31 Janeiro 2018
“A deificação é uma atitude tipicamente indiana e na Índia Mohandas Karamchand Gandhi, grande alma, pequeno pai, foi por muito tempo alçado mais que qualquer outro ao panteão dos deuses. Porém, depois de seu desaparecimento, a Índia iniciou uma trajetória rumo a objetivos que ele não teria compartilhado”, observava Salman Rusdhie dias atrás, em um artigo publicado nos jornais britânicos e norte-americanos para lembrar o Mahatma no aniversário de sua morte.
A reportagem é de Roberto Bertinetti, publicada por Il Messaggero, 30-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 30 de janeiro de 1948, o líder que tinha se colocado à frente do movimento pela independência foi morto por um fundamentalista hindu no gramado de uma casa, ao norte de Delhi, que tinha sido colocada a sua disposição por um rico empresário, onde todos os dias ele orientava orações diante de uma multidão. As autoridades políticas indianas não promoveram eventos oficiais para comemorar a data porque, de acordo com Rushdie, "consideram que o ensinamento de Gandhi, sem dúvida, não é mais atual, mas inclusive é perigoso, em um país que quer a todo custo deixar para trás o ruralismo do qual Gandhi era defensor".
A Suprema Corte, entretanto, deferiu o pedido de um militante da direita religiosa para reabrir a investigação do assassinato. De acordo com o pedido encaminhado, a inteligência britânica e a CIA estavam cientes dos planos do executor do atentado. Afirma-se também que Gandhi não foi atingido por três balas (como sempre foi declarado), mas por quatro, e que o disparo mortal veio da arma de uma pessoa nunca identificada.
Gandhi | Foto: Saktishree DM | Flickr CC
Indubitavelmente, será preciso muito tempo para verificar a viabilidade dessas hipóteses. Em todo caso, não é a primeira vez que a reconstrução da história oficial do atentado é colocada em dúvida. O único culpado envolvido, segundo os livros de história, é Nathuram Godse, um militante de uma força política à qual também pertence Narendra Modi, o primeiro-ministro atualmente no cargo. Godse, mais tarde, explicaria com essas palavras gesto: "Eu agi porque um indivíduo não deve ser maior do que uma nação, Gandhi havia começado a ser considerado maior do que a nação". O assassino não perdoava ao Mahatma a tolerância religiosa que tinha lhe angariado o ódio até mesmo dos muçulmanos radicais.
Embora por motivos muitos diferentes, Modi e o seu executivo tentam impedir a gênese de um diálogo entre as diferentes religiões, em especial entre os hindus e os seguidores do Islã. Celebrar Gandhi de forma oficial por ocasião do aniversário de sua morte pareceria para o líder no poder e seu governo uma concessão perigosa diante da atitude de intransigência para com o vizinho Paquistão, uma mão ingenuamente estendida poucos meses depois das retóricas manifestações de nacionalista organizadas para o septuagésimo aniversário da Partição que viu a separação do subcontinente em dois, com base na filiação religiosa.
Gandhi estava na liderança da frente, sem dúvida minoritária, dos que se opunham àquela escolha que foi, ao contrário, apoiada pelos britânicos, certos que a nova fronteira teria evitado o caos. Foi um erro terrível, como os estudiosos unanimemente teriam documentado depois de maneira incontestável. Escrevem Ian Talbot e Gurharpal Singh no livro La spartizione (A partilha), proposto na Itália pela editora Il Mulino: estima-se que 15 milhões de pessoas foram evacuadas na mais massiva migração forçada na história do século XX. O número de mortos, ainda controverso, varia entre 200 mil e 2 milhões. Famílias foram divididas e cerca de cem mil mulheres foram estupradas em ambos os lados da fronteira. Algumas décadas depois, as consequências de 1947 continuam a determinar o destino da Índia e do Paquistão. Gandhi tinha tentado se opor à divisão do subcontinente, mas seu carisma não impediu o confronto. Talvez porque, analisa hoje Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, "o homem que havia derrotado os imperialistas e vencido a batalha pela independência pertencia, por índole e cultura, a uma Índia diferente daquela que estava nascendo e não poderia tê-la guiada para o futuro, mesmo que não tivesse sido assassinado". A Índia de Gandhi, como apontado por Rusdhie, olhava com desconfiança para o desenvolvimento industrial, considerado um modelo imposto pela cultura imperialista.
A utopia ruralista que lhe era tão cara, de matriz do século XIX, é apenas a distante memória de uma teoria bizarra na Índia contemporânea liderada por Modi, um ponto brilhante no firmamento da Ásia, de acordo com a generosa definição do Fundo Monetário Internacional que elogia as reformas do primeiro ministro e a ascensão para o topo das classificações econômicas planetárias. O desenvolvimento é garantido pelas estatísticas (o PIB cresce em uma média de sete por cento), mas as desigualdades continuam sendo enormes. De fato, existem centenas de milhões de indianos ainda abaixo do limiar de uma renda que possa protegê-los da pobreza, o sistema de castas, proibido por uma lei jamais realmente aplicada, conserva um peso decisivo na vida de cada indivíduo. O governo, em outras palavras, pode esconder para a opinião pública o aniversário da morte de Gandhi, mas grande parte dos problemas que o Mahatma apontava durante o final da sua vida ainda permanece dramaticamente sem solução.
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Gandhi, mito desconfortável que a Índia quer esquecer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU