?
Vamos começar a nossa reflexão fazendo referência a Nossa Senhora do Carmo, visto que o evangelho escolhido tem relação com o dia dedicado a ela, 16 de julho. Essa devoção medieval chegou até nós pelos frades carmelitas. Carmo é o mesmo que Carmelo, que em hebraico significa ‘vinha de Deus”, um belo monte localizado no norte de Israel/Palestina. Ali atuou o profeta Elias em nome de Deus e contra os profetas de Baal (1Rs 18,20-40). Fez chover, buscando, com o côncavo das mãos, nuvens de chuva sobre o monte (1Rs18,41-46).
O Carmelo é também o lugar de uma das aparições de Nossa Senhora ao monge Simão Stock (1165-1265 E.C.), superior dos carmelitas, que a invocava pedindo ajuda. A tradição diz que Maria lhe entregou um escapulário, um pedaço de pano que cobre o peito e as costas, uma armadura de proteção, que, mais tarde, se tornou o hábito dos carmelitas. O fato de ele ser de pano tem também relação com a túnica de Jesus, confeccionada por Maria. Ao oferecer a Simão o escapulário, Maria o faz com a promessa de que quem morresse usando-o, tendo cumprido os deveres de cristão, sairia, com a sua ajuda, do Purgatório no primeiro sábado depois de sua morte. Santa Brígida (1303-1373) relata que Nossa Senhora disse a Simão Stock: “Todo aquele que morrer revestido deste santo escapulário não arderá nas chamas do Inferno. Este hábito é um sinal de salvação, um amparo nos perigos e uma segurança de paz e aliança eterna”. [1]
Na época, havia um medo generalizado das ciladas do demônio na hora da morte. O pavor de todos era morrer e perder o céu, indo direto para o inferno, sem passar pelo Purgatório, a antecâmara do Inferno. Maria, como advogada, surge para ajudar as almas a se livrarem do Purgatório.[2] Maria apareceria ao moribundo antes de morrer e o recordaria da confissão para receber o perdão dos pecados. Qual o sentido do uso do escapulário em nossos dias? Mantendo a pergunta, voltemos ao evangelho.
Jesus falava para as multidões e sua mãe e irmãos desejavam falar com ele. Ele foi avisado e sua resposta ao interlocutor foi contundente: “Meus irmãos são meus discípulos, os que fazem a vontade de meu Pai que está no céu” (Mt 12,50). Diante da missão de Jesus, os laços familiares são relativos. O que une as pessoas a Ele é o fazer a vontade de Deus, assim como fizeram os apóstolos ao deixarem o mar, a profissão e os entraves do judaísmo. Para se tornar discípulo é preciso fazer ruptura.
A resposta de Jesus, dura em um primeiro momento, teve várias repercussões entre os intérpretes desse texto. Irmão, em hebraico ah (אָח), significa irmão de sangue, mas também parentes próximos, patrícios e vizinhos. São Jerônimo dirá que no evangelho trata-se de primos de Jesus. Os evangelhos apócrifos conservaram a tradição de que José, ao ser escolhido para se casar com Maria, era viúvo, tinha 90 anos e quatro filhos: Judas, Justo, Tiago e Simeão; e duas filhas: Lísia e Lídia.[3] Quando Maria chegou à casa de José, também narram os apócrifos da infância, ela logo se afeiçoou a Tiago, o filho menor de José, que ainda sofria a ausência da mãe. Maria cuidou dele como mãe. Sendo assim, os irmãos de Jesus são de criação.
Jesus não nega os seus irmãos, tampouco sua mãe. Isso não era possível na cultura judaica. Irmão aqui quer dizer aquele que assume a causa do reino. Os irmãos de Jesus somos todos nós, seus seguidores. Maria foi a sua educadora e primeira apóstola. Ele lhe mostrou o caminho da fé, e ela o da vida, ao educá-lo.
Como Senhora do Carmo e tantas outras denominações, Maria continua nos mostrando o caminho, nos oferecendo escapulários, armaduras, de defesa contra os males que nos afligem: injustiças sociais, desgovernos, fome, miséria, epidemias etc. sendo solidário no sofrimento e na transformação da nossa realidade. Desse modo, seremos todos mãe e irmãos de Jesus na vivência do reino e na proteção do Pai.
[1] CORNAGLIOTTO, João Batista. Thesouro do christão. 8. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1889. p. 402, apud ESCAPULÁRIO DO CARMO. In: VAN DER POEL, Dicionário da religiosidade popular, p. 367.
[2] FARIA, Jacir de Freitas. O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 140.
[3] FARIA, Jacir de Freitas. Infância apócrifa do menino Jesus: Histórias de ternura e de travessuras. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 22.