04 Outubro 2018
Professora da Unifesp pesquisa há dois anos a ascensão da extrema direita no Brasil. Segundo ela, mesmo que o capitão do Exército não seja eleito, novo presidente terá que lidar com 'bolsonarização' da esfera pública.
A socióloga Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pesquisa há dois anos a ascensão da extrema direita no Brasil. Atualmente, ela se dedica a entrevistar eleitores que votaram em Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff para presidente e vão escolher o nome de Jair Bolsonaro (PSL) na urna neste domingo (07/10).
Em entrevista à DW, Solano diz que esse grupo de eleitores vê coerência entre os votos nos dois petistas e, agora, no capitão reformado do Exército. Nos três casos, eles buscavam "alguém forte que bote ordem na casa" e apoiaram um candidato que se mostrava "honesto e diferente" do político tradicional. Alguns escolheram Lula por ser um nome antissistema, e hoje votam em Bolsonaro pelo mesmo motivo.
Outro fator que leva ex-eleitores do PT para a base de Bolsonaro é uma "reelaboração da memória" dos anos dos governos Lula e Dilma, diz Solano. Em sua pesquisa, ela encontra pessoas que ascenderam socialmente com o apoio de programas federais e hoje creditam seu sucesso apenas ao esforço individual. A imagem do PT como "o partido mais corrupto do Brasil" completa a migração do voto para o militar.
Solano identifica ainda outro movimento paralelo que fortaleceu Bolsonaro: a reação de setores contrários ao crescimento de pautas identitárias na sociedade, como feminismo, movimento negro e diversidade sexual. "Isso criou confusão e medo na cabeça do conservador, como se estivesse faltando ordem, e a reação passa pela violência e pelo clamor por mais ordem", diz.
Solano foi a Berlim no final de setembro debater a ascensão da extrema direita no Brasil, em evento organizado pela fundação Friedrich-Ebert, vinculada ao partido alemão SPD, que financiou um de seus estudos sobre o tema.
A entrevista é de Bruno Lupion, publicada por Deutsche Welle, 03-10-2018.
Você está realizando uma pesquisa com eleitores que já votaram em Lula e Dilma para presidente e que agora vão votar em Bolsonaro. Que características tem encontrado nesse grupo?
Há uma visão personalista da política, a busca por alguém forte que bote ordem na casa, o "grande pai" que vai proteger. Também há o apelo do líder carismático, que se apresenta como uma figura honesta e diferente. E há pessoas que no passado votaram no Lula como um voto de rebeldia, antissistema, e agora votarão no Bolsonaro pelo mesmo motivo.
Além disso, há nesse grupo eleitores que compraram a ideia de que o PT é o partido mais corrupto do Brasil. E pessoas que foram beneficiadas por programas dos governos do PT que aumentaram seu poder de consumo e trabalho, mas que agora fazem uma reelaboração da memória. Se enquadram na nova classe média, adotam um discurso mais conservador e dizem que não foram beneficiados por programas federais, mas pela lógica da meritocracia e do esforço.
Por que Bolsonaro atraiu o voto que ia para outros partidos de direita e centro direita?
A polarização se dava tradicionalmente em torno do PT e do PSDB. Depois do impeachment, o PSDB teve a sensação de que sairia vitorioso, mas acabou engolido pela própria própria dinâmica de apoio ao impeachment. Houve uma fratura social, uma fragilização da ordem democrática e uma postura cada vez maior de negação da política, e o PSDB perdeu esse lugar prioritário.
Você vê pessoas da direita e da centro direita se radicalizando, e o PSDB passa a ser considerado um partido tradicional, corrupto e fisiológico. Há um esvaziamento dessa direita democrática, próxima do centro, e uma migração dos seus votos para a nova extrema direita. Uma tarefa prioritária agora seria reorganizar o campo da centro direita democrática, justamente para bloquear a extrema direita antidemocrática.
Você identifica uma rebeldia por trás do voto em Bolsonaro. De onde vem isso?
Há uma rebeldia não só no voto do jovem, mas também do adulto. É uma rebeldia no sentido de um voto antissistema, em alguém não caracterizado como político tradicional. Vem da frustração, do cansaço, do desabafo, da negação da política. Um voto que, ao invés de procurar saídas mais democráticas, aprofunda redes autoritárias.
É a ideia de que tem que mudar algo. Mas, se a mudança não vem de forma progressiva, no coletivo, vende-se uma mudança por fora, com uma liderança que muda as coisas individualmente, algo messiânico.
A alta de Bolsonaro está relacionada à memória da ditadura militar?
Sim. O Bolsonaro usa uma retórica militar, há uma tentativa de recuperar a imagem da ditadura como uma época boa que vale a pena ser retomada. Isso está relacionado à falta, no Brasil, de um fechamento desse período, como houve na Argentina que julgou e puniu culpados da ditadura e recuperou sua memória. O campo democrático não conseguiu fazer essa transição bem-feita, e agora a extrema direita recupera a ditadura como um período bom, no qual havia autoridade e ordem.
O crescimento da extrema direita foi iniciado durante as gestões Lula e Dilma. Os governos do PT cometeram erros que favoreceram esse fenômeno?
A extrema direita se fortalece em alguns déficits dos governos democráticos anteriores — e não falo só dos governos do PT, mas dos governos prévios também. O primeiro é a segurança pública. O Bolsonaro se fortalece nesse vazio, como ninguém conseguiu de fato resolver a questão da segurança, ele vem com soluções simples e demagogas. Outro ponto é a corrupção. A ética na política era uma bandeira tradicional da esquerda, mas ela a perdeu e não conseguiu retomá-la, e a ideia do combate à corrupção ficou nas mãos da direita moralista e punitiva. Além disso, sobretudo no período do governo Lula, o PT se fixou na ideia da inserção pelo consumo e não apostou tanto na questão da cidadania, na politização da sociedade.
Esse crescimento também decorre de avanços do campo progressista?
Sim, há uma reação violenta à ascensão das camadas mais pobres, e uma reação aos chamados grupos identitários, como a luta feminista, o movimento negro e o movimento LGBT, que penetraram no campo social nos últimos anos. Isso criou confusão e medo na cabeça do conservador, como se estivesse faltando ordem, e a reação passa pela violência e pelo clamor por mais ordem.
Você já afirmou que, mesmo que Bolsonaro não seja eleito, o próximo presidente terá que lidar com a 'bolsonarização' da vida pública. Como essa questão deve ser tratada?
Bolsonaro populariza o discurso de ódio e da intolerância. Por isso, a pacificação social talvez seja o maior desafio do próximo presidente, caso Bolsonaro não seja eleito. Essa ideia de uma reunificação, de que o próximo presidente será presidente de todo mundo. Mas há também um aspecto positivo. Eu vejo na sociedade brasileira uma exaustão dessa fratura e dessa intolerância, as pessoas querendo recuperar a vida cotidiana. Esse cansaço talvez abra uma janela de oportunidade para a pacificação.
Como o público evangélico interage com a ascensão de Bolsonaro?
O Bolsonaro é o candidato a presidente que mais se beneficia do voto evangélico, chega a metade das intenções de voto, porque é um candidato que mobiliza a retórica dos valores cristãos, da família, dos princípios morais. E o [Fernando] Haddad (PT) é o candidato que menos se beneficia do voto evangélico, é demonizado pela visão moralista da política.
Como você analisa o desempenho de Bolsonaro frente à ascensão da extrema direita em outros países?
Ha semelhanças. Vivemos um momento de ascensão da extrema direita no mundo, de frustração generalizada com a política e de fragilidade social. A onda de extrema direita captura esse sentimento de angústia. E há diferenças. Nos Estados Unidos e na Europa se usa muito a figura no inimigo externo: o imigrante, o refugiado, o latino, o muçulmano. No Brasil, a extrema direita não se construiu na retórica do inimigo externo, mas sobretudo na do inimigo interno: o jovem negro, o político de esquerda, o acadêmico, a feminista. Essa ideia de que a ameaça vem de dentro.
Mas a consequência da política da extrema direita no Brasil é ainda pior, pois é um país violento, que mata muita gente, 60 mil mortos por ano, racista, LGBT-fóbico. Já é um país onde se mata muito as minorias políticas.
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Por que há ex-eleitores de Lula que votam em Bolsonaro? Entrevista com Esther Solano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU