04 Março 2018
“As intervenções [militares] são sumamente exitosas para se atingir os objetivos não confessáveis das classes dominantes e seus governos: o controle e extermínio da população potencialmente rebelde ou não integrável. Esta é a razão que move a militarizar países inteiros na América Latina, sem tocar na desigualdade, que é a causa de fundo da violência”, escreve o jornalista e analista político uruguaio Raúl Zibechi, em artigo publicado por La Jornada, 02-03-2018. A tradução é do Cepat.
O governo de Michel Temer entregou a segurança do Rio de Janeiro às forças armadas, no último dia 16 de fevereiro. Corporações policiais, bombeiros e prisões passaram a ser administrados pelos militares. A escusa, como sempre, é a violência e o narcotráfico, que existem e são enormemente perigosos para a população. O Rio é uma das cidades mais violentas do mundo. Em 2017, houve 6.731 mortos e 16 tiroteios diários, com um saldo mínimo de duas pessoas mortas em cada um, quase sempre negros. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 19 são brasileiras e 43 latino-americanas. Em paralelo, o Brasil está entre os 10 países mais desiguais do mundo, alguns deles também os mais violentos, como Haiti, Colômbia, Honduras, Panamá e México.
No caso do Rio de Janeiro, a atuação dos uniformizados tem uma característica especial: foca-se nas favelas, ou seja, vai contra a população pobre, negra e jovem. Nas 750 favelas do Rio vivem 1,5 dos 6 milhões de habitantes da cidade. Os militares se colocam nas saídas e fotografam todas as pessoas, solicitam-lhes documentos e confirmam sua identidade. Nunca havia sido feito este tipo de controle de forma tão massiva e tão específica.
Não é a primeira vez que os militares se encarregam da ordem pública no Brasil. No Rio, os militares intervieram 11 vezes no ano anterior, no contexto das missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), uma legislação que foi aplicada em grandes atividades como as visitas do Papa e o Mundial de Futebol. Desde 2008, em 14 ocasiões, assumiram funções de polícia. No entanto, agora se trata de uma ocupação militar que abarca todo o estado. Muitos analistas enfatizaram que a intervenção está destinada ao fracasso, já que as anteriores, ainda que sendo pontuais, não conseguiram grande coisa. Acrescentam o fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que em seu momento foram glorificadas como a grande solução ao problema da insegurança, já que se instalavam nas próprias favelas, como uma polícia de proximidade.
Em paralelo, os analistas recordam que a guerra contra as drogas no México é um fracasso estrondoso, que até o momento foi saldado com mais de 200.000 mortos e 30.000 desaparecidos, ao passo que o narcotráfico está longe de ter sido derrotado e se fortaleceu.
No entanto, acredito que seria necessário destacar que estas leituras são parciais, porque na realidade estas intervenções são sumamente exitosas para se atingir os objetivos não confessáveis das classes dominantes e seus governos: o controle e extermínio da população potencialmente rebelde ou não integrável. Esta é a razão que move a militarizar países inteiros na América Latina, sem tocar na desigualdade, que é a causa de fundo da violência.
Penso que há quatro razões que dão margem à impressão de que estamos diante de intervenções sumamente exitosas no Brasil, mas também na América Central, México e Colômbia, para citar os casos mais evidentes.
A primeira é que a militarização da segurança consegue revestir o Estado como o garantidor dos interesses do 1% mais rico, das grandes multinacionais, dos aparatos estatais armados e dos governos. Cabe se perguntar por que é necessário, neste período da história, proteger a esses setores. A resposta: porque dois terços da população está na intempérie, sem direitos sociais, à custa da acumulação por espoliação/quarta guerra mundial.
O sistema não oferece nada às maiorias negras (51% no Brasil), indígenas e mestiças. Só pobreza e péssimos serviços de saúde, educação e transporte. Não lhes oferece emprego digno, nem remunerações adequadas, empurra-os ao subemprego e a mal denominada informalidade. Em longo prazo, uma população que não recebe nada ou quase nada do sistema é chamada a se rebelar. Por isso militarizam, tarefa que estão cumprindo de forma exitosa, nesse momento.
A segunda é que a militarização, em escala macro, é complementada com um controle cada vez mais refinado, que apela às novas tecnologias para vigiar de perto e por dentro as comunidades que considera perigosas. Não pode ser por acaso que em todos os países são os mais pobres, ou seja, aqueles que podem desestabilizar o sistema, os que estão sendo controlados de modo mais implacável.
Apenas um exemplo. Quando doaram lâminas para as moradias em Chiapas, cuidaram de pintá-las para que de cima pudessem identificar as famílias não zapatistas. As políticas sociais que os progressistas enaltecem fazem parte desses modos de controle que nos fatos funcionam como métodos de contrassubversão.
A terceira questão é que o duplo controle, macro e micro, geral e singular, está sujeitando as sociedades em todo o mundo. Na Europa, são multas ou prisão para aqueles que abandonam o script. Na América Latina, é a morte e o desaparecimento para aqueles que se rebelam ou, simplesmente, aos que denunciam e se mobilizam. Já não se reprime só aqueles que se levantam com armas, como nos anos 1960 e 1970, mas toda a população.
Esta mudança nos modos de controle, isolando e sujeitando aqueles que podem se tornar rebeldes, ou não obedientes, é uma das mudanças mais notáveis que o sistema está aplicando neste período de caos, que pode acabar com o capitalismo e a dominação do 1%.
A quarta são perguntas. O que quer dizer governar quando estamos diante de formas de controle que só aceitam o voto a cada quatro, cinco ou seis anos? Qual a utilidade de se colocar todo o empenho político nas urnas, se fraudam e se consolidam com os militares na rua, como acontece em Honduras? Não digo que não se deva votar. Pergunto-me para quê.
Trata-se de seguir refletindo nossas estratégias. O Estado é uma hidra monstruosa a serviço do 1%. Isso não mudaria se chegássemos ao leme de direção, porque no topo da pirâmide seguirão os mesmos, com todo o poder para nos despejar quando considerarem conveniente.
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Brasil nas pegadas do México. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU