28 Novembro 2018
Ao registrar com realismo ação bizarra do Congresso Nacional, documentário de Douglas Duarte conflui de modo espantoso com recente produção de filmes de terror brasileiros…
O comentário é de Antonio Martins, jornalista, publicado por Outras Palavras, 25-11-2018.
Antes de falar do documentário Excelentíssimos, de Douglas Duarte, cabe observar uma curiosa e improvável confluência, na produção cinematográfica brasileira recente, entre dois gêneros aparentemente disparatados: o documentário político e o filme de horror. Eu explico.
A par de um florescente cinema de terror que manuseia as convenções do gênero para abordar as fraturas sociais e raciais do país (As boas maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra; O diabo mora aqui, de Dante Vescio e Rodrigo Gasparini; Animal político e Em nome do pai, de Gabriela Almeida; O nó do diabo, de Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé e Gabriel Martins; Mormaço, de Marina Meliande), tem surgido um punhado de documentários que se debruçam sobre o circo de horrores da política brasileira dos últimos anos.
Exemplos dessa vertente horripilante são O processo, de Maria Augusta Ramos, sobre o julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff no Senado; Bloqueio, de Victória Álvares e Quentin Delaroche, sobre a paralisação dos caminhoneiros; Intervenção, de Rubens Rewald, Tales Ab’Saber e Gustavo Aranda, sobre a proliferação dos discursos de ódio no país; Entre os homens de bem, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, sobre a atuação parlamentar do deputado Jean Wyllys; e agora Excelentíssimos, centrado na instauração do processo de impeachment e seu avanço na Câmara dos Deputados.
De certo modo, o documentário de Douglas Duarte complementa O processo, não só porque cronologicamente termina onde este começa (a votação do impeachment na Câmara), mas também porque tem acesso privilegiado às ações e articulações dos parlamentares que promoveram e apoiaram a destituição de Dilma, enquanto o filme de Maria Augusta Ramos ficava basicamente restrito aos bastidores da defesa da presidente.
Esse acesso ao “lado de lá”, esse mergulho nas entranhas da nossa chamada “classe política”, equivale a uma expedição ao coração das trevas. Em suas duas horas e meia de duração, o documentário registra um pouco de tudo: discursos inflamados e delirantes, troca de agressões verbais e físicas, cultos evangélicos, tapinhas nas costas, cochichos ao pé do ouvido, dancinhas zombeteiras, cidadãos de idade avançada enchendo balõezinhos com a figura de Lula presidiário etc.
Numa visão ingênua e superficial, pareceria que a câmera de Douglas Duarte se limitou a registrar o que encontrou pela frente. As primeiras imagens já induzem a essa sensação: uma câmera na mão extremamente instável procura em meio a um alvoroço de pessoas o seu objeto e o seu foco: a presidente Dilma, saindo a pé do palácio e sendo assediada por jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas. A escassa locução em off, que só intervém para contextualizar as imagens com algumas informações jornalísticas, reforçaria a falsa impressão de passividade ou neutralidade diante dos “fatos”.
Claro que não é nada disso. A intervenção do diretor se dá não apenas na escolha e ordenação das cenas, mas também no interior das próprias imagens, em sua relação com a trilha sonora, em seu ritmo. Um exemplo: durante um discurso de Michel Temer há um zoom extremo, em que só vemos parte do rosto e as melífluas mãos do então quase-presidente. Com esse recorte, a fala de Temer – que àquela altura todo mundo viu pela televisão – se tinge de um tom derrisório e autoirônico.
Em outro momento, depois de discursar para apoiadores e ser ovacionado numa sala do Congresso, o então deputado Jair Bolsonaro é filmado de baixo para cima, com a mão no peito e semblante compenetrado, sob os primeiros acordes do hino nacional. Segue-se um longo fade-out, isto é, a tela fica preta por vários segundos. Observação: o filme foi finalizado em abril, quando o ex-capitão ainda era apenas candidato à presidência.
Outras passagens são marcadas por alteração do ritmo (câmera lenta, no mais das vezes), por distorções do som, pela introdução abrupta do silêncio etc. – maneiras não verbais de comentar criticamente o objeto retratado. Tais intervenções, contudo, se dão dentro de certos limites de respeito à integridade do real, evitando a caricatura fácil e a piada vulgar. Em geral a desmoralização é empreendida pelos próprios excelentíssimos retratados (tornando mais evidente a ironia do título escolhido).
Às vezes é a mera montagem que faz os planos colidirem de modo a encenar o confronto político em questão. Por exemplo, durante a votação do impeachment, enquanto um deputado justifica seu voto pela deposição da presidente, vemos a plateia diante de um telão que transmite a sessão e uma moça que xinga o parlamentar de tudo quanto é nome, acusando-o de uma série de crimes. E não terá sido casual que a última imagem do documentário seja de Lula, discursando para uma multidão. O ex-presidente foi preso na mesma época em que o filme estava sendo finalizado.
Apesar da posição clara (contra o impeachment) assumida pela direção, o documentário não pode ser acusado de esconder as inconsistências dos defensores da presidente. No caso mais dramático, um dirigente da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) é mostrado, primeiro, num discurso inflamado de apoio a Dilma, ameaçando invadir propriedades dos parlamentares das bancadas do boi e da bala. Depois, aparece calado e murcho quando confrontado pelos mesmos parlamentares numa CPI. A mudança de cenário altera os discursos e as correlações de força. A corda estoura do lado mais fraco.
No terreno da ficção, o lançamento mais importante da semana é, sem dúvida, o divertido e contundente Infiltrado na Klan, de Spike Lee, que comentei quando foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Acrescento apenas uma informação que deixei passar então: a de que o ótimo John David Washington, que encarna o policial negro infiltrado na Klu Klux Klan, Ron Stallworth, é filho do grande Denzel Washington, astro de vários filmes do próprio Spike Lee.
Outra estreia interessante é a do longa brasileiro A voz do silêncio, de André Ristum. Narrativa coral, apresentando em paralelo os dramas de vários personagens que eventualmente se cruzam, o filme lembra em sua estrutura obras como Short cuts, de Robert Altman, Magnolia, de Paul Thomas Anderson, e Crash: no limite, de Paul Haggis. Ainda que fique aquém de todas elas (especialmente das duas primeiras), tem o interesse adicional de revelar em suas beiradas algumas feridas da sociedade brasileira atual (desemprego, racismo, machismo, ódio de classe), além de transformar a cidade de São Paulo em personagem.
A acentuar a semelhança com os filmes citados, há um evento natural extraordinário que sintoniza as várias histórias, dotando-as de um fundo cósmico comum: um singular eclipse lunar, que faz as vezes aqui do terremoto de Short cuts e da fantástica chuva de sapos de Magnólia. Com todas as suas possíveis insuficiências, A voz do silêncio faz o básico: apresenta bons personagens em momentos de crise e mostra competência na articulação de seus pequenos e grandes dramas. E o elenco em geral é muito bom.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Excelentíssimos e a hora do pesadelo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU