23 Abril 2018
“Em 1968, o episcopado brasileiro vivia sob a égide de quatro “conceitos” que o remetia para o futuro: renovação eclesial (fruto do Vaticano II), planejamento pastoral (Plano de Pastoral), reformas de base e desenvolvimentismo. Apesar do anticomunismo – e, por isso, agradeceram aos militares pela heroica ação de livrar o Brasil do risco comunista – já havia muita sensibilidade para uma “opção pelos pobres”, especialmente vindo do grupo dos bispos nordestinos”, escreve Sérgio Ricardo Coutinho, doutor em História pela UFG, professor do Departamento de História das Faculdades Integradas UPIS-DF e de História da Igreja no Instituto São Boaventura (ISB-DF).
Segundo ele, “em 2018, a maioria dos bispos vive ainda muito impactado com o pontificado “radical” do Papa Francisco. Poucos aderiram ao seu projeto de reforma e preferem o passado. Uma boa maioria ainda espera viver os “anos gloriosos” da época de João Paulo II e Bento XVI e sem nostalgia nenhuma da “CNBB profética” dos anos 1970. E do ponto de vista político, estes mesmos agradecem à Deus pelo fim da hegemonia “petista” e esperam que as eleições confirmem um governo de “centro” ou “centro-direita”.
Em 1968, a CNBB realizava, no mês de julho, sua IXª Assembleia Geral. Naquele “ano que não terminou” (Zuenir Ventura), o Brasil convivia com um Golpe civil-militar há 4 anos e que já dava sinais evidentes de endurecimento repressivo frente ao aumento da resistência de vários setores da sociedade.
Cinquenta anos depois, quando comemora seus 65 anos, a CNBB realizou a 56ª Assembleia Geral, em uma conjuntura de grave crise da democracia após um Golpe parlamentar-judiciário-midiático que destituiu a presidente Dilma Rousseff (2016) e com desdobramentos políticos que colocam ainda em risco as eleições do final deste ano de 2018.
Só para lembrar alguns eventos antes da Assembleia da CNBB de 1968:
1) Março: o estudante Edson Luís de Lima Souto, de 16 anos, é morto com um tiro no peito durante um conflito de estudantes com a Polícia Militar no restaurante Calabouço, no prédio da UNE, no Rio de Janeiro;
2) Abril: O ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, assina um ato, proibindo o funcionamento da Frente Ampla, movimento político; um atentado a bomba destrói a entrada do jornal O Estado de S. Paulo, em São Paulo; Greve em Contagem (MG) quando pararam 1200 trabalhadores da siderurgia Belgo-Mineira; rebelião de padres, em Botucatu (SP), contra a designação do arcebispo dom Vicente Marchetti Zioni.
3) Junho: O CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Galpão, em São Paulo, e esperou o público se retirar para destruir os cenários e espancar os atores nos camarins; acontece episódio conhecido como "Sexta Feira Sangrenta" movimento estudantil junto com populares enfrentam a polícia militar nas ruas do Rio de Janeiro. Número de mortos e feridos desconhecido; é realizada no centro da cidade do Rio de Janeiro, a Passeata dos Cem Mil, uma manifestação contra o regime militar organizada pelo movimento estudantil;
4) Julho: O ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, proíbe as manifestações de rua em todo o país; greve de Osasco (SP) na fábrica metalúrgica da Cobrasma com 3 mil operários.
Neste ano de 2018, alguns eventos também chamam a atenção para a difícil conjuntura política em que a CNBB precisava dar uma resposta:
1) Janeiro: julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Tribunal Regional 4 de Porto Alegre ampliando sua condenação para 12 anos e 1 mês acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro pelo recebimento de um Triplex no Guarujá (SP); realização do 14º Intereclesial das CEBs em Londrina, quando setores conservadores católicos divulgaram nas redes sociais uma série de vídeos acusando as CEBs e o arcebispo de Londrina, Dom Geremias, de permitirem a “infiltração Petista” na Igreja;
2) Fevereiro: após o carnaval, o presidente Michel Temer decretou a intervenção federal na Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, devido ao aumento da criminalidade. A coordenação da Intervenção ficou nas mãos do Exército brasileiro que passa a comandar todas as forças de segurança do Estado.
3) Março: Assassinato de Marielle Franco, vereadora pelo PSOL no Rio de Janeiro, por possíveis integrantes de milícias gerando uma série de manifestações por todo o país; grupos conservadores católicos acusam o mal uso do dinheiro arrecadado pela CNBB durante a Campanha da Fraternidade; presos o bispo Dom José Ronaldo e outros cinco padres acusados de desvio superior a R$ 2 milhões de dízimos e doações na diocese de Formosa (GO); a caravana do PT e de Lula por cidades no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná foi alvo de protestos violentos de setores “anti-Petistas”, chegando a ser atingido por 3 tiros;
4) Abril: negado o Habeas Corpus para o ex-presidente Lula e decretado sua imediata prisão pelo Juiz Sérgio Moro. Depois de dois dias de resistência no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP) e após uma celebração religiosa coma presença do bispo emérito de Blumenau, Dom Angélico Bernardino, Lula se apresenta à Polícia Federal, sendo encarcerado em Curitiba (PT).
Evidentemente que a história não se repete, mas vale à pena observar, comparativamente, o posicionamento coletivo do episcopado brasileiro diante de situações que podemos denominar “momentos de crise do tempo”. “Crise”, “recessão”, “depressão”, “mutações profundas”, “mudança de época”, são estes períodos os melhores para o historiador observar como se “experimenta o tempo”, como se vive numa determinada conjuntura e o modo de articular passado, presente e futuro (um regime de historicidade como defende François Hartog). Daí a questão: nestes momentos de crise vive-se um momento de pausa, seguido de uma expectativa de futuro mais ou menos glorioso, de tipo futurista, ou há um desejo de que tudo voltará ao “normal” e se viverá do mesmo modo como se vivia antes, num regime de tipo “passadista”, onde o passado comanda nossas vidas?
Em 1968, o episcopado brasileiro vivia sob a égide de quatro “conceitos” que o remetia para o futuro: renovação eclesial (fruto do Vaticano II), planejamento pastoral (Plano de Pastoral), reformas de base e desenvolvimentismo. Apesar do anticomunismo – e, por isso, agradeceram aos militares pela heroica ação de livrar o Brasil do risco comunista – já havia muita sensibilidade para uma “opção pelos pobres”, especialmente vindo do grupo dos bispos nordestinos.
Em 2018, a maioria dos bispos vive ainda muito impactado com o pontificado “radical” do Papa Francisco. Poucos aderiram ao seu projeto de reforma e preferem o passado. Uma boa maioria ainda espera viver os “anos gloriosos” da época de João Paulo II e Bento XVI e sem nostalgia nenhuma da “CNBB profética” dos anos 1970. E do ponto de vista político, estes mesmos agradecem à Deus pelo fim da hegemonia “petista” e esperam que as eleições confirmem um governo de “centro” ou “centro-direita”.
Analisando suas “declarações-mensagens” finais, das respectivas Assembleias, a dimensão profética de denúncia está presente nos dois momentos históricos da CNBB, mas depositam esperança que povo brasileiro possa, de forma solidária, participativa, compromissada, acreditando na responsabilidade das instituições do Estado. Seguem alguns trechos:
Declaração – 1968: A situação brasileira está a exigir urgentes e corajosas reformas de mentalidade e de estruturas, que assegurem a todo o povo sem discriminação, a participação consciente, livre e solidária no processo de desenvolvimento nacional. A responsabilidade desse processo cabe, de modo especial, a todos os grupos dirigentes, no sentido de o promoverem com real eficácia em benefício “do homem todo e de todos os homens” (Populorum Progressio).
Mensagem ao Povo Brasileiro – 2018: (...) o Brasil vive um momento complexo, alimentado por uma aguda crise que abala fortemente suas estruturas democráticas e compromete a construção do bem comum, razão da verdadeira política. A atual situação do País exige discernimento e compromisso de todos os cidadãos e das instituições e organizações responsáveis pela justiça e pela construção do bem comum.
Declaração – 1968: Não concordamos com o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, principalmente ao direito de livre expressão e reunião, ao direito de justa remuneração e de defesa. Apelamos para a solidariedade e capacidade criadora de nosso povo. (...). Conclamamos os responsáveis pelos meios de comunicação social para que resistam aos abusos do sistema econômico vigente, e, fiéis à verdade e à moral, cumpram seu papel relevante e decisivo na educação do povo.
Eleições 2018: compromisso e esperança – 2018: De fato, a carência de políticas públicas consistentes, no país, está na raiz de graves questões sociais, como o aumento do desemprego e da violência que, no campo e na cidade, vitima milhares de pessoas, sobretudo, mulheres, pobres, jovens, negros e indígenas. Além disso, a perda de direitos e de conquistas sociais, resultado de uma economia que submete a política aos interesses do mercado, tem aumentado o número dos pobres e dos que vivem em situação de vulnerabilidade.
Declaração – 1968: Reconhecemos a gravidade e a complexidade do momento que atravessamos, confiamos no espaço solidário dos brasileiros que, animados pela força do Evangelho, saberão enfrentar as graves decisões que se nos impõem neste instante para o futuro de nossa Pátria, em que a Igreja possa ser vista mais claramente como sacramento da união dos homens com Deus e da unidade de todo gênero humano. Cabe, pois, aqui nossa palavra de esperança.
Eleições 2018: compromisso e esperança – 2018: Exortamos a população brasileira a fazer desse momento difícil uma oportunidade de crescimento, abandonando os caminhos da intolerância, do desânimo e do desencanto. Incentivamos as comunidades eclesiais a assumirem, à luz do Evangelho, a dimensão política da fé, a serviço do Reino de Deus. Sem tirar os pés do duro chão da realidade, somos movidos pela esperança, que nos compromete com a superação de tudo o que aflige o povo.
Os bispos também temiam, e temem, as posturas radicalizadas que podem levar à situações de violência. Para isso, conclama o povo para olhar para o Evangelho.
Declaração – 1968: Não podemos deixar de verificar situações de violência que progressivamente se ampliam e se aprofundam. A violência subversiva ou repressiva parece a certos grupos uma solução. Aos que optam pela violência dirigimos um apelo no Senhor: Ponderem as consequências de tal opção! O radicalismo de posições ideológicas, que impede o diálogo construtivo e a busca solidária de soluções a serviço de todos, contradiz ao Evangelho.
Eleições 2018: compromisso e esperança – 2018: Vivemos um tempo de politização e polarizações que geram polêmicas pelas redes sociais e atingem a CNBB.
Queremos promover o diálogo respeitoso, que estimule e faça crescer a nossa comunhão na fé, pois, só permanecendo unidos em Cristo podemos experimentar a alegria de ser discípulos missionários.
A “rebelião” do clero da Diocese de Botucatu e a greve dos operários em Osasco no ano de 1968 suscitaram nos bispos a necessidade de se fazerem presentes de forma realmente profética, seja para acompanhar os trabalhadores – para que não houvesse “o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, principalmente ao direito de livre expressão e reunião, ao direito de justa remuneração e de defesa” -, seja para acompanhar a busca de unidade pastoral entre clero diocesano e bispo.
Diferentemente foi a postura da CNBB em 2018. Apesar de declarar que não pode se “calar quando a vida é ameaçada, os direitos desrespeitados, a justiça corrompida e a violência instaurada”, o que vimos foi exatamente o contrário. No assassinato de Marielle Franco, em pleno período quaresmal e de Campanha da Fraternidade sobre o combate à violência, sequer fez uma nota condenando a violência e se solidarizando com a família. E também o silêncio quanto às graves acusações de “organização criminosa” na Diocese de Formosa e aos grupos conservadores que lançaram campanha caluniosa contra a própria entidade.
Vejamos os trechos:
Declaração – 1968: Sensibilizados por recentes acontecimentos, sentimo-nos na obrigação de enviar a Osasco e Botucatu um representante que ali fosse uma presença pastoral da Igreja e observasse os acontecimentos e nos fizesse ver sua verdadeira face.
Mensagem ao Povo Brasileiro – 2018: Ao assumir posicionamentos pastorais em questões sociais, econômicas e políticas, a CNBB o faz por exigência do Evangelho. A Igreja reivindica sempre a liberdade, a que tem direito, para pronunciar o seu juízo moral acerca das realidades sociais, sempre que os direitos fundamentais da pessoa, o bem comum ou a salvação humana o exigirem (cf. Gaudium et Spes, 76). Isso nos compromete profeticamente. Não podemos nos calar quando a vida é ameaçada, os direitos desrespeitados, a justiça corrompida e a violência instaurada.
Apesar da distância histórica e diante de “crises do tempo” com feições muito semelhantes, vemos que a CNBB, em ambos os casos, opta sempre por assumir posturas mais “diplomáticas” e conciliatórias”. Denuncia as injustiças, mas não quer correr riscos. No caso de 1968, a CNBB só fez isto depois das opções assumidas pela Conferência de Medellín (setembro) e quando vários dos seus membros foram atingidos pelo AI-5 (dezembro).
Será que a CNBB de hoje vai precisar que a conjuntura se torne ainda mais conflitiva para colocar em prática aquilo que ela diz em seus discursos?
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CNBB (1968) X CNBB (2018): a 50 anos de distância o que esperar? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU