25 Setembro 2018
Um caminhão-baú do Serviço Médico Legal do Estado mexicano de Jalisco com centenas de corpos abandonados na segunda maior cidade do México ilustra o colapso das instituições na pior onda de violência da história do país.
A reportagem é de David Marcial Pérez, publicada por El País, 24-09-2018.
Naquela tarde, o cigarro de maconha pareceu estranho para Martin Alonso. "Estava dando a primeira tragada e até o aroma forte do fumo havia mudado. Eu disse, ‘quem peidou?’ E acontece que da rua vinha um cheiro bem fedorento.” Para não incomodar a filha de três anos, Alonso, de 30 anos, tinha saído para fumar na porta de casa, um casebre em ruínas como o da maioria de seus vizinhos. Estranhando o mau cheiro, ele deixou o baseado e seguiu o rastro da fedentina.
"Primeiro diziam que tinham matado alguns porcos, mas eu já conhecia mais ou menos o cheiro de quando alguns amigos foram cortados em pedacinhos e jogados também por ali." Naquela tarde, em 14 de setembro, um caminhão-baú com 273 corpos havia estacionado lá, atrás de sua casa, entre o entulho e o terreno de alguns agricultores. E lá ficou até o dia seguinte. De manhã, Alonso voltou a se achegar ao local e um fio vermelho escorria pela porta metálica, manchando de sangue a silenciosa plantação de milho.
Que lugar melhor para se desfazer de um caminhão com 273 cadáveres em Guadalajara, a segunda maior cidade do México, do que uma das áreas mais brutas da periferia? Que lugar melhor do que Tlajomulco, o bairro cujas estatísticas dizem que 70% vivem na pobreza e marginalizados, e onde os moradores falam que é normal encontrar corpos esquartejados colocados em sacos de lixo?
Isso devem ter pensado Luis Octavio Cotero, diretor do Serviço Médico Legal de Jalisco, e Raúl Sánchez Jiménez, procurador geral do Estado, os dois cérebros da operação, de acordo com a versão oficial, demitidos pelo governador ao longo desta semana. Que lugar melhor do que a miséria para esconder mais miséria?
"Eles não são lixo. Têm nome!", "Eles não são gado que vão em caminhões ao açougue!", gritaram na sexta-feira às portas do Serviço Médico Legal grupos de parentes de desaparecidos de vários Estados: Veracruz, Querétaro, Nayarit. Segundo dados oficiais, apenas em Jalisco existem 3.362 desaparecidos. Em todo o México, 36.265. Segundo os parentes, muitos mais.
"Quando vimos os caminhões com tantos corpos amontoados em sacos de lixo, todas as mães da república pensaram que nossos filhos poderiam estar lá", explica Beatriz Torres, que viajou quase mil quilômetros da capital de Veracruz para chegar até aqui. De costa a costa procurando pelo filho.
A onda de violência que sacode o México se espalhou para áreas antes consideradas oásis, reproduzindo na capital de Jalisco imagens mais típicas de territórios vermelhos como Tamaulipas ou Guerrero: necrotérios saturados de corpos a ponto de terem que guardá-los em caminhões refrigerados como se fossem gado. Instituições em colapso que não cumprem os protocolos de registro e identificação do morto. E que em última instância, e de forma irregular, são retirados do necrotério, para que seja encontrado outro lugar para armazená-los.
O Serviço Médico Legal de Jalisco (Semefo, na sigla em espanhol) tem capacidade para 170 corpos. Hoje são 444 distribuídos entre a câmara frigorífica de suas instalações e dois caminhões extras, alugados há um ano e meio. Alguns corpos têm mais de dois anos. Apenas 60 estão devidamente registrados e identificados.
A viagem dos 273 cadáveres espremidos no baú do caminhão parece ter sido extraída de uma das histórias sarcásticas, delirantes e didáticas do escritor mexicano Jorge Ibargüengoitia. Em 31 de agosto, o caminhão deixou o estacionamento do Semefo rumou a um depósito em Tlaquepaque, outra área metropolitana da cidade. Os vizinhos reclamaram do cheiro e a prefeita ordenou o fechamento do depósito. Era a manhã de 14 de setembro e o passeio dos cadáveres havia acabado de começar.
Levaram o caminhão até as instalações da Procuradoria, mas era muito grande e ao entrar ficou entalado na porta da garagem. Chamaram alguns operários para limarem o teto. Quando estavam trabalhando, começou a chover. Pararam por causa do risco de morrerem eletrocutados. Então, ocorreu ao motorista que eles poderiam guardá-lo em um terreno baldio do proprietário do caminhão. No trajeto, voltou a ficar atolado, desta vez em um trecho de estrada de chão em Tlajomulco, atrás das casas em ruínas, ao lado do campo de milho.
Tentaram tirá-lo da lama, mas não conseguiram e decidiram abandoná-lo. Ainda por cima, o diretor do Instituto Médico Legal que foi demitido está com a filha desaparecida há dois meses e acusou o secretário do Governo de "condutas não muito honestas". "Vou ter que andar com cuidado", disse esta semana em uma entrevista no rádio, "para que nada mais aconteça comigo ou alguém da minha família".
Letícia Vázquez, outra das mães que clamam por justiça e dignidade, perdeu a filha em novembro de 2014 nas praias de Puerto Vallarta: "O caso passou por cinco Ministérios Públicos, dois delegados do Governo e quatro promotores. Quanto tempo mais vamos esperar?" Depois do escândalo, o Governo estadual se comprometeu a comprar uma nova câmara frigorífica com 300 lugares e a registrar todos os corpos antes de novembro, apenas um mês antes do final de seu mandato.
Guadalajara, o segundo motor econômico do México, o outro Vale do Silício, ao sul da Califórnia, onde aterrissaram gigantes como Cisco, HP, Intel e Tesla e onde todos os anos é realizada a maior feira de livros do mundo em espanhol, é também um lugar em que o poder do crime organizado é capaz de derrubar um helicóptero do Exército com tiros de canhão, pôr em xeque o centro da cidade bloqueando ao mesmo tempo 39 vias ou planejar uma emboscada contra um ex-procurador em plena luz do dia na saída de um restaurante da moda.
Guadalajara, a nave-mãe durante os anos 80 da primeira organização criminosa que reuniu os principais chefes responsáveis pela abertura das portas do México à cocaína colombiana, é hoje o berço de um novo cartel. O mais poderoso e o que mais cresceu após o declínio das máfias clássicas: Jalisco Nova Geração.
“A onda de violência nos sobrepujou”, reconhecia na quinta-feira o governador Aristóteles Sandoval (do PRI), dando palavras aos números: os assassinatos deixaram 224 vítimas em agosto, mais de sete por dia, uma morte violenta a cada três horas. A cifra acumulada até agora neste ano chega a 1.468, beirando o total de todo 2017, ano que bateu todos os recordes sangrentos da história recente do México. Mais mortes do que nos piores tempos da chamada guerra contra as drogas.
A ascensão do Jalisco Nova Geração ocorreu paralelamente aos anos de Governo do PRI no Estado. Em 2012, eram apenas uma cisão do cartel de Sinaloa. Em todo o atual governo, tem sido constante o embate entre os narcotraficantes e o Estado, que em maio lhes assestou um duro golpe com a detenção quase simultânea de dois de seus líderes. Em dois meses, assumirá o novo governo, de Enrique Alfaro, ex-prefeito de Guadalajara, pelo progressista Movimento dos Cidadãos. O próximo governador não quis dar entrevistas para esta reportagem. No atual Governo lhe dão um conselho: "Vai precisar de muita ajuda federal, apenas com a força do Estado não podemos contê-los".
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México. A insólita viagem de 273 cadáveres por Guadalajara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU